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quinta-feira, 24 de março de 2011

<<< Uma Mulher Sob a Influência (J. Cassavetes, 1974) >>>


"As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Se não se captar aquela pequena raiz, o pequeno  grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. (Aliás, todos nós somos um pouco dementes.) Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme..."
Gilles Deleuze, "ABCDário"

Não se trata de "glamourizar" a loucura, nem de negar que ela implica cruéis graus de sofrimento, mas de se reconhecer que certo charme emana, sim, destes seres que destoam da norma, rasgam suas máscaras e ousam ser originais em meio à clicheria e à normopatia reinantes. A Mabel que Gena Rowlands encarna de modo tão visceral em A Woman Under The Influence é assim: uma "birutinha" adorável, que conquista o carinho da platéia bem mais que qualquer um da "manada dos normais" (para usar uma expressão de outro maluco-beleza, Sérgio Sampaio).


O clássico de John Cassavetes (1929-1989) transborda empatia no retrato desta mulher afável, carinhosa, espontânea e brincalhona, inadaptada aos entornos sociais repletos de graves engravatados e dondocas peruas embonecadas.

Frisa-se com insistência o quanto Mabel se entende bem com as crianças: ela também é uma. Há algo na espontaneidade e na franqueza dos pimpolhos que a atrai bem mais do que as pomposidades e solenidades dos adultos. Aqueles que a acusam de louca provavelmente o fazem diagnosticando "infantilidade" e "tendências regressivas". De certo modo, ela de fato se recusa a crescer. Ou não acha que maturidade seja sinônimo de gravidade. Nietzsche:  "Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar." (Além do Bem e do Mal, #94).

Mabel vê com boníssimos olhos a alegria em sua forma mais autêntica (a infantil...) e convida todos ao redor para dançar na roda, entrar na brincadeira, vestir fantasias, dançar um balé, encarnar o Cisne de Tchaikovsky num bailado de quintal... Mas os respeitáveis "maduros", com sorrisos enferrujados, que só tem olhos para o próprio umbigo e desaprenderam a arte da jovialidade e da cordialidade, sentem-se desconfortáveis perto de uma mulher que quer brincar de roda, imergir e se esquecer no brinquedo, enquanto os outros obcecam com mercados de trabalho, bolsas de valores e casacos de pele...



Uma famosa tese freudiana sustenta que a vida civilizada exige uma repressão instintiva que os sujeitos sentem como mal-estar. Deste mal-estar na civilização decorria uma espécie de nostalgia da barbárie, uma saudade de um estado sem tantas leis e proibições, onde o desejo pudesse se manifestar em sua espontaneidade ao invés de ser sempre metido detrás de coleiras e correntes. É o que alimenta os sonhos anarquistas, e muitos dos que são taxados como loucos dariam, se pudessem teorizar, ótimos Bakunins. Gosto da idéia suplementar à de Freud (creio que do Marcuse...) de que nem sempre o grau de repressão que vige numa sociedade é necessário para sua conservação: muitas vezes, é pura opressão de uma classe sobre outra, uma sobre-repressão que poderia muito bem ser extinta sem que a civilização desmoronasse. Tudo o que iria desmoronar é uma classe que se sustentava por cima ao manter outra debaixo da sola de seu sapato.

 Mas o que vemos no sensível e cálido retrato de Cassavetes, em um de seus trabalhos mais lindos dirigindo sua então esposa Gena Rowlands, é mais a descrição um destino individual, que não se alça jamais a generalizações e digressões como estas que arrisco aqui. O filme é um legítimo drama doméstico, repleto de pequenas e grandes violências conjugais, que nos apresenta a um casal que jamais conseguiremos apagar da memória, tamanho é o afeto que ele nos conquista. 

O espectador mais sensível pode até se chocar com as cenas de pancadaria doméstica que Cassavetes mostra com tanta crueza. O maridão encarnado por Peter Falk (célebre por encarnar o detetive Columbo na série de TV dos anos 70), não é exatamente um cavalheiro de mil gentilezas. Não é raro que fale com voz autoritária e ditatorial, como na cena em que ordena que a esposa modifique seu comportamento na mesa de jantar. Em várias brigas, desce o tapa na cara de Mabel. Lá pelo fim do filme, o sangue chega a gotejar da mão cortada da esposa ferida. O curioso é que Mabel não pareça odiá-lo por isso. Não corre rumo ao divórcio. Talvez seja um componente masoquista em sua personalidade. Ou talvez ela sinta-se vivendo num mundo em que os corações estão tão enregelados, tão inexpressivos, que goste de sentir os arroubos do marido, ainda que sejam de fúria: é como uma intensa prova de vitalidade emocional.


Mabel, criatura mais dionisíaca que apolínea, mais criança que camelo, mais do êxtase que da resignação, acaba entrando em choque com certos padrões sociais e a escolha que tomam aqueles ao seu redor é apelar para a psiquiatria. Espectadores como eu acham isto uma atitude totalmente desproporcional ao suposto "mal" que a acomete: afinal ela não é nenhum bicho-de-sete-cabeças! Ao invés de se filiar aos pró-hospício, Cassavetes escancara o quanto o pai de Mabel é um monstro de frieza, o quanto a sogra é uma megera histérica, o quanto alguns amigos da família são personalidades "encouraçadas"... Contra o médico, com suas seringas, que quer "domá-la" e arrastá-la para o hospital, ela constrói um escudo, um vade retro satanás. E o que ficou, ao menos para mim, é a imagem de uma Mabel carente de amor, intimidade e entrega, mas que não encontra o que procura em meio aos rostos glaciais daqueles que, por fim, a empurram para o sanatório.

Mas a genialidade do filme se mostra no retorno dela, quando o maridão exorta Mabel a voltar a ser ela mesma, lançar no lixo a polidez e a "boa-educação", permitir-se ser a menininha peralta que sempre havia sido. Talvez porque sinta que a psiquiatria e seu séquito de horrores (eletro-choques e outras simpaticíssimas táticas...) procurou extirpar de Mabel aqueles traços de personalidade que a tornavam única. Tentou-se uma des-individualização forçada: um hospício é uma fábrica de animais de rebanho, que tenta transformar os leões em cordeiros. Mas a mulher amada, quando privada de seu "ponto de demência" de onde emana seu charme, reduzida às máscaras que lhe exigem que vista, impedida de expressar sua individualidade mais íntima, é uma mera sombra em relação àquela criatura flamejante de vida que agia sem as travas do bom-senso. Mas ela retorna, e com ela os afetos inflamados que vigem entre esse casal. Entre a loucura ardente e a normopatia glacial, escolhem a primeira senda. E escolhem bem.


quarta-feira, 16 de março de 2011

Os Maduros (I Fidanzati, de Ermanno Olmi, ITA, 1963)

       
   Por Du Pitomba

     No auge do mata-mata pela partilha do frete do que seria o chamado cinema moderno, teóricos dos mais variados prazos de validade lançaram mãos, pés e cotovelos pelas adivinhações afora. O poeta  e decorador de neuroses em tela larga Pier Paolo Pasolini legou em livro a terminologia “Cinema de prosa” e “Cinema de poesia”, sendo o último poético por tratar-se da modalidade que melhor enamora-se de intervenções agressivas no ato da filmagem. Quem diria que Pasolini seria desmentido em solo pátrio! Como todo bom soco, este viria de terreno inesperado. O golpeador estético peso-pesado chama-se Ermanno Olmi, e a luva cromada atende por “Os Maduros”, de 1963. Filia-se num tipo de filme que corre sem olhar para traz quando ouve palavras como alegoria ou barroco.

Os críticos e historiadores não deixam os artistas em paz. Na sua ânsia maníaca em agrupa-los em várias frentes, tentam sempre patentear alvarás aos quatro cantos. Ermanno Olmi não tem nada a ver com o Cinema Novo italiano, não se vale do sambódromo mental de Bertolucci, Bellochio, Ferreri, etc. Seu longa anterior, “O Rosto”, pode-se dizer que raspava na parede da expectativa, apresentando um final simbólico e forte. Aqui a historieta do metalúrgico (Carlo Cabrini) que adquire transferência de firma tenta equilibrar-se em fios de barbante. Olmi economiza até na amostragem da grande musa dos diretores modernosos, a memória. A cachoeira das lembranças tem a discrição de um chofer de família tradicional.

Isso não quer dizer que sua ferrramenta de trabalho esteja na idade da pedra lascada, muito pelo contrário. E isto pode ser averiguado justamente na hora das recordações, diretas ou indiretas. A cena que mescla a decisão em deixar o pai idoso em clínica de repouso com a do último abraço na noiva (Anna Canzi), tem o corte e costura que só uma pocket câmera das mais avançadas pode modelar. Está armada uma tapeçaria de focos de pequenos esbarros. A euforia do carnaval de rua dos vilarejos italianos encontra a companheira de toda uma vida de maleabilidade deste aparelho portátil. Olmi é um observador que quebra o camarote e enxerga seus atores com proximidade vantajosa. Mas sem as firulas neuróticas de seus contemporâneos, que em algumas obras mais parecem cirurgiões plásticos vesgos. É só encarar as deformidades e patinações estruturais de, por exemplo “Gaviões e Passarinhos” (1966) de Pasolini e “Partner” (1968) de Bertolucci. São verdadeiras tijoladas infantis no andamento conquistado. Um bolsão de divãs de aluguel.


Ermanno Olmi, cineasta italiano
Vamos deixar outra coisa clara: Olmi não é parente sanguíneo do universo de pequenas agulhadas morais do francês Eric Rohmer. A fina estampa da acupuntura verbal de Rohmer não interessa para o italiano, preferindo filmar os lugares que ainda serão ocupados ou que já se esgotaram das pegadas humanas. E capaz de deixar seus viventes por horas e horas sem fala. Dá-se a impressão que ele não espera muito de nosso rastro na Terra. Os tipos Rohmerianos são untados pelas bulas dos enciclopedistas do século dezoito, ao mesmo tempo reservados e espirituosos. Não que Rohmer trace grande fé na raça humana, mas, pelo menos, afaga certa perspectiva nos encontros e desencontros. No frigir dos ovos, Olmi só consegue ser “Ermanno” de si mesmo.

quinta-feira, 10 de março de 2011

<<< Um Estranho no Ninho na versão Ken Kesey >>>



Poucos sujeitos marcaram tanto a contracultura dos anos 1960 quanto Ken Kesey (1935-2001). O cara, com seu jeitão de lutador de luta livre ou de vaqueiro sulista fanfarrão, conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo um autor americano de vanguarda, um polemista de plantão e um ícone da juventude beatnik e hippie. Junto com Timothy Leary, Ken Kesey foi um dos “gurus do LSD” que, a partir do começo da década de 1960, ajudou a espalhar a Epidemia do Ácido que iria varrer o mundo a partir de 1965. Junto com sua "gangue" de Merry Pranksters, viajou num ônibus colorido e psicodélico por 6 meses, atravessando a América de Costa a Costa como se vivesse dentro dum road movie lisérgico. Esta trip (a literal e a mental...) virou o tema de uma histórica gonzo-reportagem de 500 páginas escrita por Tom Wolfe: “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”.

Após ter sido eleito o Messias de uma Nova Religião Juvenil, Kesey teve problemas com as autoridades e deu um tempo brincando de fora-da-lei foragido no México. Depois acabou indo em cana nos EUA por posse de maconha (e na cadeir escreveu Diários do Cárcere). Mas sua maior contribuição à cultura americana foi mesmo seu primeiro romance, Um Estranho no Ninho, livro elogiadíssimo pela crítica e adaptado para o cinema no clássico de Milos Forman.


Tom Wolfe conta que Kesey “escreveu muitas passagens do livro sob o efeito de peiote e LSD” e que, feito um William Burroughs e outros beatniks, “escrevia feito um louco sob o efeito de drogas. Depois que terminava o efeito, via que boa parte daquilo era lixo. Mas alguns trechos – como os do Cacique em seus delírios esquizofrênicos – provavam ser verdadeiras VISÕES, um pouco do que a gente podia ver se abrisse as portas da percepção, cara...” (p. 57) Conta-se também que Kesey chegou a trampar em um hospital psiquiátrico, podendo observar de camarote os procedimentos internos de uma instituição do tipo e conhecendo gente real que inspiraria seus  vívidos personagens. E pode ser boato, mas conta-se ainda que “chegou mesmo a fazer com que alguém o submetesse ao tratamento de choque clandestinamente” para escrever com maior verossimilhança sobre os efeitos deste grotesco método psiquiátrico. Kesey foi um ousado "pesquisador de campo" e mártir da literatura. E que imensa lucidez em sua "loucura"!

Neste caso, a comparação entre filme e livro não é somente um recurso cômodo, mas algo essencial e fundamental. Porque é bem provável que a adaptação cinematográfica talvez tenha deixado uma cicatriz mais profunda na Cultura Contemporânea do que o próprio livro, valendo a pena fazer a velha pergunta: o filme faz jus à obra-literária a ponto de dispensar a leitura? E neste caso a resposta é um veemente “não!” Não, o filme, me parece, não chega aos pés do que Ken Kesey arquitetou. Ler o romance é uma experiência muito mais que válida: é extremamente enriquecedora até pra quem já conhece de cor e salteado a versão hollywoodiana.
Milos Forman

O filme de Milos Forman, que papou quase todos os Oscares Fodões de seu ano (filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado), empalidece e decepciona quando comparado com o magistral romance de Ken Kesey. Jack Nicholson pode ter encarnado McMurphy com muita garra e tesão, numa das performances mais clássicas de sua carreira, mas o McMurphy de Ken Kesey é um personagem muito mais poderoso, melhor delineado e mais digno de um “status mitológico” do que o arruaceiro meio ingênuo que vemos nas telas.  

Quem assiste ao filme de Forman pode ficar com a impressão de que McMurphy não passa de um fora-de-lei malandrão, que arranjou um atalho fácil para fora da prisão se fingindo de doido varrido, e que no fundo não passa de um brutamontes tosco com titica no cérebro. Ao ler o livro de Kesey, a “estatura” de McMurphy aumenta incrivelmente e ele se torna algo muito mais colossal e grandioso – não somente um Cara Muito Esperto e Sagaz, não somente um Jato Contínuo de Lucidez Irreverente, mas uma espécie de Mártir que deixa o mundo dos reles mortais para entrar no reino dos Modelos Éticos. A impressão que fica é que Kesey sugere que todos os homens deveriam aprender a ser mais como McMurphy (ah, como o mundo seria melhor!...).

McMurphy é o cara que vai pôr às claras para todos os internos do Hospício toda a hipocrisia envolvida nos procedimentos cotidianos do lugar, desmascarando uma falsa democracia, acusando a existência de um Estado Policial Autoritário e conclamando todos a um Justíssimo Levante de Escravos. As sessões de discussão em grupo passam a ser tidas como “festas de bicadas” e a Chefona uma “capadora de colhões” - “que tenta fazer com que você fique fraco para que possa obrigá-lo a entrar na linha, a seguir as regras deles, a viver como eles querem que você viva” (p. 89). Num diálogo magistral, que infelizmente foi omitido no filme, os pacientes discutem com lucidez ímpar sua própria situação existencial comparando-se com coelhos que se assustam com os lobos. Harding, por exemplo, comenta:

“O ritual de nossa existência está baseado no fato de os fortes ficarem mais fortes por devorarem os mais fracos. (...) Os coelhos aceitam seu papel no ritual e reconhecem o lobo como o forte. Para se defender, o coelho torna-se esperto, assustado, arredio e cava buracos e se esconde quando o lobo está por perto. E ele resiste, vai continuando. Conhece seu lugar. É absolutamente certo que ele não irá desafiar o lobo para um combate” (p. 94). McMurphy é o valentão que vai tentar convencer esses fracotes homens-coelho que eles devem se erguer e enfrentar o lobo até destroná-lo.

Fica claro, por exemplo, que o filme não soube dar a devida ênfase à imensa transformação positiva que a chegada de McMurphy gera naquele ninho de loucos. Durante o filme inteiro, fica-se com a impressão de que aquelas pessoas naquela zona de manicômio já são todas um tanto insubmissas, desobedientes e intratáveis e que McMurphy, apesar de mentalmente são, está “entre iguais”. Já a impressão que deixa o livro de Kesey é totalmente diferente: McMurphy chega num hospital psiquiátrico que é todo certinho, asseado e comportado, lotado de pacientes submissos e trêmulos, que não são sequer capazes de dar risada ou cantar. Todos ali percebem que o forasteiro é diferente de todos ao redor, muito mais livre, espontâneo e irreverente do que todos, e que, aos poucos, vai exercer uma influência extremamente benigna sobre os coelhinhos obedientes que ali viviam através de suas seminais "aulas" de Desacato à Autoridade e Questionamento Vigoroso das Regras Vigentes.

No livro de Kesey, antes de McMurphy o hospício se parecia com uma espécie de convento cheio de ovelhinhas medrosas e sérias, que tremiam de pavor frente à autoridade da Chefona e que se submetiam às maiores barbaridades com um conformismo absoluto. Depois de McMurphy, o hospício vai gradualmente ganhando vida e os internos vão ganhando independência, irreverência, individualidade e coragem. O McMurphy de Kesey é um Libertador de Almas Aprisionadas. É um Instrutor de Vôo que quer ensinar aqueles passarinhos enjaulados a baterem suas asas para longe de suas gaiolas. É quase um Ícone Contracultural que percebe os descalabros cometidos pela "Sociedade Como um Todo" – sociedade esta que procura padronizar comportamentos e mentalidades e acaba por condenar o “diferente” com o rótulo de “louco”. O McMurphy de Kesey é um cara que “a Liga não apanhou com seus controles”. Nada disso fica devidamente evidenciado pelo filme de Milos Forman. Os loucos de Milos Forman não parecem ter o mínimo brilho intelectual ou lucidez; já os loucos de Kesey são frequentemente brilhantes ao ponto de serem quase Gênios Incompreendidos – só ver o narrador Chefe Bromden ou o intelectual Harding.

Quando a gente lê o livro de Kesey, fica com o sentimento de que estamos frente a uma luta colossal entre o Bem e o Mal – e que aquele valentão irlandês, o desordeiro incorrigível McMurphy, na verdade é o representante do Bem e do Certo, enquanto que a Chefona seria a carrasca a quem a sociedade deu o poder de “programar” certos indivíduos que saíram dos padrões adequados. “A enfermaria é uma fábrica da Liga”, escreve Kesey. “Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora – todo reparado e bom, como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem ajustado, um crédito para todo o esquema e uma beleza para ser observado” (p. 62).

Muitos leitores talvez não percebem todo o sarcasmo que existe por trás dessas palavras – mas quem sabe quem é Ken Kesey sabe também o ódio que ele tinha contra esse Complô Social para o Extermínio da Diferença e sabe que, nesta magistral metáfora que é Um Estranho No Ninho, ele estava metendo o dedo fundo na ferida da sociedade americana, que desejaria fabricar na linha de montagem indivíduos que estivessem felizes com uma vida de Trabalho Assalariado, Patriotismo Impecável, Passeios no Shopping e no Mercado e Boliche aos Fins-de-Semana – The American Dream... McMurphy, para Ken Kesey, é muito mais do que um espertalhão que acabou caindo num hospício – ele é um tipo que representa “uma ameaça a toda a organização bem lubrificada do esquema” (p. 64). E não há dúvida de que Kesey gosta pra diabo desse herói iconoclasta e rebelde que criou e que se lança num louco atentado contra o Sistema! Nós, leitores, também acabamos gostando muito mais dele do que da antipática Chefona. Missão cumprida, Kesey!  Onde assino o formulário para entrar em vosso Exército de Merry Pranksters?


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O VILÃO MENOR E O VILÃO MAIOR

No filme de Milos Forman, a Chefona não chega nunca a ser realmente alçada ao status de uma Grande Vilã, muito menos descrita como a representante de uma Instituição Social bem mais vasta que Kesey vai chamar de Liga. Já quando a gente lê o livro de Kesey, percebe que ele despejou uma imensa quantidade de Cólera e Desdém sobre o personagem altamente demonizado da Chefona, que acaba nos parecendo uma pequena Hitlerzinha, arrogante e metida a besta, que controla com rigidez férrea uma espécie de Campo de Concentração onde “o Sistema” procura extirpar o vírus da individualidade e tornar-nos todos seres idênticos uns aos outros.

A Chefona de Kesey é uma agente secreta do Lado de Fora que está ali contratada para ajustar aqueles do Lado de Dentro às “regras do sistema”. E não é preciso dizer o quanto de desdém que Ken Kesey, esse grande rebelde beatnik da contracultura dos anos 60, tinha contra o tal do “Sistema”. Estabelecer um paralelo com o Laranja Mecânica de Burgess/Kubrick não é nada difícil.

A Chefona, escreve Kesey com ferocidade, “está sonhando um mundo de precisão, eficiência e limpeza, como um relógio de bolso com o fundo de vidro, um mundo no qual a programação é intocável e todos os pacientes que não estão do Lado de Fora, obedientes sob o seu comando, são Crônicos em cadeiras de rodas com sondas que descem direto de cada perna para o esgoto sob o assoalho” (p. 47).

O inimigo é “a Liga inteira, a Liga de proporções nacionais, a força realmente grande” - sendo que “a enfermeira é apenas um de seus oficias de alta patente” (p. 248). O Chefe Índio, por exemplo, ao sair do manicômio para dar uma volta pela cidade, nota o quanto o Lado de Fora também tinha sido moldado e controlado pela Liga. “Por todo o caminho em direção à costa, eu podia ver sinais do que a Liga havia conseguido fazer desde que eu estivera por ali pela última vez, como, por exemplo, um trem parando numa estação e despejando uma fileira de homens de ternos de um mesmo feitio e chapéus feitos em série; despejando-os como uma ninhada de insetos idênticos...” (p. 308).

É por isso que, para Kesey, o comportamento criativo, original e irreverente de seu herói McMurphy é completamente elogiável e merecedor de imitação. Kesey parece dizer que é só assim que pode-se derrotar o Sistema de Homogeinização Social que deseje nos ter todos iguais em mentalidade, em costumes e em comportamento. McMurphy traz de volta a irreverência e o bom humor, usando o sarcasmo como uma arma de guerra; faz com que erga naqueles homens sem gosto de viver a vontade de festejar e fazer orgias e bagunçar o coreto; luta contra a repressão sexual como um Libertador de Libidos Recalcadas; manda todo mundo ser autêntico ao invés de agir de acordo com demandas sociais... McMurphy é o sujeito que não quer permitir que nenhum homem aja como um coelho apavorado, uma ovelinha mariazinha-vai-com-as-outras ou como qualquer animal de rebanho des-individualizado e amestrado.

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ANTI-PSIQUIATRIA

Joel Birman, psicanalista.
O livro de Kesey também era um contundente ataque às instituições psiquiátricas e seus métodos altamente discutíveis de tratamento daqueles diagnosticados como doentes. Como diz Joel Birman no prefácio,

"...interrogar-se efetivamente sobre o que seria a loucura evidenciava o desejo de afirmação da liberdade, numa atmosfera sufocante de controle social generalizado. Neste sentido, a contestação anti-psiquiátrica se conjugou inicialmente com o movimento beatnik e posteriormente com o movimento hippie. O que estava em pauta era a transvalorização do mundo, com vista a construir a contracultura como um outro estilo de existência. Com efeito, se o uso costumeiro de drogas psicodélicas era um antídoto contra os eletrochoques e psicofármacos, não se pode esquecer que uma revolução dos costumes estava em marcha, que teve nas gigantescas manifestações contra a Guerra do Vietnã, na rebelião estudantil de maio de 1968 e no feminismo os seus signos mais ostensivos." (11)


No começo dos anos 60, havia todo um movimento "anti-psiquiátrico" que questionava se era ético e aceitável submeter os pacientes a procedimentos como a Terapia de Choque e a Lobotomia, que poderiam até gerar seres humanos domesticados e pacíficos e pouco perigosos (“mais um robô para a Liga”, diria Kesey) , mas que aniquilavam a individualidade e a vontade própria de um modo que muitos consideravam grotesco. Ken Kesey não poupa sua cólera, chamando de “pútrida sala assassina de cérebro” (pg. 30) a Sala do shock treatment - “um engenho que faz o trabalho dos comprimidos para dormir, da cadeira elétrica e da roda de tortura” (pg. 101).

“Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de cruz, com uma coroa de fusos elétricos em lugar de espinhos. Você é ligado de cada lado da cabeça com fios. Zap! A eletricidade atravessa o cérebro e administram-lhe conjuntamente a terapia e uma punição por seu comportamento hostil de 'Vá para o inferno', além de ser posto fora das vistas de todos de 6 horas a 3 dias... Mesmo quando você recobra a consciência, fica em estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar com coerência. Não consegue lembrar-se das coisas. Certa repetição desses tratamentos poderia fazer um homem ficar igualzinho ao Sr. Ellis, um idiota sonâmbulo, molhador de calças aos 35 anos...” (101)

Quando McMurphy e o Chefe são levados para terem os cérebros fritos pelo eletrochoque, há uma nova descrição irônica do procedimento: “Aquelas almas afortunadas lá dentro estão recebendo uma viagem à Lua de graça. Não, pensando bem, não é completamente gratuita. Você paga pelo serviço com células cerebrais em vez de dinheiro, e todo mundo tem simplesmente bilhões de células cerebrais disponíveis. Você não sentirá falta de algumas delas.” (244)

Afinal de contas, o livro, além de um manifesto anti-psiquiátrico, pode ser considerado uma Tragédia Moderna que retrata com crueza e pessimismo o modo como um homem tem seu cérebro triturado e reduzido a pó pelos mecanismos do Poder – ou seja, da Liga. McMurphy, como sabemos, acaba recebendo as mais severas punições – eletrochoque e lobotomia! - por seu comportamento teimosamente desobediente e acaba, por fim, por virar também uma ovelhinha comportada e condicionada, quase um vegetal. É isso que explica o desfecho um tanto-misterioso da obra, quando o Chefe Índio se decide a um estranho sacrifício do seu “ídolo”. O que no filme não ficava muito bem explicado, no livro é límpido: “eu só tinha uma certeza: não iria deixar uma coisa daquelas ficar deitada ali na enfermaria com seu nome pregado nela por 20 ou 30 anos, para que a Chefona pudesse utilizá-la como exemplo do que pode acontecer se você contestar o sistema.” (414)

McMurphy, que poderia ter virado nada mais que um valentão e arruaceiro que chega pra bagunçar o coreto e depois paga um preço alto demais por sua insubmissão, acaba virando, depois de sacrificado, uma espécie de Mito. Uma Lenda. Um Símbolo. Algo construído por Kesey para servir como um Exemplo de Conduta Irreverente e Combativa que merece ser imitado. Talvez seja por isso que o autor o condene a um destino de Mártir, feito um Jesus Cristo dos Hospícios em plena Contracultura dos anos 60.

"Um Estranho no Ninho", sugere Joel Birman, "restitui esse cenário mágico de um mundo em franca subversão contra os guardiões da ordem e das seduções do consumo, fazendo palpitar corações e mentes de que o sonho prometéico ainda continua pulsante" (11). No fim-das-contas, o mundo inteiro é um imenso Hospício e a Liga expande suas garras pra todos os lados querendo aniquilar as diferenças, homogeneizar comportamentos e instalar programações (de Consumo e de Obediência) em nossas mentes de ovelhinhas submissas. E é na selva aqui de fora que McMurphy é um exemplo de como tentar escapar das garras da Liga Diabólica – ou um exemplo de como morrer tentando.

terça-feira, 1 de março de 2011

<<< Manuel Bandeira em... O Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade, 1959, doc, 10') >>>


            Por João Moreira Salles

Como um filme tão simples consegue ser tão tocante? Suponho que cada amante de O Poeta do Castelo encontra as suas razões. De modo geral, à margem de qualquer digressão, bastaria dizer que o filme é intransitivamente belo, assim como uma árvore ou certos prédios. Pessoalmente, duas coisas me fazem gostar tanto desse filme. Em primeiro lugar, a fé que demonstra na beleza sempre discreta dos pequenos gestos do dia-a-dia. Como um pintor holandês, Joaquim Pedro tem grande carinho pelo cotidiano. Garrafas, telefone, coador - cada objeto recebe atenção, o que não deixa de ser um juízo ético: nada, nem mesmo uma garrafa de leite vazia, merece desinteresse. O cuidado com que Bandeira busca sua xícara, guardad dentro de uma queijeira de vidro como se fosse um objeto precioso, é comovente porque revela exatamente isto: desvelo.

A segunda razão é o fato de esse cotidiano prosaico pertencer a um poeta como Bandeira. Há uma adequação absoluta nesse par. Um filme dessa natureza não serviria a um poeta de vida exaltada como Oswald de Andrade - seria falso -, nem muito menos a um poeta parnasiano, de palavras buscadas e cosntruções preciosas. Mas para Bandeira é perfeito. Bandeira foi um dos poetas que trouxeram a poesia para perto, inspirando-se nas moças do sabonete Araxá, nas manchetes dos jornais e no porquinho-da-Índia que ganhou de presente quando era criança. O mundo das coisas simples é o mundo em que ele se sente melhor. É o seu mundo correto.

Em determinado momento, Bandeira pega um dicionário e o consulta. É uma boa cena, um pequeno comentário sobre o poeta. A poesia não brota espontânea em seu espírito. Exige trabalho e esforço. (...) O poeta, como qualquer um, trabalha. Na aceitação de uma lida cotidiana sem alarde, Bandeira é um homem como outros.

(...) No final de O Poeta do Castelo, Bandeira sai para a rua e caminha pela avenida Presidente Wilson, no bairro do Castelo, em direção à Academia Brasileira de Letras. Sua voz em off recita "Vou-me Embora para Pasárgada". À medida que avança, o Rio de Janeiro da década de 50 corre pela tela. A elegência quieta do passeio, o brio dos prédios, a sombra confortável das grandes amendoeiras, o modesnismo de Le Corbusier e de Lucio Costa logo adiante, tudo sugere que no Rio já se planejou uma civilização - ou pelo menos foi assim que pensei quando assisti ao documentário pela primeira vez, no início da década de 90. Aos meus olhos, aquela cidade que não conheci parecia caber na utopia que o poeta recitava.

Ilha Deserta. Publifolha. p. 166-168.