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segunda-feira, 23 de maio de 2011

<<< The Human Planet (BBC Series) >>>

"Há muitas maravilhas, mas nenhuma
é tão maravilhosa quanto o homem.
Ele atravessa, ousado, o mar grisalho,
impulsionado pelo vento sul
tempestuoso, indiferente às vagas
enormes na iminência de abismá-lo;
e exaure a terra eterna, infatigável,
deusa suprema, abrindo-a com o arado
em sua ida e volta, ano após ano,
auxiliado pela espécie eqüina.
Ele captura a grei das aves lépidas
e as gerações dos animais selvagens:
e prende a fauna dos profundos mares
nas redes envolventes que produz,
homem de engenho e arte inesgotáveis.
Com suas armadilhas ele prende
a besta agreste nos caminhos íngremes;
e doma o potro de abundante crina,
pondo-lhe na cerviz o mesmo jugo
que amansa o fero touro das montanhas.
Soube aprender sozinho a usar a fala
e o pensamento mais veloz que o vento
e as leis que disciplinam as cidades,
e a proteger-se das nevascas gélicas,
duras de suportar a céu aberto,
e das adversas chuvas fustigantes;
ocorrem-lhe recursos para tudo
e nada o surpreende sem amparo;
somente contra a morte clamará
em vão por socorro, embora saiba
fugir até de males intratáveis."

SÓFOCLES (496-406 a.C.) - Antígona.
Tradução do grego: Mário da Gama Kury
in: A Trilogia Tebana - Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona
(Editora Jorge Zahar, RJ, 1989)


A admiração e o espanto frente ao engenho humano para a sobrevivência em habitats dos mais hostis, diante de predadores de força física e ferocidade largamente superiores, não é nada recente - como testemunha este lindo trecho da Antígona de Sófocles, uma das mais célebres das tragédias gregas. The Human Planet, seriado da BBC recheado com imagens deslumbrantes e estórias prodigiosas sobre a vida humana neste planeta Água, compartilha deste assombro pelos feitos do animal homo sapiens. Registrada por lentes de altíssima definição, a sobrevivência humana em desertos e geleiras, montanhas e selvas, é retratada de forma cativante, de modo a expor tanto a "plasticidade" adaptativa de nossa espécie quanto as forças descomunais e impiedosas de uma Natureza que nos supera, às vezes nos esmaga, sempre nos fascina. O vozeirão do narrador John Hurt (Dogville) e a trilha sonora grandiosa ajudam a fisgar o espectador e fazer suas mandíbulas despencarem ao chão. Cenas um tanto chocantes de homens obrigados a se alimentar de tarântulas e morcegos, por exemplo, ou enfrentando penúrias extremas em cus-do-mundo onde a civilização é precária, podem incomodar os estômagos mais sensíveis. Mas aí está outra das qualidades da série: re-inserir o homem no mundo natural, ao invés de referendar lorotas criacionistas, mas não se esquecendo de sublinhar o quanto o descompasso no desenvolvimento técnico-científico entre diversas culturas, sem falar nas cegueiras da ganância e do descaso que imperam nos países mais ricos (muitos tornados ricos através do saque imperialista, é claro!), condenaram vastas regiões e populações do globo a uma vida animalesca, semi-bestial, reduzida ao que a Hannah Arendt chama de labor: a dura lida pela mera sobrevivência física, subtraída a existência de tudo o mais que torna bela a condição humana.  Recomendado!



domingo, 8 de maio de 2011

<<< Monty Pyhton e o Cálice Sagrado (UK, 1975) >>>


Chacota e escárnio às toneladas é o que o Monty Python derruba sobre a mitologia do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda neste clássico do humor britânico. A burrice humana em suas mais de mil formas é retratada sem perdão.

Ninguém escapa: os reis, os nobres, os latifundiários e as autoridades eclesiásticas são todas soterradas debaixo das infames tirações de sarro de Terry Gilliam, Terry Jones e cia.

A absurdidade, mais que apenas um truque para arrancar o riso, é usada como um meio de escancarar o quão absurda era, de fato, a ideologia que motivava estes cavaleiros pomposos e posers que, em busca do Cálice Sagrado, realizam as mais ridículas e profanas das idiotices.

Retratando um período histórico remoto (a Inglaterra medieval de cerca de 930 d.C.), obviamente distorcido pelas lentes da zombaria, o filme não deixa de fazer uma crítica certeira (e necessária) a muitos dos absurdos do pensamento medieval.

A certo momento, personagens discutem a plausibilíssima teoria de que o planeta Terra seria do formato de uma banana. Dizer que é ciência "rudimentar" seria eufemismo. Tempos afundados na superstição e no obscurantismo eram aqueles. Num vilarejo, homens que mais parecem ogros prendem uma mulher e querem queimá-la como bruxa. Pedem permissão ao chefe da tribo para lançar a herege na fogueira, tendo a delicadeza de antes travesti-la com um nariz falso e um chapéu que só pode indicar que a cidadã está envolvida em abracadabras pagãos.

O sapientíssimo líder religioso então julga o caso, tentando averiguar se tratava-se mesmo de uma feiticeira, de pacto com o demônio, merecedora do fogo terreno que prenuncia os eternos incêndios infernais onde torram os danados.

Nos manuais daquele cristianismo truculento da época, um bom teste empírico para decidir se uma mulher era bruxa ou não era... tacá-la na água. Se ela afundasse, bem, estava limpa de pecado. Se não afundasse, porém... tadinha! Era sinal inequívoco e indubitável que recebia auxílio de Lúcifer para boiar. Em suma: a suspeita ou morria afogada, ou morria queimada, pois assim exigia aquele Deus que, segundo a Bíblia, havia criado Eva a partir de uma costela de Adão e depois expulsado o casal do idílico Jardim das Delícias quando a desgraçada tinha mordido o fruto proibido (tornando-se a responsável primeira por todos os males da humanidade, condenada a dar à luz em meio à dores lancinantes e, claro, receber dos bons cristãos uma boa espancada toda santa semana). O filme faz aqui uma crítica afiada ao machismo revoltante de religiões altamente misóginas como o cristianismo e o Islã (este então... leva isso a um extremo ainda mais indignante...).

O Monty Python, neste filme, também é certeiro na crítica ao velho preconceito do "direito divino dos reis". O Rei Artur, que faz pouca coisa no filme além de se foder o tempo inteiro, sendo xingado de "fazedor de cortinas" e "mijão", considera-se a última bolacha do pacote em seu delírio de grandeza mesclado com fanatismo religioso babaca. Quer impor seu poder tirânico a camponeses que vivem em comunidades praticamente comunistas com um blá-blá-blá imbecil sobre mitológicos rituais onde teria sido escolhido pelos poderes de cima para reinar com sua Excalibur sobre os homens - que obviamente lhe devem obediência e veneração.

É tudo que ele não vai receber. Pois o humor do Monty Python é extremadamente irreverente. Pois "irreverência", segundo o Aurélio, é sinônimo de "falta de reverência" ou "desacato". O que os humoristas britânicos fazem aqui, e com muita graça, é a recusa em acatar as abobrinhas que os poderosos contam. Nos ensinam a desconfiar destes loroteiros profissionais e a não cair de joelhos diante de mitologias fabricadas por nenhum outro motivo senão prostrar o povo e fazê-lo obedecer aos caprichos dos privilegiados.


Numa das cenas mais clássicas, o Rei Artur batalha contra um cavaleiro que leva sua insolência até o mais extremo. Têm seus braços cortados, mas continua chutando a bunda do reizinho. O rei, despeitado, lhe corta as pernas, mas o "toco" humano continua xingando o monarca de cagão. Artur enfim se vai, mas com os ouvidos vermelhos de tanto ouvir xingo. "Seu covarde, volta aqui", prossegue o irrevente toquinho, "que eu mordo fora tuas pernas!" Símbolo eloquente do que este filme (e este coletivo de artistas) queria fazer com os discursos ridículos dos pretensos senhores do mundo, amparados em lunáticas crenças de estarem sendo amparados pelos senhores dos céus: cobri-los todos de tomates e de ridículo, ainda que sob pena de ter uns membros amputados.

<<< The Fourth World War >>>





4 - 5 - 6

sexta-feira, 6 de maio de 2011

<<< Assassinos por Natureza (de Oliver Stone, 1994) >>>


DISNEILÂNDIA DA VIOLÊNCIA

- Oliver Stone, numa cine-HQ parodista, fotografa o fascínio do público pela Violência
e o sensacionalismo do aparelho midiático pra retratar uma geração enlouquecida
-

“A idéia comercial de Isaías era criar, a princípio um, e por fim toda uma cadeia de centros de violência, cada um nas proporções de um parque temático, compreendendo estandes de tiro com armas automáticas, aventuras paramilitares imaginárias, lojas de presentes, dependências para refeições e salas de videogames para as crianças, pois Isaías visava uma clientela familiar. Fazia também parte da idéia uma planta padrão e um logotipo para efeito de franquia. Isaías sentou-se junto ao grande carretel de cabo que servia de mesa, fazendo diagramas com tortilla chips e disparando sonhos - ‘Aventuras no Terceiro Mundo’, uma corrida de obstáculos na selva onde você poderia se balançar em cordas, cair n’água, metralhar alvos que saltam de surpresa sobre a forma de indígenas guerrilheiros... ‘Escória da Cidade’, que permitiria ao visitante varrer do mundo um amplo sortimento de imagens de tipos urbanos indesejáveis, incluindo Cafetões, Pervertidos, Traficantes e Trombadões, todos propositalmente multirraciais, de modo a oferecer todo mundo por igual, num ambiente de ruelas escuras, néon coruscante e música soprada no saxofone... e para o connoisseur em beligerância, a ‘Lista Negra’, onde se poderia barbarizar uma série de videotaipes das personalidades públicas que você mais odeia, exibidos individualmente nas telas de velhos televisores comprados a preços de ocasião e postos para desfilar numa esteira rolante, como patinhos de quermesse, de maneira que o seu prazer em explodir esses figurões tagarelas e posudos seria acentuado pela implosão dos tubos catódicos...” THOMAS PYNCHON, Vineland.


       Thomas Pynchon, um dos mais importantes prosadores da contra-cultura americana, escreveu seu Vineland pra tirar um sarro da Geração-Televisão e todos os seus vícios. Dele eu selecionei esse curioso trecho da epígrafe, onde se descrevem as fantasias comerciais de um dos personagens, que divaga sobre a possibilidade de criar uma série de Playcenters da Violência para o deleite das massas sedentas por se divertirem com a crueldade e o sadismo. Direto para o rol das fantasias utópicas mais malucas e irrazoáveis já retratadas na literatura, certo?

       Não tenho tanta certeza. Estará o nosso mundo assim tão longe do estado de ultra-violência imaginado pelo personagem de Pynchon? Não temos já uma infinidade de pequenas disneilândias da violência que podemos visitar e revisitar para saciar nossos desejos indóceis? Vejamos: no cinema, se empilham os Tarantinos e tarantinescos, os Jogos Mortais e os Velozes e Furiosos, como se o gore, o splatter e o trash tivessem invadido (quem diria!) o mainstream. Deliciamo-nos ao ver Beatrix Kiddo estraçalhar exércitos inteiros com sua Hatori Hanzo, mas secretamente achamos aquilo muito "light" e aspiramos por algo "mais forte" (que acharemos em ChanWook Park ou Gaspar Noé). Os estúdios parecem em competição pra ver quem produzirá o heróico filme que conseguirá bater o recorde de litros de sangue artificial derramado e de cadáveres largados pelo chão. Lotamos os cinemas pra ver massacres, chacinas e catástrofes e costumamos reclamar da “má qualidade” dos filmes em que ninguém morre (aqueles em que ninguém sangra, então, merecem certamente ser tacados direto no lixo da história).

    No computador, com um GTA ou jogo parente instalado, nos é dada a liberdade para realizar toda uma série de atos não exatamente recomendáveis, incluindo incendiar veículos estacionados, abrir fogo contra pedestres desarmados e atropelar velhinhas paralíticas sentadas no banquinho da praça. Com um Counter Strike ou qualquer dos inúmeros joguinhos de tiroteio gratuito, tenho acesso a toda uma diferente gama de metralhadoras, revólveres e bombas que devemos usar para massacrar o maior número possível de gente virtual. Pros que têm ânsias por realismo, dá pra ir visitar os campos de paintball, diversão tipicamente burguesa, onde os alegres participantes se divertem metralhando-se com bolas de tinta (que, apesar de não serem letais, são bem capazes de agraciar a vítima com doloridos hematomas). E nem vou começar a falar sobre o Cidade Alerta e o resto da TV brasileira mainstream que seria, como manda o clichê, “chover no molhado”. Já se vê que a idéia de centros de violência onde podemos nos divertir não tem nada de utopia ou irrealismo. É uma das marcas de nosso tempo. O "mal-estar na cultura" de que fala Freud, uma certa repugnância e agressividade que teríamos contra a civilização pelas renúncias institivas a que ela nos obriga, teria encontrado na indústria cultural um duvidoso modo de descarregar-se. O perigo é que, tal como o Alex de Laranja Mecânica, nossas retinas e cérebros comecem a vomitar de indisgestão ao ser obrigadas a assistir a tamanhos banhos de sangue. Corremos também o risco da indiferença: de começar a considerar a crueldade... uma trivialidade.

       "Assassinos Por Natureza", o polêmico filme de Oliver Stone, trata exatamente desse fascínio e feitiço da violência. É uma sátira social misturada com uma crítica cultural/midiática. Mas em nenhum momento o filme pretende ser realista: tudo por aqui é caricatural, exagerado, berrante, fantasioso. A salada de frutas técnica faz do filme uma ostentação um tanto excessiva de versatilidade: além de brincar de sitcom e de telejornal, o filme conta com uns pulos meio arbitrários do colorido pro pebê (Kill Bill é discípulo), inserções de trechos de animação (idem) e com sobreposição de imagens e de canções (notem como, na cena de abertura, a música da Patti Smith “entra por cima” da poesia declamada de Steven Jesse Bernstein, numa mixagem improvisada). A trilha sonora, a cargo de Trent Reznor (Nine Inch Nails), é um dos pontos altos: abrindo e fechando com o vozeirão grave de Leonard Cohen (“I’ve seen the future, baby... It’s violence”), e encontrando no refrão de “Rock and Roll Nigger” (Patti Smith) uma perfeita descrição do caráter dos personagens (“Outside of society / That’s where I wanna be!”), o filme agrada bastante aos ouvidos.


       O enredo é de uma simplicidade quase grotesca, e isso se explica logo nos créditos iniciais, quando pipoca na tela o mui elucidador crédito: STORY BY QUENTIN TARANTINO. Um casalzinho do Mal parte numa viagem sangrenta pela Rodovia 666. Chamam-se Mickey & Mallory (Woody Harrelson e Julliette Lewis), cuja gênese pode ter achado inspiração em outros semelhantes que a cultura pop costuma fazer de mitos, tipo Bonnie & Clyde, Thelma & Louise, Sid Vicious & Nancy Spungen... Sentam no carrão e partem pra estrada deixando pra trás uma “trilha de morte e destruição” (brrrrr). O casal assassina a família de Mallory, assassina todo mundo dentro duma lanchonete de beira de estrada, assassina todo mundo dentro de um supermercadinho, assassina policiais e ciclistas e índios e funcionários de posto de gasolina e quem mais tiver o azar de cruzar com eles.

Enredo bem semelhante ao do Terra de Ninguém (Badlands), de Terence Mallick (não confundir com o filme sobre a Guerra da Bósnia de mesmo nome), onde o casalzinho Martin Sheen e Sissy Spacek também vai metendo bala em todo mundo que encontra como se estivesse atirando em latas de refrigerante. Já a "psicodelia" lembra bastante os experimentos do Fear and Loathing In Las Vegas, do Terry Gillian, ou do Réquiem Para um Sonho do Aronofsky. Em Assassinos Por Natureza, os personagens são todos bem orangotangos, com poucas características capazes de nos fazer acreditar que são humanos; não se deve esperar que eles ajam como pessoas: eles agem como personagens de histórias em quadrinho. E é assim mesmo que ‘Assassinos por Natureza’ deve ser visto: como uma HQ cinematográfica (formato que Tarantino parece ter abraçado no seu Kill Bill) lotada de humor negro e com inteção de paródia.

              A história fica um tanto mais interessante quando se insere a discussão sobre a mídia americana, o sensacionalismo, as ânsias frenéticas pela fama televisiva e o fascínio do público por serial killers. O filme se passa nos anos 90, a década da "InfoRevolução", como alguns já começam a dizer. A ironia é fina quando Stone transforma todas as janelas do filme em televisões. A alfinetada é certeira: quem quer “ver a realidade”, hoje em dia, não costuma ter a idéia (já bastante antiquada) de abrir a janela e olhar pra fora... prefere ligar a TV. Nosso “acesso ao mundo exterior” deixou de ser um buraco na parede que enviava nossos sentidos para a experiência imediata do mundo e passou a ser o amontoado de imagens que explodem pra fora do Tubo. Nada muito diferente do que o Saramago denunciou no seu “A Caverna”, quando tentava assustar a humanidade dizendo que voltamos todos para a Caverna de Platão e não vemos mais as coisas, só as imagens. A world of ghosts.

       Mickey e Mallory, em todos os seus massacres, deixam sempre alguém vivo pra contar a história pra mídia, que está achando muitas felicidades de audiência na transmissão das aventuras do casal mais cool da América. Wayne Gale (Robert Downey Jr) é a caricatura do jornalista sensacionalista que vende sangue na TV entre o jogo de futebol e os comerciais da Coca-Cola. E Oliver Stone deixa muito claro que o público está adorando o espetáculo e que considera Mickey & Mallory como heróis nacionais.

       E aí se abre espaço para algumas reflexões interessantes sobre as relações do homem moderno com a violência midiática. Muita gente tem a mania de demonizar o aparelho da mídia por sua falta de escrúpulos por botar no ar tanto conteúdo sanguinolento, mas é preciso perguntar: haveria tanta oferta se não houvesse demanda? Essas obras não vem satisfazer aos desejos do público, ou ao menos parcela dele? Não será o momento de admitir que, secretamente, nos deleitamos com o espetáculo sangrento, que bebemos sangue artificial com o mesmo prazer com que degustamos um bom vinho?


       Daria pra evocar aqui uma teorização complexa sobre os instintos destrutivos e mortais que titio Freud supunha estarem no inconsciente de cada um de nós, principalmente causados pelo nosso secreto ódio à civilização. A moralização, a educação, a família, a polícia, entre outros, cuidam de domesticar a besta interior para que o bicho homem, acalmadinho e adestrado, possa viver em sociedade. Mas essa renúncia aos desejos faz com que o sujeito fique um tanto emputecido contra a civilização, e aí surge um anseio violento que desejaria aniquilar a sociedade e suas malditas regras. Como esses desejos dificilmente podem se manifestar no mundo objetivo (pois seria a guerra de todos contra todos de que fala Hobbes e decairíamos para o estado de selva, onde a vida é curta e vivida no perpétuo temor de morte violenta). Uma hipótese é a de que a violência midiática serviria como um meio para que as pessoas pudessem descarregar suas ânsias destrutivas e anti-sociais despertadas pelos interditos e domesticações impostos pela civilização. Por que há tanta gente que demanda violência da mídia? Só dá pra explicar isso dizendo que esses jogos e filmes são meios alternativos para realizar desejos que não podem ser realizados no meio social sem que o sujeito seja severamente punido (moralmente ou judicialmente).

       (Não que esse tipo de filosofagem psicanalítica tenha algo a ver com o filme em si: é só algo que aponta alguns caminhos para que tentemos entender a violência sem o simplismo de tacar toda a culpa na mídia [que perverteria esses seres angelicais e pacificíssimos que são os homens], nem recorrer a um mau gene inserido em "personalidades inatamente violentas", idéia essa que abre espaço para os mais sórdidos fascismos [se há quem nasça errado, por que não poderíamos exterminá-los?]).

       Mas será mesmo que os produtos midiáticos sanguinolentos são criados para abastecer a uma demanda subjetiva por catarse de violência pré-existente nas pessoas, ou será que ajudam a criar, ou manter, ou aumentar, esses desejos destrutivos? Parece um círculo vicioso. No filme de Stone, os dois “lados” da questão são retratados: o público pedindo por violência e recebendo-a da mídia, e a mídia fomentando as bestas internas do público para continuar vendendo-lhe violência. Ao mesmo tempo que o filme tenta constatar esse fascínio das massas pela TV (dizendo que a mídia, de certa maneira, só dá ao público o que ele deseja), aponta para outra direção quando sugere que a perversidade de Mickey & Mallory é produto do excesso de televisão (o foco se inverte: a TV criaria “personalidades violentas”, ao invés de somente fornecer produtos para suprir desejos violentos de personalidades “inatamente” violentas). Quando o casal está na cabana do índio, por exemplo, há uma projeção de letras no corpo dos dois que deixa claro: eles têm um DEMÔNIO, uma DOENÇA, causada pelo EXCESSO quase "junkie" DE TV.

       Por isso não consigo ter certeza se o título do filme é irônico ou tá falando sério. O filme não se decide a se fechar como defensor de uma das duas teses: a violência é um atributo inato de certas personalidades ou é uma característica adquirida por razões X e Y? O mais provável é que esse título ‘Assassinos por Natureza’ seja totalmente irônico, já que o filme parece se inclinar mais para o lado da violência adquirida por Mickey e Mallory, principalmente por dois fatores: o fato de ambos terem sido abusados quando crianças e o excesso de contato com as podridões televisionadas, e não por algum dado genético inato.

       É o próprio discurso de Mickey, durante a entrevista que dá a Wayne Gale, que sustenta a tese do ‘assassino por natureza’: o cara evoca um argumento biológico (a natureza é mesmo uma carnificina, com todos os bichinhos se assassinando uns aos outros...) para dizer que, de certo modo, a violência é inata na “essência do homem”. Essa declaração deixa o entrevistador em êxtase: o assassino acaba de livrar a TV de qualquer culpa, de qualquer responsabilidade. Mas logo depois Mickey se contradiz, quando está prestes a matar o entrevistador, e diz que “Frankenstein matou o Dr. Frankenstein”, dessa vez sugerindo que Mickey e Mallory são o Franskeinstein criado e alimentado pelo Dr. Tubo Televisivo.

       Um problema é que o filme permanece focado na crítica à Televisão e não ousa criticar o próprio Cinema Hollywoodiano, no que seria um exercício metalinguístico bastante interessante (a única pincelada que é dada no tema se dá quando o Tommy Lee Jones pergunta ao policial sacanão se Hollywood ainda não tinha tido interesse em fazer um filme inspirado na saga Mickley & Mallory). Não deixa de ser irônico que um filme altamente violento e sanguinário pretenda ser um manifesto contra o excesso de violência na mídia. Mais irônico ainda é que esse é um roteiro saído da cabeça de Vossa Excelência Quentin Tarantino, uma das pessoas menos aptas nesse planeta a ficar criticando o excesso de violência dos produtos midiáticos, já que ele próprio é criador de filmes sanguinolentos de altíssima penetração social. Se Tarantino quis criticar o sensacionalismo da TV e seu exagero em enfocar o sangue e as vísceras, acabou dando um tiro em seu próprio pé. Ou então fez uma autocrítica que equivale a cortar o galho onde se está sentado. Boatos que circulam por aí até contam que Quentin não gostou nada do resultado final atingido por Oliver Stone em cima de seu roteiro, e isso se explica muito bem: pois Stone apontou um revólver ideológico contra seu suposto "contribuidor".

       Afinal, Assassinos por Natureza é um filme bastante contraditório, e talvez tenha sido uma estratégia proposital. O filme é ao mesmo tempo uma denúncia da podridão midiática e é ele mesmo podridão midiática. Se aproxima da estratégia estética Hermes e Renato/South Park de crítica social: usar a paródia para expor o ridículo e a podridão da televisão, o que requer, afinal, fazer algo podre e ridículo em graus ainda maiores do que o normal. No mundo do filme, o excesso de televisão e de violência é a causa que irá, por efeito dominó, tacar a sociedade no caos e na anarquia (não só pelo Massacre de Mickey & Mallory, mas pela rebelião carcerária que isso acaba gerando). Mas o próprio filme contêm as características que ele próprio critica, vendendo violência empacotada para as massas como se sangue fosse um delicioso ketchup e nós os sedentos vampiros que o consome nas linhas de montagem da indústria cultural, instituição das mais perversas. Poucos filmes são tão ousados (e controversos) no questionamento da violência como fenômeno onipresente nas sociedades midiáticas dos nossos tempos, e assisti-lo é sempre um estopim para refletir sobre o que faz de nós seres tão rodeados (e implicados) em uma miríade infindável de "disneilândias da violência".
(Texto de Junho de 2004,
sacado do fundo do baú)

terça-feira, 3 de maio de 2011

<<< Lixo Extraordinário (Waste Land, 2010) >>>


"O filme tem efeito arrebatador por juntar arte e lixo, elementos quase opostos, não só pelo valor estético, mas também por sua representação social".
(André Miranda – O Globo)

"Os diretores reuniram bons personagens, que ressaltam a solidariedade oriunda do convívio diário".
(Daniel Schenker – Críticos.com.br)

"É um filme absolutamente essencial para discutir questões já antigas na representação problemática das classes no Brasil".
(Kleber Mendonça Filho – Cinemascópio)

                  "O filme emociona ao mostrar como aquelas pessoas tiveram sua auto-estima recuperada com o processo do trabalho de Vik".
(Walmir Moratelli – IG)

"Lixo Extraordinário é o retrato de um Brasil desigual e excludente em que milhares vivem em estado nulo de dignidade humana".
(Julianne Gouveia – Revista Vizoo)