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sábado, 15 de janeiro de 2011

<<< The Molly Maguires (de Martin Ritt, 1970) >>>





"I never could stand the sight of a man carrying a cross."



Nas minas de carvão da Pensilvânia, na década de 1870, um pouco depois do fim da Guerra Civil Americana e da Abolição da Escravatura, as condições de trabalho prosseguiam péssimas, escandalosas, desumanas. Os mineiros, muitos deles imigrantes irlandeses vivendo na penúria quase completa, penam como bestas-de-carga nas minas, recebendo centavos de salário-esmola. Só o bastante para que possam manter-se vivos até o dia seguinte, para voltarem à dura labuta que enriquece só o patrão, enquanto aos proletas resta somente o amargo consolo do uísque barato e do baralho. No horizonte, nenhuma perspectiva de melhora, só a de uma morte precoce (por tísica, tuberculose ou "acidente de trabalho"..).

O retrato dos martírios da classe operária e camponesa, presente em belas obras da literatura universal como Germinal de Zola, Vinhas da Ira de Steinbeck ou O Caminho Para Wigan Píer de Orwell, recebe a devida atenção da sóbria câmera de Martin Ritt neste The Molly Maguires. Mas o que interessa sobretudo ao diretor de Norma Rae é muito mais expor  o levante do que a via-crúcis, mais a revolta do que a resignação.

Partindo de uma história real --- um grupo de "radicais" irlandeses, os Molly Maguires, que realizaram uma série de atos "terroristas" em protesto contra a calamitosa existência que levavam como mineiros --- Martin Ritt fez um de seus melhores filmes. Há o suficiente de pancadaria e troca de tiros para não deixar bocejar o machão fã de filmes de ação. O climão de western, com os indispensáveis ingredientes de sempre (o saloon, o forasteiro-misterioso, a beldade virtuosa e difícil...), certamente agradarão de mão cheia aos fãs de Sergio Leone e Clint Eastwood. Já as intrigas e conspirações deixam The Molly Maguires com cara de thriller político inteligente, daqueles que faziam antigamente um Alan J. Pakula.


Sean Connery, que vive um dos líderes dos Molly Maguires, é um mineiro lacônico mas ponta-firme na hora de bolar, chefiar e pôr em prática ações revoltosas contra as autoridades opressoras: explodem trens que carregam o minério extraído, dinamitam seu próprio local de trabalho, sequestram policiais e atentam contra patrões... É duvidoso que estas atitudes exorbitantes, de um desespero incendiário, mudem de modo fundamental a estrutura da sociedade e da opressão; e Martin Ritt não é ingênuo a ponto de vender a lorota de meia dúzia de rebeldes, isolados com suas munições e conspirações, "virariam a mesa" em prol do proletariado. O que o filme realiza é muito mais uma crônica, cheia de empatia, mas também eivada de lucidez, sobre a trágica revolta de homens cansados demais da vida trash que levam, mas cuja rebelião está sempre sob o risco de ser violentamente esmagada pela polícia (que infiltra um espião, James McParlan, para surrupiar os segredos do grupo e levá-los a fazerem besteira).

A posição do personagem de Connery, no entanto, me parece pra lá de instigante. Indo na contra-corrente do discurso do padre da cidade, que garante que Deus irá condenar à danação eterna nas caldeiras do Inferno aqueles que apelarem para a Violência, este homem sustenta que a maior indignidade e o maior pecado seria permanecer em silêncio frente à exploração. Quando morre um dos mais veteranos mineiros da cidade, que carregou com modéstia e resignação o seu fardo por 42 anos, a última gota cai e faz a caldeira de indignação transbordar.

O "transe" em que ele entra neste momento é tão memorável quanto as idéias que ele então extravasa, quase como um personagem de Dostoiévski numa crise histérica. Cito de cabeça a "essência" de seu discurso: "Não devemos ir quietos para o nosso túmulo! É grotesco morrer em completo silêncio depois de sofrermos uma vida inteira de humilhação! Seria grotesco não fazer nem o som que faz um inseto ao ser esmagado pela sola do sapato! Expirar e não deixar no ar nem mesmo um mísero eco!"

Encontro muita beleza, muita coragem e muita justiça na revolta do "ímpio" que diz não suportar a vista de um homem que carrega sua cruz. Ele sabe que não tem opção entre perder e perder, mas prefere perder revoltado do que calado e resignado. É uma atitude que Albert Camus, suspeito, assinaria embaixo. Claro que é trágico que certos homens tenham que pagar com a forca (ou a fogueira da Inquisição...) por terem ousado se erguer contra um Sistema tão íniquo, mas tão poderoso que esmaga sem muito dispêndio de energia aqueles que se lhe opõem. Mas ao menos alguns se ergueram, brigaram, berraram seu desacordo e sua dor, ao invés de terem se encolhido como caramujos na aceitação passiva do inaceitável.

Museu Histórico da Pensilvânia: local da execução dos Molly Maguires.

The Molly Maguires é um filme notável por seu realismo pouco consolador. É fiel aos fatos históricos, que nos contam, inegavelmente, de um esmagamento dos revoltosos pela autoridades então no poder. Mas é também um filme que revela quão trágico, quão sublime e quão belo pode ser esta revolta louca, este levante de vitória quase impossível, esta tentativa de realizar o que todos tomam por irrealizável...

Os mártires, sabe-se bem, têm alto potencial de comovimento. No meu caso, me comovo mais com os mártires sem fé, que entregaram suas vidas na construção de uma vida melhor na Terra, do que os mártires religiosos, que por vezes assassinam em nome de um Paraíso que não existe, levando consigo aqueles que ficariam contentes de prosseguir em sua existência terrestre...

Prossigo achando revoltantes os discursinhos religiosos que tentam persuadir os sofrentes a carregarem quietos sua Cruz, como se fosse esta a mensagem de Jesus Cristo, ao invés de revoltarem-se contra aqueles que impõe aos homens as cruzes! E prossigo achando enojante quem convida as massas ao quietismo e ao conformismo, dizendo que a Recompensa Celestial não é desse mundo e que o Céu é ganho pelos "bem-comportados"... O que mais gosto em The Molly Maguires, e também em Norma Rae, dois filmes que sozinhos me fazem entronar Martin Ritt como um dos mais sábios dos diretores políticos que já conheci, é esta afirmação triunfante da luta ativa contra a resignação ovelhística, da bravura do rebelde contra o acanhamento do cordeirinho! Nele encontro uma visão-de-mundo que se assemelha à minha: melhor lutar pela Terra que pelo Céu; e, se for para morrer, que seja com o heroísmo dos justos ao invés de com o mutismo dos conformados.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

<<< Perdidos na Noite (Schlesinger, 1969) >>>


MIDNIGHT COWBOY
de John Schlesinger, 1969.

1969 foi um grande ano para a Cultura, daquela estirpe de rodopios-terrestres-em-torno-do-Sol que fazem a gente se sentir mal por ter nascido... tarde demais. Dá até vontade de compor um blues: "I Was Born Too Late", pra ir de par com "Born Under a Bad Sign"! Pois eu, por exemplo, à luz de 1969 fico a considerar que foi uma tremenda má sorte ter nascido em 1984, um ano que não foi como o imaginou George Orwell, é vero, mas ainda assim tá muito mais pra distópico que pra empolgante (mesmo que Reagan não seja exatamente o Big Brother, aquele topete horroroso me assustava quase tanto quanto o faria a tele-tela!).

1969, para muitos que o viveram, que testemunharam de perto sua  efervescência, e especialmente para aqueles que nasceram depois dele, sob o raio de influência de seu mito, é um ano a se reverenciar. Não de joelhos, que isso não fica bem, mas com o devido respeito. Bendito seja o ano marcado por coisinhas como Woodstock, flower power, Black Panthers, Che Guevara, Abbey Road, Timothy Leary, peace and love, LSD no suco de laranja dos Merry Pranksters e muita distorsão na guitarra (e nas veias) de Jimi Hendrix... Que tempos aqueles!!! Tudo conspirava para a ousadia, para o comunitarismo, para a psicodelia, para o experimento existencial com a consciência, com o outro, com a... vida!

1969 também foi um belo ano para os filmes. Para que tenhamos certeza disso basta assistir Midnight Cowboy - Perdidos Na Noite, clássico do britânico-nativo mas emigrado-para-a-América John Schlensinger. Dustin Hoffman, que tinha despontado alguns aninhos antes com A Primeira Noite de Um Homem, de Mike Nichols, escancara aqui o quanto é um ótimo ator, e tremendamente versátil,  ao encarnar um bandido perneta perdido nas solitárias noites de neón de Nova Yorke...

Mas quem brilha mesmo é Jon Voight, que vive o cowboy Joe Buck, caipirão despencado de pára-quedas na metrópole, direto do Texas, querendo tentar a sorte como hustler, ou seja, o michê que traça as grã-finas da cidade dispostas a pagar por seus serviços sexuais...

Dee Dee Ramone confessou, numa picante história de Mate-me Por Favor!, que fazia coisas semelhantes, ali no cruzamento da 53rd & 3rd, não exatamente por gostar de dar o rabo, mas porque precisava duma grana pro pico diário de heroína... A realidade que Joe Buck encontrará em Nova York não é lá tão diferente desta: o cowboy viverá coisas punk. Não estamos na New York do cartão-postal, mas naquela que Lou Reed já começava a retratar então: repleta de putas, junkies, cafetões, desocupados, vagabundos e mendigos, que dividem o espaço urbano com os poodles das madames e os arranha-céus das multi-nacionais e suas marcas piscando na noite... Penam para sobreviver ao dia muitos dos renegados da cidade, scum of the gutter. E os imensos prédios do Império Financeiro e da Bolsa de Valores observam em silêncio, com indiferença pétrea, os que aos seus pés penam e penam...


Se o Amérika de Kafka e o Dogville de Von Trier são duas das obras-de-arte que melhor fotografam a absurdidade e o sofrimento daqueles forasteiros que sofrem com o American Nightmare, Midnight Cowboy têm o mérito de demonstrar que não é preciso você chegar na América vindo de Praga ou da Prússia, ou seja, lá do cu do mundo, para que sofra as torturas cotidianas que o sistema impõe aos inadaptados a ele, ou àqueles exploráveis por ele. No próprio interior da América há violentas cisões raciais, preconceitos arraigadíssimos, fundamentalisto religioso à rodo, que bastam para que um texano passe pelo diabo em New York, tal como pena um nordestino em São Paulo ou um mexicano depois de cruzar La Migra...

Mas o clássico de Schlensinger não pretende que a política ou o retrato de um cenário cultural tomem o prímeiro plano em relação a algo tido como mais importante: descrever em minúcias a vida concreta de seu protagonista. Este não é um cowboy caricato: a era destas caricaturas unilaterais e maniqueístas estava acabando no cinema americanoo, e prova incontestável disso é que até Charles Bronson tinha sido reconhecido como um ator decente em Era Uma Vez No Oeste, de Sergio Leone, e que em 1969 John Wayne levou o Oscar de Melhor Ator por True Grit, passando a ser cada vez mais amplamente reconhecido como um dos grandes atores americanos, e não só um brutalhão a repetir sempre o mesmo personagem durão e voz grossa que acende o fósforo na sola do sapato e tem o gatilho mais serelepe do Oeste...

Jon Voight-Joe Buck é um sujeito boa-pinta, arrumado, convencido, seguro-de-si, enlouquecedor de damas, simpático com estranhos, sem medo de pôr o pé-na-estrada. É também um homem com um dom para a amizade, e que se amiga não exatamente com facilidade, mas com entrega e confiança.

 Uma espécie de Don Juan do Texas, de saco-cheio de lavar-pratos e ser pau-mandado do chefe numa lanchonetinha escrota do interiorzão carola, e que decide se mandar para a Cidade Grande em busca de, basicamente, ganhar um pão, mas com prazer incluso. Don't we all look for that mix? Mas, tal como Karl Rossmann, o garoto de 16 anos que protagoniza o Amérika kafkiano, este Joe Buck é um fruto um tanto verde para a metrópole. E a metrópole tratará de amadurecê-lo, ainda que a duros golpes. No pain, no gain. Não se cresce sem lágrima.

Há também um pouco de outsider neste cowboy: a selva de concreto estranha a presença deste bicho-do-mato. Mas este homenzarrão texano também traz um sopro de vida ao formigueiro urbano endoidecido, saturado de fanatismos, depressões e frágeis vínculos afetivos... Joe Buck não é só ensinado pela metrópole; ele ensina a ela um pouco daquilo de que ela tinha se esquecido. Pois civilizações podem cair vítimas de amnésia. E por vezes as pessoas mais imprevistas, vindas das latitudes mais estranhas, é que vêm para insuflar vida e humanidade a lugares onde ambas estavam dormentes e semi-esquecidas.

John Schlesinger, diretor de Perdidos na Noite (1969).


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