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quinta-feira, 21 de abril de 2011

<<< Breaking the Spell (Daniel Dennett) >>>


O filósofo e biólogo darwinista norte-americano Daniel Dennett, apesar da simpática barbona branca quase bíblica que adorna seu rosto sereno, é o exato oposto de um profeta: é um desmistificador. E de primeira grandeza. O pouco que conheço do pensamento e da "militância" de Dennett basta para que eu o considere uma das mentes que mais merecem ser ouvidas no atual panorama intelectual mundial (ouçamos também Zizek, Peter Singer, Comte-Sponville, Ernesto Sabato, Eduardo Galeano, o recém-falecido Saramago!). Pois prosseguimos necessitados de mentes lúcidas que procurem "desfazer os feitiços" causadores de catástrofe. Dennett é "lucidez em jato contínuo" que vem para questionar perigosas fantasias e preconceitos que mantem povos cativos de dogmas e rixas, cegueiras e guerras.

Breaking The Spell - A Religião Como Fenômeno Natural é o nome de uma das principais obras de Dennett, publicada lá fora em 2006 e recentemente traduzida para o português e lançada pela Ed. Globo. A teoria da evolução de Darwin, que Dennet apelidou em outra de suas obras de Darwin's Dangerous Idea, é exposta com uma ênfase em seu fator "subversivo", como algo irreconciliável com os dogmas religiosos. Pode parecer óbvio e batido constatar que não há acordo ou reconciliação possível entre A Evolução das Espécies, de um lado, e a Bíblia e o Alcorão, de outro. Mas a bizarra e teimosa "persistência" quase "viral" das religiões neste século 21, que decepcionaria tremendamente Voltaire e Nietzsche, se hoje vivessem, é uma razão mais para estarmos convictos de que o darwinismo continua precisando, sim, de inteligentes e sábios advogados. Dennett é um deles.

A entrevista abaixo faz parte da magnífica série da BBC britânica Atheism - A Rough History of Desbelief, uma das mais interessantes "investigações intelectuais" televisivas  dos últimos anos (sim, há raras maravilhas sendo produzidas para a TV... algo como ilhotas de inteligência em meio a  oceanos de besteirol!). Depredando recomenda com entusiasmo as 2 temporadas da série: a primeira é mais histórica e narrativa, procura fazer uma panorâmica da "descrença" na história do pensamento (desde a Grécia Antiga, onde nasceu o materialismo de Demócrito, atravessando mais de 2.500 anos de pensamento filosófico e científico), e a segunta (temporada) - The Atheism Tapes - baseada em entrevistas com grandes mentes de nosso tempo, incluindo o dramaturgo Arthur Miller e o cientista Richard Dawkins.





<<< The Evil Weed (documentário da BBC inglesa) >>>

Is she the evil weed...




...or the perfect partner?

quinta-feira, 14 de abril de 2011

<<< Nine Types Of Light (o filme do TV On The Radio) >>>



Pira só:

"Nine Types of Light is as much an album as it is a movie by TV on the Radio. The movie is meant to be a visual re-imagining of the record, and includes a music video for every song on the album. The band personally asked their friends and the filmmakers they admired to help direct the music videos. Tunde Adebimpe, the director for the full Nine Types of Light movie, storybooked the music videos together with interviews from local New Yorkers on various topics, including dreams, love, fame and the future. Tunde also directed the music video for Forgotten. Nine Types of Light, both the album and the movie are set to release on April 12, 2011."
Sei não, mas talvez seja a primeira vez na história da música pop que uma banda se aventura a soltar um álbum e um filme simultâneos, em que cada uma das canções recebe sua "piração visual" correspondente, numa surreal viagem perceptiva que faz muito mais do que cafeinar nossas consciências. É uma experiência estética fuderosa, e que deve ficar ainda mais impactante com um... digamos... auxílio herbal (logo experimento). É a volta triunfal do Psicodélico na era do Cibernético a cargo de uma das mais instigantes e exóticas bandas que o mundo viu surgir no pós-Talking Heads. Sério: tô assombrado com a criatividade jorrante do TV On The Radio!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

<<< Um Ano Mais (Another Year, de Mike Leigh, U.K., 2010) >>>


São raras e preciosas as obras-de-arte que tem sabedoria a nos transmitir. Isto se compartilha bem pouco na Era da Mercadoria! Ao contato com estas escassas e esparsas obras sábias, nos sentimos revigorados e com novo ânimo, dotados de um novo saber que nos ajuda a melhor viver. É o que os franceses chamam de savoir-vivre, um tipo de ciência fecundo e primaveril, que contrasta com os saberes meramente livrescos e eruditos (que não impedem ninguém de viver no "inverno da alma" como o Fausto de Goethe).

O cinema do mestre Mike Leigh, que sedimenta-se cada vez mais como um dos artistas britânicos mais sábios de nossos tempos, transborda de sensibilidade, lucidez e empatia. Com sua atitude pé-no-chão, anti-espetaculosa, sóbria e realista, a arte de Leigh descreve as relações humanas com um olhar dos mais verazes. Fiéis ao verdadeiro são todos os seus procedimentos artísticos. Seus melhores filmes --- meus prediletos são Segredos e Mentiras (1996), que faturou a Palma de Ouro em Cannes, Naked (1993) e All Or Nothing (2003) --- revelam um cineasta capaz de envolver-se intensamente com seu elenco de atores a fim de despertar neles as mais autênticas vivências e emoções, revelações e catarses. Do outro lado do Atlântico, Robert Altman e Paul Thomas Anderson são outros que realizaram proezas, à maneira de Leigh, com um cinema "de ator" que não deixa de ser autenticamente autoral.


Mike Leigh: revolucionando o melodrama a golpes de sabedoria

O centro focal de Another Year é um simpático casal de velhinhos (Jim Broadbent e Ruth Sheen) que nos faz testemunhar todos os encantos de um amor tranquilo. O filme é uma singela homenagem de Leigh àquelas virtudes que possibilitam que os humanos se amem, ou ao menos que se ajudem, se respaldem, se unam contra os rasgos brutais da agressão e os terríveis calafrios da solidão. Através da narração aparentemente despretensiosa de "apenas mais um ano" na vida destes ternos pombinhos da Terceira-Idade, Leigh faz um fértil "ensaio" sobre a comunicação, o companheirismo, a fraternidade.

Seria desleal reduzir o filme a máximas, ou espremê-lo até arrancar uma "moral da história", mas o "espírito" de Another Year me parece impregnado desta percepção quase banal (mas tão raramente posta em prática): gentileza gera gentileza. Há algo de very british no modo como estes personagens se tratam, mas não se trata só de polidez e recato: o que o filme mostra é a ternura vivida como um fio condutor da vida. É em virtude dela que este casal prossegue tão doce e tão zen em seu trato cotidiano, apesar de viverem num meio social onde não são incomuns a depressão, a cisão familiar, o alcoolismo, o niilismo, a crônica carência afetiva etc.

Estes serenos velhinhos nada têm das ilusões românticas típicas de jovens sonhadores e inexperientes, que deliram platônicamente sobre amores redentores, incondicionais, mais fortes que a morte. A sabedoria de ambos parece talhada a golpes de desilusão (e é ótimo para o amor real, parece sugerir o já velhinho Leigh, que as ilusões que o obstaculizam caiam por terra.) Nenhum dos dois parece demandar do outro algo que este não pode ser: conhecem-se bem demais para exigir do outro o impossível e desencadear, com isso, um séquito de frustrações, mágoas e represálias. Eles estão em paz na aceitação mútua e jovial daquilo que realmente são. Neste casal, os arroubos desordenados da paixão são quase nulos, mas eles vivem muito bem sem isso, no entanto, numa espécie de torrente contínua de comunicação franca, chamegos suaves e auxílio mútuo. É o amor quando encontra seu ponto de repouso, seu porto, seu ninho.

A autenticidade e a solidez deste laço permite a este casal viver uma vida aberta ao mundo e à uma sociabilidade mais pautada pela ética que pelo hedonismo. Não há nem sinal, neles, do "solipsismo a dois" que faz com que muitos pares acabem por banir toda a exterioridade de seu vínculo exclusivista. Em Another Year, a terna simbiose do casal protagonista não impede que eles estejam sempre muito disponíveis para dar uma forcinha aos amigos e parentes necessitados (desde um familiar que acabou de enviuvar e necessita de apoio na hora do luto até a divorciada deprê em crise de meia-idade, que morreria de cirrose depois de tanta bebedeira se não fosse o acolhimento dos camaradas). O casal feliz (sim, eles existem!) que Leigh retrata é comovente e exemplar no modo gentil e compreensivo com que lidam com todos os perrengues da vida; ambos são excelentes ouvintes, cheios de bom-humor e leveza, que tudo fazem para libertar de seus fardos os semelhantes que sofrem. Belo e inspirador.

Lesley Manville: excelente atriz inglesa capaz de visceral entrega a  personagens desafiadores

O cinema de Leigh, que sempre volta seu olhar para a gente comum, procura não só revelar o que há de extraordinário por detrás da aparência ordinária do common folk, como também convida o espectador a transcender diferenças através da percepção de uma notável irmandade do afeto. Quase tudo aquilo que os personagens de Leigh sentem na tela nós espectadores sentimos como potencialmente nosso: "nada do que é humano me é estranho", nos convida a sentir a arte deste grande cineasta. E o que ele expressa com mais força ainda é o poder da compreensão, do diálogo e da gentileza na construção de relações humanas que sejam menos agressivas, competitivas e conflitivas do que estamos acostumados a aceitar em nossa era selvagemente capitalista e individualista.

Há raros cineastas que tenham realizado uma obra que nos ensina tanto sobre como nos relacionarmos de modo mais sábio e, portanto, mais feliz (pois vínculos muito vivos unem a sabedoria à felicidade: a primeira não é justamente o saber que possibilita a segunda?). Depois de assistir uns 7 ou 8 filmes dele (alguns deles várias vezes), considero que há poucos artistas que tenham realizado mais que Mike Leigh em prol do que Lennon chamava, em seu utópico devaneio ateísta e humanista ao piano da imaginação, de "Brotherhood of Man".


sexta-feira, 8 de abril de 2011

<<< Ato Final (Deep End, de Jerzy Skolimowsky, 1970) >>>



Às vezes uma máxima carrega este título porque ela é remexida o máximo possível. O pastor de ovelhas da literatura russa Leon Tolstói disse: Se queres ser universal, cante sua aldeia. Aqui o lembrete ganha uma virada de trezentos e sessenta graus para analisarmos o lado oposto. O Swinging London, festinha de república metida a movimentação artística, onde a moçada londrina queria as ruas para desfilar as três graças da época --- rock, minissaia e anticoncepcional --- ganhou no cinema, tanto na figura do divulgador quanto na do estraga-prazeres, homens de outras nacionalidades. O italiano Michelangelo Antonioni ficou sendo o promoter indireto devido o grafismo levemente psicodélico de “Blow-up” (1967). O polonês Jerzy Skolimowisky arranhou o disco na vitrola e lançou um atualismo, não vindo das bandas de então, mas do comportamento pretendido, com seu divertido e grotesco “Ato Final” (Deep End).

Não se vê em nenhum momento a iconografia ingênua da Swinging London: a quase nudez esquálida e diáfana de moças de vestido curto de bandas eletrificadas tocando como se a brisa fosse o empresário. A silhueta da personagem de Jane Asher é bem torneada, lembrando uma Barbarella da baixa gastronomia noturna. Toda a longa sequência em que Sean B. Weske espreita sua paixão, até descobrir que a mesma é uma stripper, tem sabor de odisséia amalucada com uma fauna multi-facetada que só mesmo Londres poderia abarcar. Nesta, incluem-se desde a prostituta matrona de perna engessada até o chinês vendedor de cachorros-quente. Coroando estas vinte e mil léguas submarinas pelos inferninhos afora, vemos o jovem segurando a reprodução em placa do contorno da atração principal da noite, para depois cair nu na piscina com sua parceira de madeira, misto de mulher e prancha de surf.

Numa época em que os coveiros das aberturas de cinema estavam começando a se aposentar, Skolimowisky cria segundos brilhantes no início, quando a câmera, após centrar uma gota de sangue, desliza ante o quadro da bicicleta do protagonista. O fundo berrante do filtro vermelho deixa a ferrugem do veículo quase com a aparência de desenho, lembrando o estupendo Saul Bass, responsável por grandes inícios, como o de “Um Corpo que Cai” (1958), verdadeira tapeçaria moderna em movimento. Espécie de câmera de bolso, que de tão próxima, não nos revela de imediato a coisa filmada.

Jerzy Skolimowsky, mestre do cinema polonês

Vindo da aclamada escola de cinema de Lodz, Skolimowisky, assim como outro conterrâneo seu, Roman Polanski, carrega maleta imaginativa cheia de bugigangas sórdidas. Humor nervoso que brota de um potente olhar sobre o desejo humano; lances insólitos e soltos de enquadramentos; o clima enervante que acaba desaguando num comentário peralta sobre a atmosfera do cinema noir. Tudo isso para quebrar a espinha da ilusão do que se acreditava relegado na lata do lixo da História pela ação da juventude da época, o sentimento de posse do corpo do outro. O adolescente fica em brasa com a companheira de trabalho, exigindo uma exclusividade de lua-de-mel feudal. O amor livre está a léguas de distância.

(Por Du Pitomba)


domingo, 3 de abril de 2011

<<< Europa (Lars Von Trier, 1991) >>>








 
DEUS VOMITA OS MORNOS?


 "Assim, porque és morno, e não és quente nem frio,
vomitar-te-ei da minha boca."
BÍBLIA "SAGRADA", Apocalipse 3:17


“Só os padres julgam da veracidade de uma idéia
a partir da quantidade de sangue que ela fez derramar.”
SIMONE WEIL. Opressão e Liberdade.




O narrador Max Von Sydow, com voz soturna e grave (que se assemelha àquela que John Hurt emprestará à Dogville), fala no tom de um hipnotista que conduz um paciente a um estado de torpor. É como se o espectador do filme, antes de embarcar neste "Trem Fantasma" vertiginoso que Lars Von Trier concebeu, tivesse que ser posto num transe hipnótico adequado para vivenciar este pesadelo kafkiano que explora as entranhas da Alemanha de 1945, ainda atolada no sangue e na culpa da imensa carnificina mundial.

Obra que encerra a "Trilogia Europa" (complementada por The Element of Crime [1984] e Epidemic [1987]), este Europa é um dos filmes mais “estilosos” e "classudos" de Lars Von Trier. Nele, o cineasta dinamarquês dá um “show” de virtuosismo cinematográfico, remetendo aos mais clássicos noirs e aos filmes de espionagem mais sombrios de Hitchcock (não é à toa que a trilha sonora cita a clássica composição de Bernard Hermann para Vertigo – Um Corpo Que Cai).

Kessler é um forasteiro americano que vai para a Alemanha a fim de trabalhar na Zentropa, empresa de transporte ferroviário, numa época escabrosa em que o país é só escombros. Nas estações de trem, multidões de esfomeados, inclusive crianças maltrapilhas, mendigam. “Você escolheu um curioso momento para fazer turismo por estas terras desoladas, Herr Kessler”, lhe diz a Srta. Hartmmann, membra da família que fundou a Zentropa, e com quem o americano emigrado irá se envolver sexualmente numa trama altamente noir.

Kessler, mostrando seus laivos de idealismo, comenta que suas razões para estar ali nada tem de turísticas: “I had to come here”, comenta, como se estivesse cumprindo um dever moral e não somente aproveitando uma possibilidade profissional. “I believe that taking a job as a civilian here is a small contribution to making the world a better place”.

A princípio não se compreende direito o que este excêntrico homenzinho vê de tão “nobre”, eticamente falando, em seu novo emprego. Seria um meio de mostrar que o ódio contra os alemães não deve prosseguir contaminando os corações? Que a Alemanha, apesar de seus crimes inomináveis durante a guerra, merece o perdão da América (e do mundo)? E será que Kessler, agindo desse modo, vai conseguir mesmo fazer deste mundo um "lugar melhor"?


“It's time someone showed this country a little kindness”, diz Kessler, certo de poder ser o Senhor Ternurinha que vai espalhar misericórdia e gentileza made in USA pelas sombrias ruínas alemãs...

Não é que as intenções de Kessler sejam más – decerto não são. E os próprios alemães o reconhecem: seu empregador, Hartmman, faz dele um juízo positivo: “Kessler é um jovem sensato, que sabe que para cicatrizar as feridas da guerra nós precisamos dar as mãos”. Mas este é um filme de Lars Von Trier, artista que parece ter um prazer perverso em escancarar o quanto os mais nobres intentos acabam degringolando em inesperadas catástrofes...

O "bom moço" Kessler, tal qual a boa moça Grace (de Dogville e Manderlay), vai aprender de modo cruel quão distantes ficam a intenção planejada da efetiva transformação da realidade dada. Um tema recorrente retorna: Von Trier adora mostrar o esmigalhamento dos planos idealistas de personagens “metidos a bonzinhos” que acabam, em última análise, realizando os piores horrores. 

É que “fazer o bem” e “construir um mundo melhor” nunca é tão simples quanto os idealistas, em seus sonhos acordados, fantasiam. E este americano chega à Alemanha certamente iludido quanto às suas possibilidades concretas de “espalhar a ternura” através de um país onde os Aliados estão enforcando os alemães e dependurando-os nos postes com placas de “Lobisomem” coladas aos cadáveres pendentes...


O cessar-fogo ocorreu há pouco, mas a 2ª Grande Guerra ainda não acabou. Os americanos, na Alemanha, estão explodindo guindastes, apossando-se de patentes de empresas químicas e destruindo armamentos, tudo em prol do impedimento da ressurreição militar alemã. Já os alemãos que contribuíram com os aliados durante o conflito estão sendo assassinados pelos nazistas. É um tempo de sabotagem, de desconfiança, de tumulto... Tanto que o coronel americano oferece a Kessler um revólver, dizendo que “não se pode fazer um mísero movimento neste país sem uma arma”. Nosso nobre idealista recusa. 

Este homem, que estava na Alemanha na esperança de dar um "bom exemplo" de "reintegração" pacífica entre os povos, que se recusava a continuar sendo bélico e queria trabalhar pela cicatrização das feridas de guerra, irá descobrir, para infelicidade de suas ilusões de estar “do lado do Bem”, que a empresa onde está trampando transportava judeus para os campos de concentração. O trem das Boas Intenções se extravia e cai no pântano da vergonha. 

Estar trabalhando para a Zentropa, o que ele julgava que pudesse ser uma posição frutífera, passa a ser uma viscosa gosma de podridão e asfixia. E ele só descobre este “detalhe” depois que já se casou com a Srta. Hartmman, filha do magnata dos transportes que fez de seus trens imensos vagões-da-morte para aqueles seres humanos que os nazis viam como nada mais que “gado humano” a ser abatido nas mil Auschwitzes do III Reich....

Lars Von Trier

Por mais “puro” que a gente se pretenda, uma coisa é a gente achar que possui “princípios éticos” excelentes, outra é colocá-los à prova em meio à uma realidade brutal cheia de relações sociais corrompidas. O americano "metido a bonzinho" logo irá se enfezar, enlouquecer, ter um ataque psicótico e notar em delirante desesperado quão inúteis eram suas nobres intenções. Von Trier constrói uma eloquente narrativa mostrando algo que ele frisa com frequência: um sujeito que quer ser "bondoso" mas é “arrastado por forças maiores” a cometer o mal.

Ah! a "fragilidade da bondade"! (lamentemos aproveitando a expressão de Martha Nussbaum...)

Por estas e outras, Europa merece lugar de destaque na extensa filmografia que lida com a “culpa” da Alemanha de Hitler, alguns  filmes tratando especificamente dos julgamentos a que líderes e funcionários nazi foram submetidos (caso do clássico Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer, ou do recente O Leitor, de Stephen Daldry), outros à procura de “histórias edificantes” em meio à grotesca barbárie (caso de A Lista de Schindler, de Spielberg, e O Pianista, de Roman Polanksi), até os inumeráveis que lidam diretamente com o Holocausto e suas múltiplas facetas (Noite e Névoa [Resnais, 1955], The Sorrow and the Pity [Ophuls, 1959], O Diário de Anne Frank [Stevens, 1959], A Escolha de Sofia [Apkula, 1982], Europa Europa [Holland, 1990], A Vida é Bela [Benigni, 1997], Amen [Costa-Gravas, 2002], Os Falsários [Ruzowitzky, 2007], Shoah [Lanzmann, 1985], Arquitetura da Destruição [Cohen, 1989]).

Importante frisar ainda que o debate religioso, que se dá na cena do jantar entre os poderosos capitalistas alemães, também é de pleno interesse e ecoa profundamente nos episódios do filme. Kessler, que declara não ser um homem religioso, “provoca” o padre dizendo que, no campo de batalha, cada um dos exércitos imagina que Deus está do Seu lado (tal procedimento já foi muito bem ironizado no clássico folk de Bob Dylan “With God On Your Side”). O padre retruca que, apesar de “Deus estar do lado de todos”, “quando alguém luta com fervor por uma causa, Ele [Deus] perdoa mais fácil quem desobedece Suas leis”.

Argumento absurdo e lunático, e pra lá de perigoso, que transforma do fanatismo num fator propiciador da clemência divina e que convida o crente a cometer os piores horrores, já que a “ardência de sua fé” fará com que tudo seja mais facilmente perdoado pelos “tribunais lá de cima”. Simone Weil, cáustica, bem percebeu a absurdidade desta idéia: “Só os padres julgam da veracidade de uma idéia a partir da quantidade de sangue que ela fez derramar...”

O mesmo padre, voltando a deslindar o fio de sua teologia sanguinária, garante que os únicos que Deus não perdoa são os “mornos”, os “indiferentes”, os “descrentes”, aqueles que “não tomam partido”. Poucos personagens de Trier são tão assustadores e monstruosos quanto este pregador. Michael Haneke, com seu A Fita Branca, filme que parece influenciado pelo “climão” sombrio e pebê escuraço de Europa, também conseguirá vastos efeitos acabrunhantes com um personagem muito semelhante --- o pastor torturador-de-crianças daquela aldeia quase dogvillica... 

É quase uma cena de filme de terror quando este padreco-capeta, citando a Bíblia, diz: “porque és morno, nem quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca”. Sempre que leio este versículo apocalíptico, imagino um Deus mais cruel que qualquer Lúcifer, exigindo devoção fanática e sacrifício numa horrorosa orgia de prepotência... Lars Von Trier, enfant terrible e notório anti-Cristo, mais uma vez realiza aqui um notório "vade retro, cristianismo!" 

Minha impressão é que Von Trier receita altas doses de ceticismo, desconfiança e cáustica ironia que nos esfriem os ímpetos cegos, unilaterais e dogmáticos e nos livrem de sermos xiitas e esquentadinhos. Muitas vezes, parece ensinar Trier, aqueles que com mais ardor imaginam estar do lado do Bem são justamente os que mais sangue alheio acabam por derramar.