:: PINK FLOYD - THE WALL ::
de Alan Parker (direção) e
Roger Waters (roteiro e música)
(Inglaterra, 1982)
A primeira vez que assisti The Wall foi na escola. Algum ano do colegial, na aula do Miudão, professor de história (cujo irônico apelido não deve fazer vocês imaginarem um anão miúdo, mas sim um “pirulão” de dois metros de altura, daqueles tão altíssimos que as pessoas se perguntavam se era titular da seleção brasileira de basquete... lembro-me do Luisão, este sim realmente um miudinho, perguntando a ele: “como é que vai o tempo aí em cima, Miudão? Vem chuva?”).
Miudão, que falava o nome de Jean-Jacques Rousseau com muita solenidade, como se quisesse imprimi-lo em nossas mentes com toda a magnífica dignidade de que julgava possuidor o pensador francês, gostava de entreter a noção, imagino, de ser um professor tão ousado e avançado sobre seu tempo quanto Rousseau foi frente aos contemporâneos dele. O Miudão, que tinha um jeitão meio afeminado, que falava mole e com delicadeza, mas que jamais, que eu me lembre, foi “zuado” sarcasticamente pelos “palhaços da turma” num ataque incontenível de homofobia. Miudão: um professor de respeito, "freudiano", "cheio das psicologia", que às vezes fazia o favor de parar com as descrições sobre o Brasil colonial e as revoltas em prol da Independência e passava um filminho supimpa pra mostrar a todos que "a História estava viva..." e que não tem nada a ver com o passado, mas sim com nosso presente. Saber como chegamos aqui é saber o que somos e o que devemos fazer para nos tornarmos aquilo que seremos.
Passar The Wall era procedimento pouco ortodoxo, e muitos professores da época lá no Universitário pareciam estar seguindo uma regra ortodoxa da direção: finjam agir de modo ousado e aventureiro! "Não há nenhum outro modo para cativar esta juventude de hoje, do tempo do video-game e do video-clipe, sem fornecermos a eles um pouco de... espetáculo!" (É o que hoje suspeito que diziam, a portas fechadas, nas reuniões professorais). E alguns professores, entrando na onda da “espetacularização” das aulas que o colégio julgava necessário para seus fins comerciais de expansão imperial sobre as mentes da juventude paulista, começaram a agir de modo incomum, deveras.
Tinha o Thunder, 'fêssor de física, que fazia propaganda do heavy metal para aquela juventudezinha classe-média que, se dependesse de seus pais, cresceria ouvindo Nara Leão, João Gilberto e Caetano Veloso. Era fãzaço de Iron Maiden, fazendo até uma imitação altamente Bruce Dickinsoniana de “Fear Of The Dark”. Fazia cara de túmulo, engrossava a bela voz cristalina, e entoava o sombrio queixume:
“I am a man who walks alone
And when I'm walking a dark road...”
Gostava bem mais de Monsters of Rock do que de Playcenter (que, dizia, só prestava na época do "Noites do Terror"). Thunder, o único professor que tinha recebido permissão da diretoria de utilizar publicamente um "codinome" tão ridiculamente espetaculoso, como se tivesse saído brilhando de um seriado colorido da televisão. Thunder, prova viva da força do metal no ABC e do quanto o ABC acaba sujando tudo que toca com os vícios mais graves da classe média. Thunder: um raríssimo espécimen, capaz de ser ao mesmo tempo (pasmem!) metaleiro e inteligente. É ou não é um espanto?
Tinha o também o Iwao, o japonês de química que parecia mais despirocado que o Beackman. Parecia saído direto de uma HQ de ficção científica onde havia sido um cientista maluco e meio tirano que, apesar de ser intratável, vez ou outra fala de modo sacana com as estagiárias do laboratório, sem jamais conseguir levar nenhuma delas para a cama. Interpretava o piradinho, mas por trás do papel imagino que estivesse só um joão-ponês destes cansados, fatiguados, desencatados, que não vêem esperança na juventude e ensinam, no fundo, só pensando no ordenado.
Interessante reassistir The Wall hoje em dia, eu beirando os 26, o filme já com uns 28, e descobrir que ele re-desperta em mim toda uma série de memórias juvenis como se fosse uma madeleine proustiana. Uns 12 anos depois de vê-lo pela primeira vez, e duas faculdades depois, é um filme completamente outro em relação àquele que assisti, ingênuo e desnorteado, achando-o dificílimo de entender e não sabendo como articular palavra para descrever o que havia visto.
Na época eu não curtia Pink Floyd, nem tinha ouvido na íntegra o disco que Roger Waters e companhia compuseram no fim dos anos 70. “Another Brick In The Wall” era só mais uma canção pop que eu ouvia por aí, certamente da boa, mas que não me empolgava a ponto de queimar com um album do Floyd os sofridos 25 contos mensais que eu conseguia salvar para comprar Nirvana, Alice in Chains, Pearl Jam, Screaming Trees, Soundgarden.
Até hoje acho que, para quem começou pelo grunge, o Pink Floyd é fichinha. Àqueles que viessem me dizer, lá por 1998, que tinha sido muito “sombrio” o som do Floyd, eu mandaria que ouvissem “In Utero”, “Badmotorfinger”, “Vs.” ou “Ok Computer” para perceber que as trevas floydianas há tempos tinham ficado démodé, superadas em muito por tantas bandas (e sombras) melhores...
Envelheci uns 12 anos, de lá pra cá, e tentei me obrigar, pelo bem da ambição de me tornar um crítico musical decente, maneirar em todo tipo de juízo de valor negativo que seja baseado numa repulsa meio automática e ignorante. E só falar mal, se eu achar que isto serve de algo, só depois de conhecer direito a parada. E privilegiar o compartilhamento de boas idéias, boas dicas, boas sugestões de audição, ao invés do gratuita “desceção de sarrafo”.
Mas hei de confessar que um pouco da minha antipatia adolescente pelo Pink Floyd persiste, firme e forte, inextirpável. É que, para quem cresceu ouvindo os berros de Kurt Cobain, a dor de Waters e Gilmour sempre soou um tanto teatralizada, posuda e artificial demais. O adolescente que eu era, assistindo The Wall, achou aquilo, é claro, um bagulho pretensioso pra cacete, e que fedia a um certo artificialismo. Nevermind era muito mais real. A angústia cobainiana me soava como the real thing, enquanto que o Floyd me parecia ser triste por “escolha estética”... E ninguém que é triste "para o bem de sua arte", como que "de propósito", consegue fazer algo tão comovedor e poderoso quanto aquele que é triste, não por ter escolhido, mas por sentir-se verdadeiramente esmagado pela vida.
O filme trazia certos elementos dignos de serem considerados interessantes por um jovenzinho como eu, especiamente as cenas de rebeliões estudantis, com a escola sendo destruída pelos alunos em levante, não sobrando pedra sobre pedra. All in all it was just some bricks in the wall...
Para todos aqueles, como eu, que abominavam o ritual diário de levantar às 6 da matina para ficar trancado num colégio-presídio até a uma da tarde, tendo aulas que nada faziam para aliviar a angústia e o desnorteio de estar crescendo em meio a severas crises de fé, de identidade e de auto-estima, o cenário de anarquização que os estudantes impõe à escola no filme, virando a mesa com tudo em cima, tinha tudo para ter mó apelo.
Mas acho é que aquilo soava muito inglês pra ser verdade; algo tão distante do meu cotidiano! Pois eu estava acostumado a conviver com os pequeno-burguesinhos do grande ABC, na sua maioria uns filhinhos-de-papai muito bem adaptados à sociedade de consumo, que viviam detrás de grades e câmeras de vigilância, protegendo seus Vectras e seus Mega-Drives. E nada remotamente parecido a uma sublevação da ordem como aquela era ali possível.
É verdade que, no filme, a cena toda não passa da descrição de um daydream. O garotinho que ao crescer se tornará o “roqueiro Pink”, protagonista desta “ópera-rock” floydiana filmada, depois de tomar umas ardidas cacetadas na mão com uma palmatória, por ter sido flagrado pelo professor a escrever poemas na hora da aula, sonha a tal da alucinante “revolução” escolar... E sonha sozinho.
Algo em mim se identificava um pouco com esta figura do jovem inadaptado aos seus entornos e que sonha sozinho uma revolução impossível.
E algo em mim certamente se identificava com a metáfora do Muro; que desde a primeira “assistida” eu já tinha sabido muito bem que representava não um muro físico, como o de Berlim ou o da China, mas, pelo contrário, um muro psíquico.
The Wall parecia ser a descrição de uma “sensação psicológica” de asfixia, de estar preso num labirinto, de bater eternamente a cabeça contra uma parede intransponível, mas levado a um extremo que eu desconhecia, até então. Por mais fundo na fossa que eu tenha ido na adolescência, a ponto de ouvir Joy Division com a devoção de um discípulo, sempre achei que não tinha chegado a um nível tão fodido quanto aquele cara ali na tela tinha.
O filme, pontuado pela música do Pink Floyd, me soou “negativista”, desanimador. Eu, que ouvia Nirvana com uma devoção que não sei se consegui votar a alguma outra banda nesta vida, reclamando contra o negativismo dos outros! E enxergando em Cobain alguma espécie de “grande libertador”, que iria ensinar toda uma geração a como “se purgar” de toda angústia (ah, santa quimera!) através da catarse.
É como se eu não quisesse enxergar o óbvio: que Cobain tinha enfiado uma bala de espingarda na cabeça, aos 27 anos de idade, largando uma filha pequena e uma esposa pelo caminho, para morrer uma morte obscena, rodeado por seringas de heroína e lágrimas, no meio de uma floresta extremamente escura e solitária. E hoje sei tão bem que um homem que teve uns Last Days semelhantes àqueles que Gus Van Sant pintou na telona não me desperta o desejo de ter um destino parecido!
De qualquer modo, na época o cobainismo parecia uma solução. E o video-clipe de “Smells Like Teen Spirit” me excitava mil vezes mais do que a cena em The Wall em que os jovens, marchando como soldadinhos, com rostos uniformizados, são despejados num moedor de carne, tornando-se... carne moída. Que as imagens eram eloquentes, quase chocantes, deveras memoráveis, sem dúvida. Mas acho que eu, desde então, já lia naquilo um certo exagero grandiloquente, que se contrastava com o excesso abusivo e apunkalhado do Nirvana.
É: acho até hoje que para quem começou no Nirvana o Floyd sempre vai parecer fake.
Hoje, reassistindo The Wall com mais senso crítico e repertório cultural que naquela época, o assisto com uma antipatia ainda maior do que quando, na escola, me deixei fascinar, um pouco, pelo que eram então seus “mistérios”. Hoje The Wall não me parece nada “misterioso”, mas muito mais um tanto truculento, sem grandes sutilezas poéticas, adeptos duma técnica cinematográfica de "bombardeio" que não acho mais tão eficaz.
The Wall é um filme de contrastes radicais, de situações extremadas. Há o extremo autismo do homem completamente trancafiado em si mesmo, que pode ver a boca dos outros se movendo mas não pode ouvir o que eles estão dizendo. Há o infantilismo do homem que ainda anseia pela aprovação da mamãe super-protetora de sua infância. Há a neura sexual, o pavor da vagina, que rendeu todas aquelas animações espantosas em que uma boceta dentada, meio vampira e meio planta carnívora, ameaça o pobre falo amedrontado com o engulimento e quem sabe que outras tenebrosidades...
The Wall também é um filme que, inegavelmente, bota o rock and roll em questão, filosoficamente falando, de um modo como poucos filmes da história fizeram. "Pondo os pontos de interrogação bem no fundo", pra usar uma expressão do Wittgenstein. Um filme de quem leva o rock and roll a sério; não exatamente como música, mas como um estilo de vida possível. E um filme que tem o ponto positivo de não vender um deslumbramento ingênuo em relação a ele. The Wall não vende o rock and roll como a última bolacha do pacote. E eu nunca pude ver muita verdade no showzinho à la Guns'N'Roses, por exemplo, de quem parece “celebrá-lo” como se fosse a maior de todas as delícias, um duradouro orgasmo prolongado; eu preferia o desilusionismo que eu achava estar presente às mancheias no Nirvana e de modo mais disperso e menos genuíno também no Pink Floyd.
O grande problema com o The Wall, desde o começo, foi a falta de um personagem digno de ser amado. Sei muito bem que a intenção de Waters e Alan Parker jamais foi fazer espectador algum morrer de amores pelo protagonista. Atingir este efeito, aliás, seria um imenso fracasso artístico; mais que isso: seria uma canalhice ética. Não; aquele cara não está ali para ser amado, idolatrado, salve salve.
Está ali como uma pessoa digna de piedade. Alguém num estado lastimável. Alguém atravessando um pesadelo mental. Eis aí o ponto: The Wall é um filme carregadaço de neurose. É talvez um dos maiores “clássicos da neurose” em todo o cinema dos anos 80. Hoje acho que já foi superado neste quesito por muitos filmes melhores; é só pensar no Mulholland Drive – Cidade dos Sonhos do David Lynch ou no Almoço Nu do Cronenberg, pra ficar só em dois exemplos.
Mas é fato que o filme representa um bom exemplar do gênero “filme de neurose”, que transita entre a paranóia, o autismo, a psicose, a depressão, a esquizofrenia, o Complexo de Édipo, dentre outras psicopatologias, de modo a formar quase um compêndio fílmico de fodições mentais. E é fato também que o filme tenta ser consciente das reverberações sócio-políticas das neuroses individuais, apesar de soar mais distópico e de horizontes sombrios do que otimista em relação a qualquer tipo de mudança "político-social".
No filme, como vocês devem se lembrar, vemos Pink se transformando, a certo ponto, num fascitóide linha-dura, que em espetáculos de massa que lembram comícios do Partido Nazista, as massas o cultuam junto com uma nova suástica formada por dois martelos cruzados. Este tirano, cheio de gel no cabelo, vestidinho de preto, meio bicha-louca e meio psicótico reprimido, vai mandando para a parede (de fuzilamento) os gays, os negros, os judeus... É a coisas desse naipe que me refiro quando falo que falta “sutileza poética” no filme: é essa truculência comunicativa que faz The Wall, em sua pretensão de ser “poesia visual”, me soar como mera tentativa de poesia... poesia abortada.
O filme até que funciona, de certo modo, como descrição da “gênese” de várias disfunções psíquicas, fazendo lá de suas acusações contra o sistema educacional autoritário, a repressão sexual, o super-protecionismo materno, a beligerância e o pesadelo da guerra. Mas a crítica é sempre um tanto rasa, pouco compreensiva, não fornecendo muitas perspectivas de melhora nem sugestões pragmáticas válidas. The Wall acaba soando como mera descrição de labirinto; mas não nos ajuda muito a sair dele. Só descreve a vastidão do deserto ao redor de todos aqueles que se emparederam em si mesmos e se tornaram comfortably numb, mas sem oferecer lá de cima, da clarabóia, uma corda para puxar para fora do poço os condenados --- que somos nós.
Poderão dizer, e com toda a razão, que Kurt Cobain fazia exatamente o mesmo: só gritava de dentro do labirinto. E um labirinto que ele confessou não conseguir enfrentar quando enfiou, tal qual Maiakósvki décadas antes dele, um balaço no crânio.
Mas o adolescente que eu fui (e acho que isto persiste quase inalterado) enxergava com muito mais entusiasmo os procedimentos catárticos que tanto tinham conquistado minha devoção pelo Nirvana, e que fizeram Nevermind ser tão predileto no meu som (e no de mais uns 10 milhões em todo o planeta...). Ali havia algo como uma radical tentativa de jailbreak, uma ação para quebrar a gaiola. Enquanto que The Wall ficava, como um louco em sua cena de hospício, só pintando arco-íris em sua cela ou alucinando com revoltas imaginárias nunca postas em ação. Se rejubilando de ser triste e atormentado dentro da gaiola, detrás do muro, quando o que era preciso era simplesmente sair dela. Demolir o muro.
Bem sei que o filme acaba --- fim deveras clássico --- com os tijolos voando. Estrondo absurdo. O equivalente artístico da queda do Muro de Berlim (e, de certo modo, historicamente profético). Há ali, me parece, uma certa concessão ao “otimismo”, por assim dizer, um piscar de olhos para um novo futuro nascente. É como se a explosão do Muro fosse certamente um símbolo de bom augúrio, confirmado pela criança (viva a renovação!) que esvazia o coquetel-molotov, depois de não gostar de seu cheiro.
Mas o que The Wall faz é só dizer que esta imensa cadeia de bricks on the wall deve ser dizimada, mas sem saber como dar boas dicas sobre como fazê-lo: é como se apontasse para um alvo, ao mesmo tempo que confessa sua própria apatia e incapacidade para atingi-lo.
Mas o que The Wall faz é só dizer que esta imensa cadeia de bricks on the wall deve ser dizimada, mas sem saber como dar boas dicas sobre como fazê-lo: é como se apontasse para um alvo, ao mesmo tempo que confessa sua própria apatia e incapacidade para atingi-lo.
"Confortably Numb"