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terça-feira, 26 de outubro de 2010

<<< Medo e Delírio em Las Vegas (Tery Gilliam, 1998) >>>


FREAK KINGDOM!

ilustras: jason zuckerman


Uma trip gonzo-psicodélica alucinante. A narrativa é conduzida com o frenesi delirante de um Fellini ou Kusturica da era do ácido. O humor à la Monthy Phyton também marca presença. Gilliam fez um filme excessivo, verboso, grotesco, com uma estética caricaturista meio Assasssinos Por Natureza. É a ressaca moral da era hippie; ou pelo menos as ranzizices de Raoul Duke, gonzo jornalista, contra a falência do Ideal que tinha sido vendido por Timothy Leary...

Quase todas as viagens, aqui, são bad trips. E uma das "morais da história" não é nada florida: todo o sonho psicodélico tinha se baseado numa falsa expectativa das maravilhas que seriam causadas pela expansão da consciência. A época que o filme retrata - Guerra do Vietnã, Nixon capengando na presidência, truculência do FBI contra o "sinistro perigo dos entorpecentes", leis pesadíssimas nos Estados contra a posse de marijuana (20 anos de detenção; perpétua se você for pego vendendo)... - nada tem de comum com o sonho do comunitarismo hippie, amor livre, make love not war. O filme de Gilliam é mais herdeiro do "the dream is over" de Lennon, mas dito por alguém que nem por isso deixou de chapar. Fica por aí, head full of acid, provocando, quebrando a lei, experimentando todas as substâncias psico-ativas descobertas desde 400 antes de Cristo e escrevendo as reportagens mais impublicáveis de todos os tempos. E reclamando. Tanta mescalina para "abrir" os olhos, e tantas desoladoras e hostis realidades sociais! Quanto policial autoritário, quanto político corrupto, tanto sujeitinho fascitóide, quanta pilantragem, burguesice e péssima música pop! 

É o meio dos anos 70 e o American Dream, que pretende ter se instalado e estar prodigalizando seus benefícios, aparece aos olhos de Douke e Gonzo como um Infernal Pesadelo. A cultura de circo, de diversão compulsória, de entretenimento ruidoso por todos os lados, causa tamanha aversão no personagem de Johnny Depp que ele pontua: "isto é como o mundo ficaria se a Alemanha tivesse ganho a Segunda Guerra! Esta é a cara do novo Reich!" Acusações pesadas, que o filme não poupa, ainda que pareça, superficialmente, só a screwball-comedy do LSD...

Mas o buraco é mais em baixo: Fear and Loathing In Las Vegas têm pretensões contra-culturais. O texto é altamente beatnik, lembrando Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti e Bangs a toda hora. E era uma época ótima para a arte mergulhar na junkieland, que tinha achado em Irvine Welsh um tão intenso proseador contemporâneo. O filme de Gilliam não veio sozinho: fez-se acompanhar por Trainspotting, de Danny Boyle, e Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky.


A contra-cultura vai adiante fazendo a crítica de si mesma; ou melhor, passando sobre o crivo suas prévias encarnações. Medo e Delírio não é tão modesto quanto parece: não é uma "comédia maluquinha" qualquer, dessas que a Globo passaria sem pudor na Tela Quente. Pois Medo e Delírio pretende ser uma obra contra-cultural, de vanguarda, quase o novo Easy Rider. Pretende inclusive criticar a contra-cultura dos anos 60, mapeando suas ilusões, desfazendo suas quimeras, de modo ainda mais radical do que o clássico de Dennis Hopper. 

Mas o filme é decerto unilateral e peca por um retrato muito negativista dos efeitos das "viagens"; não há nenhuma discussão séria sobre a Experiência Psicodélica e seu potencial libertário como a encontramos em Aldous Huxley, Terence McKenna, Ken Kesey, no próprio Timothy Leary... Mas decerto que o filme escapa dos simplismos mais óbvios. Dificilmente pode ser acusado de fazer "apologia": as "nóias" e terrores e vômitos que as lentes de Gilliam nos fazem testemunhar são antes algo que cria aversão pela própria idéia de uma vida junkie. Também não se pode dizer, nem fudendo, que Gilliam que esteja se alinhando com os caretas, policialescos e militarzóides, que querem tratar "drogado" como lixo, lançar na cadeia, mandar pro campo de extermínio, criar uma Auschwitz for junkies


O filme é muito mais a crônica de um pretendente a escritor da contra-cultura: o próprio Thompson assumindo seu alter-ego quixotesco Raoul Douke, posto no meio do vórtex de uma cultura cheia de conflitos, contradições, quadradices, conservadorismos, pavores ao diferente, cegueiras brancas... Por isto há tanta eloquência na principal crítica que o filme faz à "ilusão hippie": a crença, à qual Hunter Thompson aparentemente não podia se afiliar, de que havia alguém --- alguma força, alguma inteligência, alguma providência... --- que segurava a tocha, lá no fim do túnel....

Houve aqueles que chegaram ao fim do túnel só para descobrir que não havia luz.


<<< Meliès >>>

 
BREVE EULEGIA
À MÈLIES, LE MAGIQUE!

 Algumas das mais reluzentes pérolas dos primórdios do cinema saíram da cachola de Meliès, Le Magique. A sétima arte ainda engatinhava. Era o despontar do século 20, seus primeiros passos. E já espalhava-se como fogo no rastilho a fascinação pelas possibilidades trazidas pelo cinematógrafo, aquela mágica caixa de animar fotografia... Mèlies foi um dos "magos" mais geniais desta aurora de uma nova arte, mostrando que somente captar a realidade, em pura verossimilhança, não era a única das potencialidades do cinema. Que, através dele, era possível criar "perceptos" ainda inexistentes. Que ele podia ser o veículo para uma magia alquímica. Com a nova invenção, um mágico como Mèlies pode fazer proezas dantes inimagináveis: faz os esqueletos dançarem, manda astrônomos para a Lua, desce às profundezas do oceano, faz todos os móveis de um quarto caberem dentro de uma mala, além de estar investido do poder de conceder a suas criaturas o dom da invisibilidade ou da desaparição súbita... O jeito brincalhão e lúdico deste grande precursor não cessaria de ecoar por décadas de cinema mudo, deixando sua marca em Chaplin, Keaton e tantos outros. Talvez não haja outro cineasta que tenha levado tão à sério, em sua jovial e jorrante criatividade de criança, a idéia de "brincar de Deus"...



segunda-feira, 25 de outubro de 2010

<<< O Equilibrista (Man On Wire) >>>


 O CIRCO DA MORTE EM MANHATTAN

  Antes de ser reduzido a pó e escombros pelos "piratas do ar" islâmicos, o World Trade Center foi palco de outras façanhas que espantaram o mundo. O Equilibrista, vencedor do Oscar de documentário de 2009, é a cativante crônica da "travessura" francesa em Manhattan, em 1974, quando um certo Philippe Petit cometeu um dos "crimes artísticos do século": ousou estender um cabo entre as duas torres do WTC e caminhar on a tight rope entre elas. 

Seduzido mais pela altura estonteante do recém-edificado WTC, na época ironicamente propagandeado como um espaço em prol "da harmonia e do diálogo entre os povos", Petit e sua gangue invadiram clandestinamente o prédio com toneladas de equipamento e, na calada da madrugada, ajeitaram os esquemas para a performance do equilibrista (que já tinha se celebrizado por andar na Catedral de Notre Dame, em Paris, durante uma missa). Ficou nada menos que 45 minutos passeando nos ares, deitando no tênue fio e brincando de tai-shi-shuan a meio quilômetro de altura, enquanto fazia os tiras americanos de baratas-tontas e era aclamado pela multidão nas calçadas...

A primeira coisa que me chamou a atenção, à luz do 11 de Setembro, foi o contraste radical entre o "ato" de Philippe Petit e aquele da Al-Qaeda: quanta arte, sutileza e eloquência no primeiro, e quanta truculência, cegueira e fanatismo retardado no segundo! Decerto que o atentado entrou para a história  bem mais do o "happening" francês, como não podia deixar de ser; os milhares de mortos e de lutos ficaram como uma cicatriz indelével na auto-estima americana, que vai atravessar o século sem poder se esquecer do sanguinolento protesto dos radicais do Islã contra uma sociedade que eles consideram profana, consumista, invasiva, interesseira, hostil aos dogmas muçulmanos e com fortes traços de fundamentalismo cristão.  E é claro que o apoio americano à Israel e a sedenta necessidade pelo petróleo do Oriente Médio foram alguns dos elementos que despertaram a fúria do Sheik Bin Laden e seus asseclas... Mas aquilo foi um ato de guerra nojento e desleal,  que escancara o quanto os meios utilizados na guerra sempre cospem e lançam no lixo os valores humanos numa hecatombe niilista assustadora. Já o ato de Petit foi, sem dúvida, algo bem diferente, mais positivo e construtivo: uma obra-de-arte.

Arrisco dizer que a França, que sofre bem menos com a opressão estadunidense do que o Afeganistão, e que em matéria de produção intelectual e artística rivaliza (ou mesmo supera) os EUA, pôde lidar com o  extinto WTC, este símbolo da empáfia e do poder do dinheiro, de modo mais lúdico e menos violento do que os Talebans.  Pois uma coisa é você sequestrar aviões civis e, em nome de Alá e de um paraíso repleto de virgens, explodir-se contra um dos prédios comerciais mais célebres do planeta, matando milhares de pessoas e expondo seu país a um ataque de retaliação genocida, como foi aquele levado à cabo por Bushinho. Outra coisa é você protagonizar um perigoso espetáculo circense em que o único em risco de morte é você mesmo e sua mensagem nada tem de bélica, sectária ou dogmática: no máximo provocativa, tought-provoking, maravilhante...

Se há algo de comovedor no ato de Philippe Petit, além da ousadia temerária que ele demonstra, é o fato dele conseguir manter o equilíbrio frente ao abismo da morte iminente e imediatamente possível, algo que a maioria dos mortais sente-se incapaz de fazer. A angustiante perspectiva de estar "por um fio", no bico do corvo, causa o naufrágio do nosso auto-controle, a suadeira, a taquicardia, o berro, a prece. Por isso tanto nos espanta alguém que, ao invés de se resguardar e se proteger, como que num jogo-de-esconde-e-esconde com a foice que o persegue, vai e encara seu próprio temor. Há algo que beira a "iluminação" de um mestre zen no caminhar de Philippe Petit, sereno e tranquilo, sobre um fio que se estende sobre um abismo de 450 metros...

A morte está tão próxima! Um passo em falso, um segundo de desatenção, uma coceira ou picada de mosquito, um sopro de vento mais forte, a hélice de um helicóptero que se aproxime... e adeus à vida. E ainda assim, ele lá esteve, num xadrez da vida real que não é menos dramático que aquele de O Sétimo Selo (de Bergman). E sobreviveu para contar. 


Sou arredio a interpretações do ato nos termos de um "talento sobrenatural" ou uma "temeridade inata" que este "gênio" possuiria. Me pergunto se a grande maioria de nós, depois do devido treino nas artes da concentração e do auto-controle, poderíamos fazer o mesmo. O que nos falta, reles mortais, é o que sobra em Philippe Petit: um alto grau do que não dá pra chamar por outro nome senão por "loucura". Mas no bom sentido da palavra: ousar sair da norma, experimentar o inexperimentado, testar os limites do humano. E é claro (não dramatizemos nem idealizemos demais!) um alto desejo de vanglória, de alarde, de atenção, que torna Phillippe Petit até um pouco antipático por ser tão "aparecido"...Mas quem reprovará aos artistas seu egocentrismo por vezes colossal quando eles nos trazem tantos amaravilhamentos?

Confesso no entatno que acho uma baita super-estimação da obra ela estar no topo dos Melhores Documentários de Todos Os Tempos no Rotten Tomatoes. Não era pra tanto. Eu gostava mais de ver o "Ônibus 174" do Padilha com esta medalha de ouro (anos atrás, ele tava lá!). Mas é inegável que o filme de James Marsh cativa, faz refletir e nos apresenta a um francês "figuraça", encarnação de uma atitude de quem acha que a vida deve ser vivida perigosamente, sem resguardo ou avareza, numa corda bamba por sobre o abismo... Pois o corpo humano é capaz de feitos espantosos de que a maioria dos humanos nem sequer suspeita, e isso porque estas potencialidades sensacionais estão como que congeladas pelo medo, pelo respeito às convenções, pelo nosso desconhecimento das proezas possíveis, pela nossa apática normopatia... Por isso O Equilibrista é também uma ducha de inspiração e um convite irrecusável para que abracemos a Benigna Loucura!

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

<<< Confúcio Ainda Vive? >>>


"Por três métodos nós adquirimos sabedoria: primeiro, pela reflexão, que é o mais nobre; segundo, pela imitação, que é o mais fácil; e terceiro, pela experiência, que é o mais amargo." (Confúcio) Bela epígrafe para um excelente documentário: Up The Yangtze (2007), de Yung Chang, premiado filme que traz um vívido panorama da terra de Confúcio no pós-Mao, ou seja, na era de um capitalismo de Estado de alta eficácia produtiva que tem se aventurado em algumas das obras mais espetacularmente grandiosas em curso hoje no planeta Terra --- como a Hidrelética Das Três Gargantas (ou Represa Three Gorges).

Na China, o maior projeto hidrelétrico da história do planeta Terra exigiu que cidades inteiras fossem evacuadas para serem literalmente afogadas debaixo de toneladas de água. Entre 1 milhão e 300 mil e 2 milhões de pessoas (as estatísticas variam...) tiveram que ser "realocadas", termo bastante polido para descrever que foram obrigadas a deixar seus antigos lares para que a represa fosse construída. Novas Atlântidas, abandonadas pelos humanos, nasceram. Imagine o Crand Canyon sendo invadido por uma enxurrada quase bíblica. Mais ou menos por aí. Famílias de camponeses e pequenos produtores tiveram migrar para outros cantos, especialmente para as grandes cidades, para abrir espaço para uma das obras mais "faraônicas" do chamado "milagre econômico chinês". Os simples se consolam dizendo que o fazem "sacrificando a pequena família em nome da grande".

 Vale lembrar que o terremoto de 2008, que matou cerca de 80 mil pessoas, pode ter sido o primeiro abalo sísmico na história humana a ser causado... por humanos. A construção de uma represa em Sichuan teria sido o fator gerador da imensa tragédia, como explica a Folha Ciência. "Fan Xiao, engenheiro-chefe do Serviço de Mineração e Geologia de Sichuan, defende que as 315 milhões de toneladas de água que foram represadas interferiram na atividade sísmica da região, que já é grande." Isto é um sintoma claro do que Zizek chama de a "entrada" do homo sapiens em sua "era geológica", ou seja, um tempo histórico em que somos capazes de influir tão profundamente sobre a "Natureza" a ponto de causar catástrofes inauditas...


Enquanto as cidades eram evacuadas à força (e às pressas) para a construção da "Três Gargantas", luxuosos barcos navegam pelo lendário rio Yangtze levando turistas cheios da grana, muitas vezes ingleses e americanos, como o documentário retrata (não sem ironia e amargura). Estes gringos bufunfados estão ali para conhecer lugares que desaparecerão debaixo da água --- são as "farewell tours" que tanto "amusement" trazem às dondocas e playboys do Ocidente, felizes também por verem as luzes coloridas da discòteque e as batidas tecno-poperô invadirem Pequim...

Como conta uma piada chinesa, a China, depois de ter chegado à encruzilhada "capitalismo ou socialismo", vendo-se na necessidade de escolher um dos caminhos, deu uma piscadela para o empresário estadunidense que lhe acompanhava no banco de trás da limusine e disse: "vamos juntos para a direita, meu caro, rumo ao capitalismo, mas vamos deixar a seta ligada pra esquerda, piscando o tempo todo, como se estivéssemos indo para o socialismo!" É só uma piada, mas será mesmo isso?

Up the Yangtze: baixem (legendado em inglês) e assistam! É a China atual fotografada com a perspicácia e a profundeza que tem sido mérito recorrente de quase tudo lançado pela Zeitgeist Films.

[+] Slavoj Zizek e o capitalismo autoritário chinês
[+] Info detalhada no press kit do doc



sexta-feira, 15 de outubro de 2010

<<< Borges & Kane >>>


CIDADÃO KANE, de Orson Welles (1940)
por Jorge Luis Borges

UM FILME ESMAGADOR


Cidadão Kane tem ao menos dois argumentos. O primeiro, de uma imbecilidade quase banal, quer subornar o aplauso dos mais distraídos e é formulável assim: um vão milionário acumula estátuas, hortas, palácios, piscinas, diamantes, veículos, bibliotecas, homens e mulheres; à semelhança de um colecionador anterior (cujas observações é tradicional atribuir ao Espírito Santo), ele descobre que essas miscelâneas e pletoras são vaidade de vaidades e que tudo é vaidade; no instante da morte, ele almeja um único objeto do universo, um trenó devidamente pobre com o qual sua infância brincou!

O segundo argumento é muito superior. Junta à lembrança de Koheleth a de um outro niilista: Franz Kafka. O tema (simultaneamente metafísico e policial, psicológico e alegórico) é a investigação da alma secreta de um homem por intermédio das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos muitos destinos que rompeu. O procedimento é o de Joseph Conrad em Chance (1914) e do belo filme The Power And The Glory: a rapsódia de cenas heterogêneas, sem ordem cronológica.

Esmagadoramente, infinitamente, Orson Welles exibe os fragmentos da vida do homem Charles Foster Kane e nos convida a combiná-los e a reconstrui-lo. As formas da multiplicidade, da inconexão são abundantes no filme: as primeiras cenas registram os tesouros acumulados por Kane; em uma das últimas, uma pobre mulher luxuosa e sofredora brinca no chão de um palácio, que é também um museu, com um enorme quebra-cabeças. No fim compreendemos que os fragmentos não são regidos por uma unidade secreta: o abominado Charles Foster Kane é um simulacro, um caos de aparências. (Corolário possível, já previsto por David Hume, por Ernst Mach e por nosso Macedonio Fernández: nenhum homem sabe quem é, nenhum homem é alguém.).

Borges fotografado por Diane Arbus
Em um dos contos de Chesterton - The Dead Of Caesar - o herói observa que nada é tão aterrorizante quanto um labirinto sem centro. Esse filme é exatamente esse labirinto. 

Todos nós sabemos que uma festa, um palácio, uma grande empresa, um almoço de escritores ou de jornalistas, um ambiente cordial de franca e espontânea camaradagem são essencialmente horríveis; Cidadão Kane é o primeiro filme a mostrá-los com alguma consciência dessa verdade.

A execução é, em geral, digna do vasto argumento. Há fotografias de admirável profundidade, fotografias cujos últimos planos (como nas telas dos pré-rafaelitas) não são menos precisos e pontuais do que os primeiros planos.

Atrevo-me a suspeitar, porém, que Cidadão Kane perdurará como "perduram" certos filmes de Griffith ou Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial, no sentido mais noturno e mais alemão dessa má palavra.

(Sur, Agosto de 1941)



* Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino, teve seus escritos sobre cinema publicados no Brasil pela Editora Iluminuras, comentados por Edgardo Cozarinsky. Você pode ler a obra completa no Google Books.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

<<< A Casa dos Mortos (de Débora Diniz, 2009) >>>


É raro que eu depare com um curta brasileiro tão impactante quanto foi pra mim o Ilha das Flores, de Jorge Furtado, assistido quando eu ainda era pivete e ardentemente entusiasmável. Ainda lembro vivamente da indignação que senti ao ver seres de tele-encéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor sendo porcamente tratados, mais abandonados que suínos, tendo que rastejar no lixão em busca de alimentos apodrecidos...

Nos últimos tempos, o documentário (curta) mais memorável que conferi foi A Casa dos Mortos, realização da doutora em antropologia Débora Diniz [Lattes], professora da Universidade de Brasília e autora de outros filmes muito provocativos sobre questões espinhosas como o aborto e a eutanásia. O audacioso projeto de Débora foi filmar as entranhas de um manicômio judicial na Bahia, ouvir os detentos cuja voz não costuma ser admitida nas salas-de-estar, retirar o véu que cobre uma realidade complexa, inquietante e aflitiva...

Assistam!

Há boas análises sobre o filme no G1, na Diversità e na Reciis.

Ah! E o filme casaria muito bem com Estamira numa sessão dupla...


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

<<< Harvie Krumpet (de Adam Elliot, 2004)


Vencedor do Oscar de Curta/Animação em 2004, Harvie Krumpet é um stop-motion brilhante do animador australiano Adam Eliott (responsável também pelo adorável Mary & Max). Narrado por Geoffrey Rush,  o filme é deliciosamente impregnado de humor negro e assombrado por uma Lei de Murphy que parece reinar implacável. Vale a conferida!


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

<<< Bela Vida, Boa Morte >>>


MAR ADENTRO, de Alejandro Amenábar
INVASÕES BÁRBARAS, de Denys Arcand
MENINA DE OURO, de Clint Eastwood

por Maria Rita Kehl


"Morra jovem e seja um belo cadáver." (Oscar Wilde)

Não é moderna a idéia de que a uma vida bem vivida deve corresponder uma boa morte. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, já escrevera que a qualidade da vida de um homem só pode ser avaliada no dia de sua morte. Não só porque a morte permite medir, em retrospecto, o vivido – a morte completa o sentido da vida – mas também porque uma morte indigna, ou um ato indigno cometido no último minuto, pode desfazer o efeito de toda uma vida vivida de acordo com o que, para os gregos, consistia o Bem Supremo.

O que a modernidade acrescentou ao ideal aristotélico foi o debate sobre o direito ao suicídio, cuja antiga grandeza trágica foi abolida pelo cristianismo. O direito de escolher a própria morte é a confirmação radical da liberdade humana – daí a frase de Albert Camus, para quem o suicídio seria a única questão filosófica verdadeiramente importante, máxima expressão de autonomia dos homens em um mundo sem Deus. O problema colocado pelo suicídio é que, se é legítimo desejar a morte, a vida deixa de ser um bem absoluto.

Em 1920, Freud escreveu que o sentido da vida é dado pelo princípio do prazer. De lá para cá, a discussão sobre o preço e os riscos da liberdade cedeu lugar às demandas hedonistas, próprias das sociedades de mercado em estágio avançado. O debate filosófico sobre a liberdade, hoje, reduziu-se à dimensão mesquinha dos direitos do consumidor. Ser livre, nesse caso, significa pouco mais do que escolher o que se quer comprar. O problema existencial contemporâneo é saber como abolir, da vida, todo sofrimento. Se possível, aboliríamos a morte; há quem aposte nisso – e mande às favas, ao encomendar o congelamento do próprio corpo até o século XXII, todas as interrogações filosóficas sobre a finitude da carne e a imortalidade da alma. Mas se a morte for inevitável, que seja possível pelo menos viver o tempo que nos cabe sem ter notícias da dor.

Assim, por linhas tortas, o hedonismo pós-moderno recolocou em cena o debate filosófico sobre a liberdade de morrer. Debate cujo fórum privilegiado tem sido o cinema – esse que ainda é capaz de fazer a mais completa síntese da vida em forma de obra de arte.

Em 2003, o público brasileiro adorou Invasões Bárbaras. O suicídio assistido de um personagem doente terminal de câncer tomou a frente das discussões sobre o filme a ponto de obscurecer a pergunta sobre o título: quem seriam os invasores bárbaros da história? Se o invasor fosse a doença, Invasões Bárbaras seria um belo melodrama humanista; um homem doente reúne os amigos à sua volta, para ajuda-lo a morrer no momento de sua escolha – uma morte de acordo com os ideais que teriam pautado sua vida. A discussão sobre o direito à eutanásia dominou de tal forma a recepção do filme que obscureceu a ironia a respeito dos invasores. 

Os bárbaros seriam o filho, um bilionário especulador internacional, cujo dinheiro possibilitou e privatizou a morte digna do pai, até então internado, por opção política, em um hospital público de péssima qualidade. “Bárbara” seria a jovem viciada em heroína, rebelde sem causa das novas gerações, versão mortífera e sem futuro do hedonismo das gerações de seus pais. Que os dois jovens “bárbaros” tenham tido um papel decisivo no suicídio assistido do protagonista faz de Invasões... uma obra muito mais cética, muito mais pessimista do que a leitura “humanista” que predominou em sua recepção, pelo menos no Brasil.


A liberdade de morrer é pública ou privada? Se as formas contemporâneas do hedonismo ditam os valores predominantes em nossa vida pública, seria coerente que a escolha da morte para abreviar o sofrimento da vida fosse um direito público, também. Dois outros filmes recolocaram a questão, neste início de 2005. Menina de Ouro, de Clint Eastwood, venceu o Oscar de melhor filme norte-americano. É um filme de alto impacto, apesar da narrativa tradicional e do exagerado apelo sentimental. Para um filme norte-americano, é surpreendentemente bom. Um filme centrado na grande obsessão do mundo individualista – ser ou não ser um winner – em que o protagonista é derrotado, já representa um enorme progresso para o público dos EUA. Além disso, um filme que põe em cena o suicídio assistido, contrariando os dogmas cristãos na atual América fundamentalista, merece pelo menos levar o Oscar da coragem.

Assim como no filme de Denis Arcand, aqui também a morte da jovem pugilista é tratada como assunto de foro íntimo, e sua execução é a maior prova de amor daquele que se arrisca a enfrentar a lei. Pela lógica das sociedades individualistas, como o Brasil e os EUA, só o dinheiro ou, na falta dele, o amor, são tacitamente autorizados a corrigir os rigores da justiça.

Já o filme espanhol Mar Adentro, de Alejandro Almenábar, põe em cena o debate público sobre o direito de morrer. Baseado na história real de um tetraplégico que lutou pelo direito legal ao suicídio (e perdeu), Mar Adentro termina com uma eutanásia realizada em segredo, outra vez como prova de amor dos que aceitam ajudar o protagonista em sua decisão. Mas essa transgressão à intransigência da lei ganha alcance público com o depoimento que o personagem deixa gravado em vídeo, insistindo na legitimidade de sua escolha e na continuidade de sua luta.

No mundo atual, em que somos órfãos tanto de Deus quanto dos desígnios patriarcais, a liberdade individual estende-se até o limite da pergunta: por que viver? Não há Deus que nos obrigue a suportar a vida a qualquer preço, nem tradição que nos imponha um destino herdado de nossos ancestrais. A vida tem que valer a pena, aqui e agora. A liberdade de escolher a própria morte, nesses três filmes, se apresenta como conseqüência lógica de uma vida sustentada pelo desejo. Morrer, nos casos em que a vida perdeu o sentido dado pelo princípio do prazer, não é covardia – é antes insistência de Eros. Uma vida sem nenhum prazer perde a razão de ser.

Mesmo assim, vale perguntar se não há casos em que o sentido da vida transcenda a dimensão do corpo. Sem a sublimação e a criação, mesmo uma vida voltada para os prazeres do corpo fica bastante limitada. Seremos a “besta sadia/cadáver adiado que procria” do verso de Fernando Pessoa. Igualmente pobre é a vida privada, voltada apenas para a intimidade familiar e excluída do espaço público. Maggie, a Menina de Ouro de Clint Eastwood, prefere morrer enquanto ainda tem viva a lembrança dos aplausos do público do que vegetar no anonimato de um quarto de hospital. O sucesso e a fama são a versão mais próxima de uma vida pública, na dramaturgia dos EUA. Já o tetraplégico representado por Javier Barden, sem sair de seu quarto, contou com a potência de sua palavra, capaz de transformar a vida de outras pessoas. Palavra cuja verdade foi publicamente sancionada, em retrospecto, pela realização de seu desejo de morrer.


* Maria Rita Kehl é psicanalista e jornalista. Seu livro mais recente, "O Tempo e o Cão", é uma excelente análise das causas da epidemia mundial de depressão que assola o planeta. Escrevi sobre a obra na Casa de Vidro, tempos atrás. Às vésperas da eleição presidencial de 2010, foi demitida do Estadão por "delito de opinião". Triste imprensa esta, que demite uma mente tão brilhante... :(

terça-feira, 5 de outubro de 2010

<<< Schindler's List (1993), de Steven Spielberg >>


KANT NA LISTA DE SCHINDLER?
por Julio Cabrera

No panorama contemporâneo, encontramos pelo menos dois sobreviventes de projeto ético moderno: éticas "de princípios" e "éticas de consequências". As éticas de consequências afirmam que as ações morais são boas ou más em virtude do que se segue delas. Estas éticas supõem que não se trata tão-somente de boas ou más consequências em relação a quem executa as ações, mas também para todas as outras pessoas envolvidas e, em última instância, boas ou más para a humanidade, ou, pelo menos, "para o maior número de pessoas".

"Apesar de não ser verdade que todos os conservadores
são estúpidos, é verdade que a maior parte dos estúpidos
são conservadores."

No século XIX, John Stuart Mill criou o "utilitarismo", um tipo de teoria consequencial. Também uma teoria que tem por objetivo a felicidade das pessoas: o que é bom ou mau para a maioria deve ser algo que acarrete a felicidade ou o contrário para essas pessoas. O princípio fundamental do utilitarismo assim reza: "O credo que aceita a utilidade ou princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade". E, mais adiante: "esse modelo não é a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta." (MILL, O Utilitarismo, p. 187 e 194).

As "éticas de princípios" se opõem a cada um desses pontos. O principal representante de uma ética de princípios é Immanuel Kant. As principais críticas de Kant contra uma ética utilitarista são basicamente as seguintes: as ações devem ser consideradas boas ou más na medida em que sejam realizadas por dever e porque a razão assim a ordena, e não atentando para as suas consequências. Pois uma consequência não pode ser considerada boa ou má em termos absolutos, devido às complexidades das contingências do mundo. Segundo Kant, a única coisa que podemos chamar de boa em si mesma, de maneira absoluta, é o que ele chama de "boa vontade".

Uma mera ética de consequências leva, necessariamente, a um "cálculo", incompatível com a natureza da moralidade. Não poderia o nazismo ser defendido moralmente sobre bases utilitaristas e consequenciais, dizendo-se, por exemplo, que o extermínio de judeus foi uma condição necessária para a felicidade do maior número de cidadãos alemães, e do mundo?

Por outro lado, Kant nega que a felicidade (ainda a felicidade "da maioria") possa ser colocada na base da moralidade das ações, pois a felicidade é um conceito vago e subjetivo, e a felicidade de uns não é a de outros. A moral deverá estar baseada em alguma coisa que possa ser ordenada imperativamente, e a felicidade não é desse tipo. De toda forma, as pessoas, como seres naturais, buscam a felicidade, ainda que ela não lhes seja imperativamente ordenada: "Um mandamento que ordenasse a cada um procurar tornar-se feliz seria uma loucura; com efeito, jamais se ordena a alguém o que ele quer inevitavelmente por si mesmo" (KANT. Crítica da Razão Prática, A 66, Livro I, cap. I, p. 50).

Kant dirige uma crítica frontal contra todas as morais de sentimentos, defendendo uma moral racional. Os sentimentos estão vinculados ao particular. A moralidade há de se basear, em última instância, no dever, não na felicidade, pois o dever pode universalizar-se; a felicidade não. A universalidade é uma exigência racional, contida na famosa primeira formulação do imperativo categórico: "Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal" (Idem, p. 42). Este princípio, incondicionalmente, ordena e pressupõe a liberdade como baseada na autonomia, na capacidade de não deixar as próprias ações se determinarem exclusivamente pelos objetos (idem, p. 45).

Ele considera o valor da pessoa humana como um fim em si mesmo. Daí surge a conhecida segunda formulação do imperativo: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como fim e nunca simplesmente como meio" (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 135). Kant era pessimista a respeito da natureza humana, considerando os homens como seres continuamente determinados por suas inclinações e sempre numa insaciável procura do prazer, sendo assim muito pouco dispostos a agirem moralmente. Porém, também considerava que cada homem era sagrado em sua pessoa, na humanidade que existe dentro de cada um.


Esse tipo de moral pode ser extremamente rigoroso nas aplicações concretas. No famoso artigo sobre a mentira, Kant nega, por exemplo, que um ser humano tenha algum pretenso "direito a mentir por amor à humanidade", somente porque a mentira possa ter "boas consequências", ou mesmo por tratar-se de uma "pequena mentira" caridosa. Para uma moral de princípios, não há diferença moral importante entre "pequenas" e "grandes mentiras", posto que não mentir é um imperativo incondicional, que não reconhece exceções, e cuja transgressão quebra o princípio moral, e permite que seja quebrada a própria confiabilidade entre as pessoas.

O filósofo alemão contemporâneo Karl-Otto Apel coloca o problema das condições de aplicação responsável de uma moral universal de inspiração kantiana, dentro de uma sociedade que, de fato, não segue tal moralidade, e que inclusive sistematicamente a desobedece, uma sociedade tal que nela "o estado de direito não se realizou ou (...) não funciona". "Uma pessoa deve, honestamente, pagar seus impostos quando outras não o fazem?" Apel escreve:


"A resposta a esta pergunta somente pode ser, em minha opinião, a seguinte: (...) não é possível exigir moralmente que, sem ponderação responsável dos resultados e subconsequências possíveis de sua ação, deva comportar-se segundo um princípio moral incondicionalmente válido. (...) No caso de um encontro com um criminoso, ou com uma organização como a Gesatpo, não poderíamos renunciar à mentira, à fraude e, inclusive, ao uso da força, senão deveríamos tentar agir estrategicamente de modo adequado à situação".

O exemplo do nacional-socialismo parece constituir a maior contestação da adoção da ética kantiana, em favor de alguma forma de ética consequencial, seja o utilitarismo, seja uma postura transcendental pós-metafísica ao estilo de Apel.

Também Peter Singer, que explicitamente cita o caso de Oskar Schindler, opta por uma ética consequencial, não kantiana, em situações dramáticas como o nacional-socialismo: "Oskar Schindler era um pequeno industrial alemão. Durante a GUerra, ele tinha uma fábrica nos arredores de Cracóvia, na Polônia. Quando os judeus poloneses começaram a ser mandados para os campos de extermínio, Schindler reuniu uma força de trabalho constituída por judeus provenientes dos campos de concentração e dos guetos. Os trabalhadores eram em número muito maior do que a fábrica precisava e, para protegê-los, Schindler recorreu a várias estratégias ilegais, inclusive recorrendo ao suborno de membros da SS e de outros oficiais. Gastava seu próprio dinheiro para comprar alimentos no mercado ilegal, pois era preciso complementar as escassas rações oficiais que obtinha para seus empregados. Graças a estes métodos, pôde salvar a vida de mais ou menos 1.200 pessoas." Singer comenta; "O projeto nazista de extermínio dos judeus foi, obviamente, uma atrocidade, e Oskar Schindler estava completamente certo em fazer o que fez, para impedir que alguns judeus se tornassem suas vítimas (Dado o risco que correra, foi também moralmente heróico ao fazê-lo)" (SINGER, Ética Prática, p. 305 e 321).



Eu quero sustentar aqui que A Lista de Schindler, o filme de Steven Spielberg, pode ser visto como um poderoso argumento visual em favor de uma ética de princípios de tipo kantiano, contra éticas meramente consequencialistas, mesmo sendo uma obra que trata do nazismo que, como vimos, pareceria constituir o contra-argumento paradigmático contra éticas de princípios, e contra a ética de Kant em particular. O lugar-comum, sempre repetido, consiste em dizer que a ética kantiana é "inaplicável" em situações-limite como as mostradas abundantemente no filme, e que isso deveria levar à adoção de uma ética consequencial "adaptada às circunstâncias". Vou tentar mostrar que o filme de Spielberg problematiza essa interpretação da ética kantiana como fracassada diante de situações como o nazismo, e que a reflexão fílmica que ele propõe dissolve a nítida distinção entre esses dois tipos de teoria moral moderna, em benefício de uma terceira possibilidade (pós-moderna?), que poderíamos denominar de moralidade trágica.

No início do filme, Oskar Schindler (Liam Neeson) é mostrado como um negociante pragmático que lucra, de maneira pouco escrupulosa, com a situação de penúria dos judeus. Na cena em que o trabalhador maneta insiste em cumprimentá-lo em seu escritório, Schindler se mostra irritado, adota atitudes egoístas e arrogantes. Mais adiante, uma bonita mulher, que intercede em favor de seu velho pai, só consegue ser recebida por Schindler quando se veste de maneira atraente. A cena decisiva da conscientização moral de Schindler parece ser a da evacuação do gueto de Varsóvia, por ele assistida durante um passeio a cavalo.

Foto onde soldados nazistas forçam judeus a abandonar Varsóvia após uma revolta da resistência.

"O Pianista", de Roman Polanski
Mas se as futuras ações de Schindler em favor dos judeus são consideradas "moralmente boas", elas não parecem motivadas, primeiramente, por puro dever ("Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem, na medida emq ue dessa maneira elas sejam tratadas como fins, mediante uma máxima que sempre se pode universalizar", nem tampouco observando-se as consequências delas ("Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem porque isso trará como consequência a felicidade do maior número"). As ações de Schindler parecem muito mais motivadas por algo como um sentimento básico de repugnância e de repulsa, não redutíveis a uma análise fria nem de princípios nem de consequências. O cinema possui a "linguagem" apropriada para mostrar a importância destes impactos emocionais primários dentro da constituição de uma consciência moral.

Os sentimentos foram excluídos por Kant da motivação moral genuína porque ele pensa nos sentimentos, como foi visto, no registro da busca insaciável do prazer por parte de seres humanos fracos e autobenevolentes. Mas, ao contrário, o filme de Spielberg mostra que os sentimentos podem também ser pensados no registro da pura e simples fuga da dor insuportável e que essa fuga (que não é de forma alguma busca pelo prazer, e sum uma luta pela mera sobrevivência) pode constituir motivo legítimo de ação, de um ponto de vista moral.

Utilizando a "linguagem" do cinema, Spielberg não faz afirmações pontuais ou diretas sobre Schindler, e sim o mostra vivendo, sintética e extensivamente, em vários momentos significativos. Nesta "expansividade temporal" dos conceitos-imagem, Schindler não se mostra permanentemente como pessoa moral, tal como na linguagem escrita da filosofia, onde as exigências do conceito-idéia não exibem o movimento que levaria da indiferença moral à tomada de consciência. O cinema não alcança a sua própria universalidade mediante algum tipo de "resumo conceitual", e sim mediante a demonstração de fragmentos de uma vida, de comportamentos fluidos e frágeis. A filosofia escrita refere-se somente a um momento arbitrariamente privilegiado da experiência, furtando a fluidez da vida mediante uma idealização, o que nos induz a pensar que as posturas éticas podem ser destacadas e definidas.

Se Spielberg se opõe a Kant e à sua filosofia simplista dos sentimentos, por outro lado tampouco os princípios utilitaristas são aqui relevantes, já que não é em virtude de suas consequências que as ações de Schindler podem ser consideradas moralmente boas. Em uma situação como aquela, é quase absurdo falar da "felicidade da maioria". Para Schindler, os números são irrelevantes. Uma pessoa ou mil e duzentas não farão diferença, posto que, para ele (segundo o mostra a cena do discurso final, em que Schindler se lamenta de não ter vendido seu carro e podido salvar com isso uma única vida humana a mais), a vida é considerada, kantianamente, como um fim em si mesmo, antes de qualquer consideração numérica: as ações de Schindler não são boas por ter conseguido salvar 1.200 pessoas do holocausto, e nem sequer o seria se ele tivesse conseguido salvar tão-somente uma só vida humana. Essas ações são boas pela pura intenção de Schindler de salvá-las, mesmo que não tivesse conseguido fazê-lo em nenhum caso (ainda que, digamos, os oficiais nazistas tivessem fuzilado todos os seus trabalhadores antes do final da Guerra).
 
Spielberg acentua no filme o valor intrínseco da vida humana, para além de cálculos utilitaristas, que, na melhor das hipóteses, virão depois. Se Schindler mente aos oficiais nazistas, não é porque isso tenha primeiramente boas consequências, e sim, em primeiro lugar, porque certas situações trágicas fazem com que a vida humana somente possa ser honrada em si mesma não dizendo a verdade: para além do utilitarismo consequencial e do rigorismo kantiano, o filme apontaria para uma moralidade trágica que contém um elemento kantiano inextirpável, o valor da pessoa humana como fim.

O argumento do valor intrínseco da vida humana é analisado imageticamente por Spielberg por meio do personagem que é o próprio conceito-imagem dessa noção, mas, paradoxalmente, por ser aquele para quem a vida humana não tem nenhum valor: o Herr comandant Amon Goeth (Ralph Fiennes). Numa cena com Schindler e Amon, o primeiro tenta, mediante um truque, criar em Amon algum sentimento de piedade, dizendo-lhe que o verdadeiro poder, pelo qual Amon está obcecado, consiste em perdoar as suas vítimas, como o faziam os imperadores romanos. Nesta cena, Schindler cuida para que as ações de Amon tenham, pelo menos, "boas consequências" mediante um motivo ilegítimo, já que é absolutamente impossível que Amon consiga mover as suas ações por qualquer tipo de motivo moral.

Schindler tenta fazer de Amon, pelo menos, um utilitarista cínico, o qual, em se tratando de um oficial nazista, representa um tremendo progresso moral. Assim como os subornos praticados por Schindler poderiam ser considerados como lamentáveis epifenômenos de sua boa vontade, também as "boas ações" de Amon poderão ser epifenômenos aproveitáveis de sua imutável má vontade. De todas as maneiras, a jogada de Schindler fracassa. Amon tenta primeiramente aplicar esse conselho na pessoa do pequeno Lisiek, seu empregado, mas a crueldade fala mais alto. Em meio ao campo de concentração, desde a sua sacada, todas as manhãs Amon se diverte matando prisioneiros com seu fuzil de mira, e assim o faz com o jovem Lisiek, a quem graciosamente acaba de perdoar (seguindo o sorrateiro conselho de Schindler), e que morre por não ter conseguido limpar as manchas da banheira.

A situação dos homens trabalhando constantemente sob a mira da arma de Amon é um arrepiante conceito-imagem da desvalorização absoluta da vida humana. Esse conceito já havia sido apresentado em outros momentos do filme, por exemplo quando Schindler consegue resgatar seu assistente, o contador Isaak Stern (Ben Kingsley), do trem que o levava para o campo de concentração (o soldado encarregado comenta: "Na verdade, para nós é a mesma coisa, um judeu a mais ou a menos não faz a menor diferença"). OU a imagem do velho trabalhador "morrendo" diversas vezes por causa de um revólver que não funciona. A prisioneira Helen Hirsch, obrigada a ser a empregada doméstica de Amon, diz a Schindler: "Cada vez mais a gente se dá conta de que não há regras, de que não há nada que você possa fazer ou dizer que te deixe a salvo".

Mas, precisamente, as ações de Amon Goeth contra o afirmado pelas morais utilitaristas, não são más ou monstruosas, primariamente, em virtude de suas consequências, como se disséssemos: é mau que Amon Goeth, de sua sacada, mate prisioneiros com seu fuzil porque isso traz a infelicidade de um grande número de pessoas. Parece que, da mesma forma que ocorre na conscientização moral de Schindler, há na monstruosidade moral de Amon algo de mais primordial do que uma fria análise de consequências. Sua imoralidade provém de uma perversidade anterior, de um pathos de total desvalorização da vida humana. Assim como a moralidade de Schindler provém primariamente de uma comoção que o leva a valorizar a vida humana como um fim em si, a imoralidade de Amon provém primariamente de uma comoção contrária, que o leva a ver a vida humana como uma peça substituível e sem qualquer valor. Em nenhum dos dois casos são as consequências de ações que é considerado primeiro, ainda que vnham a ser importantes num segundo momento.

É correta a análise consequencial que Peter Singer faz da conduta de Schindler? Ao subornar, mentir e roubar, foi a sua conduta uma total ruptura com os princípios da moral kantiana? Eu acredito que não. O filme de Spielberg mostra um terceiro tipo de moralidade, a que chamo de moralidade trágica: trata-se de uma moralidade guiada por princípios kantianos, em particular pela idéia do valor em si da pessoa, mas que, ao se confrontar com situações particularmente difíceis, deve exercer-se tragicamente, ou seja, contra seus próprios princípios. É o valor da pessoa o que será preservado mediante o suborno, o roubo e a mentira, e não primariamente as consequências das ações. O que situações como o nazismo mostram não é o fracasso da moral kantiana, e sim seu caráter trágico, ao ser obrigada a exercer-se em um "povo de demônios", para usar uma expressão do próprio Kant.  A linguagem sintética, expansiva e emocional do cinema é capaz de mostra essa tragicidade da moral de princípios com cores particularmente vívidas. Contra Peter Singer, Spielberg mostra Schindler não como um consequencialista, mas como um kantiano trágico.




>>>> Julio Cabrera é filósofo e crítico de cinema. O texto acima foi retirado de seu livro "De Hitchcock a Greenaway - Pela História da Filosofia", ed. Nankin, pg. 61-69.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

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A MONTANHA DOS SETE ABUTRES
Ace In The Hole. De Billy Wilder. 1951.

"Todo fazedor de jornais deve tributo ao Maligno". 
[La Fontaine]
 
CONFISSÕES INFAMES DE UM JORNALISTA APÓSTATA
ou 
A ARTE ESQUECIDA DE UMA MANCHETE BOMBÁSTICA


Reassistir A Montanha Dos Sete Abutres estes dias me fez refletir sobre uma pá de questões envolvendo o jornalismo que eu não me punha faz anos, de tanto que eu me desvinculei da minha primeira profissão nestes anos em que estive mais "ligado" aos estudos de filosofia (tô prestes a arrematar o curso lá na USP...) e da (hrrrr) "carreira artístico-intelectual" que me aventurei a seguir e que consiste nestes 3 bloguinhos de quem cuido com tanto esmero (como se fossem pets, vira-latas mas mais amados que muito poodle escroto de dondoca...) e numa banda de rock'n'roll apunkalhado que tive com alguns de meus melhores amigos nestes últimos anos (e que amei o suficiente para que hoje me arda o desejo, talvez utópico, de poder um dia viver de arte --- existirá algum destino melhor?).
  
Apesar do meu diploma de “comunicador social” que está mofando na gaveta, não sou um jornalista praticante. Sou um desses que se formou uns cinco anos atrás num curso um tanto chumbrega na UNESP, e que desde então entrou numas duas ou três ciladas trâmpicas até decidir aposentar as chuteiras por umas temporadas e permanecer mais um tempo na universidade --- estudando, escrevendo, compondo, criticando, produzindo, criando e, claro, fumando muita maconha. Em suma: tendo tempo para crescer, ampliar horizontes, conhecer melhor as engrenagens da Máquina do Mundo, tendo espaço para cultivar aquilo que o mercado despreza (por exemplo: a sensibilidade estética, a arte de estar aberto ao diálogo fecundo com uma obra de arte, a capacidade de pensar criticamente, a tentativa de compreensão do funcionamento econômico e político das sociedades... dentre outras "coisonas" que o tal do mercado não se interessa em fomentar! Aliás, que bicho mais quadradão, este puto!...)

Na verdade, hoje acredito que posso ser tão feliz quanto muitos dos meus colegas de profissão que estão galgando degraus nas hierarquias e tomando o Estadão ou a Editora Abril de assalto, apesar de ser um completo zé-ninguém no mercado. Não tenho um só item no meu currículo (nem no jornalístico nem no Lattes), mixuruco que seja, que tenha qualquer "peso", qualquer brilho. Nunca escrevi para nenhuma grande revista ou jornal. No máximo cheguei a ser por um semestre o repórter-chefe (não é tão honroso assim: significa trampar sozinho pra fazer a bagaça inteira!...) de uma revista de circulação interna numa grande multinacional do setor automotivo. Mas por uma merreca duns 700 contos por mês, já que os milão do salário iam embora com gasolina, almoço, médicos... (já que nenhum auxílio de alimentação, saúde e transporte nos era concedido).
  
 
Por estas e outras que, apesar do meu diploma de “comunicador social” que está mofando na gaveta, não sou um jornalista praticante. Sou um desses que se formou uns cinco anos atrás num curso um tanto chumbrega na UNESP, e que desde então entrou numas duas ou três ciladas trâmpicas até decidir aposentar as chuteiras por umas temporadas e permanecer mais um tempo na universidade. Não tenho um só item no meu currículo (nem no jornalístico nem no Lattes), mixuruco que seja, que possua qualquer "peso", qualquer brilho. Nunca escrevi para nenhuma grande revista ou jornal. No máximo cheguei a ser por um semestre o repórter-chefe (não é tão honroso assim: significa trampar sozinho pra fazer a bagaça inteira!...) de uma revista de circulação interna numa grande multinacional do setor automotivo. Mas por uma merreca duns 700 contos por mês, já que os milão do salário iam embora com gasolina, almoço, médico (já que nenhum auxílio de alimentação, saúde e transporte nos era concedido). 
 
Lá resisti por longuíssimos seis meses, tentando não ficar muito deprimido, fazendo um jornalisminho que pra mim era intragável feito um trago de Campari: aquele pseudo-jornalismo, que mais se assemelha a uma campanha de marketing com periodicidade mensal e “disfarçada” de informativo, onde eu me sentia pena de aluguel duma empresa que só queria celebrar seus próprios feitos, fortalecer sua própria imagem, masturbar-se narcisicamente frente ao espelho com seus recordes de produção e projetos premiados, enquanto seguia prometendo proezas novas para seus mais de 20 mil funcionários nos ainda mais doces futuros da caravana encantada do neoliberalismo... 
 


Tudo isso, obviamente, sem que jamais ninguém pusesse minimamente em questão o verdadeiro papel das empresas multinacionais numa realidade global extremamente preocupante com seus 930 milhões de famintos, guerra no Afeganistão e no Iraque, fundamentalismo islâmico apelando para o terrorismo em seu protesto contra a Civilização americana, sem falar na ameaça de uma hecatombe ecológica com o prosseguimento da poluição atmosférica e da imensa produção de lixo industrial nos países "avançados" --- mil êtêcétaras...). 

Sem falar em outro fator, este bem menos geopolítico e bem mais cotidiano, que me fez “surtar” com meu último emprego: a surdez e o autismo do chefe esquentadinho, que malhava não o português (o meu, modéstia às favas, não era nada mau; jamais "bombei" em gramática, ortografia, literatura, redação, Jornalismo Impresso ou Semiótica em toda a minha vida...), mas a má qualidade dos panegíricos comemorativos que eu deveria escrever celebrando a Montadora, este deus no Olimpo estadunidense, como se fosse a Rainha da Cocada Preta (e dos motores 64 válvulas e o caralho...). 

Me embrenhar, um pouquinho que fosse, nas entranhas do capitalismo neoliberal e na mídia que ele fomenta foi o bastante para me deixar muito indignado, puto da vida com isso. Hoje não tenho vergonha de soltar impropérios marxistas que às vezes me soavam panfletários na boca dos poucos professores comunistas que eu tive, mas cuja realidade eu pudecomprovar na prática: grande parte da mídia grande atual produz um jornalismo alienado e alienante, a serviço das classes dominantes, que ajoelha frenta ao imperialismo e promete servi-lo se ele descolar uns dólares... E isso é nojento.

Um pouco por isso eu pulei fora, acreditando que pulando fora do mercado eu teria chances de não ser um peixe fora d'água que morre por falta de oxigênio, mas que poderia inventar alguma via alternativa, quem sabe mais digna. E que hoje está aqui, sendo este pequeno "caco" desempregado na imensidão da Grande Teia, tendo como único bastião a blogosfera, onde vai resistindo bravamente enquanto tenta imaginar algum modo de viver sem precisar se render a um emprego que lhe faça se sentir como um vendido pra máfia, um servidor da burguesia, um puppet do Estado, um disseminador de alienações e ideologias emburrecentes...
 
O que sempre gostei neste clássico de Wilder é a visão ácida, cínica e pessimista do jornalismo que o filme derrama sobre o espectador. O filme, que no princípio mais parece a crônica soturna da carreira decadente de um jornalista alcóolatra e sem muitos escrúpulos (algo no estilo de Farrapo Humano), vai transformando-se numa tragi-comédia carnavalesca e em clima de chacota, para acabar degringolando numa lúgubre tragédia... 

O "mote" narrativo é conhecidíssimo: um homem está preso dentro da montanha depois de um deslizamento. O jornalista vivido por Kirk Douglas, que passava por acaso pela região quando rumava para outra cobertura, vê aí uma oportunidade preciosa para ascender como um foguete na profissão, para longe do fundo-de-poço onde se atolou. 
  
Para justificar porque sente-se digno do posto, aponta para o provável novo chefe: “I'm a pretty good liar”. Já se percebe por aí que todo o “romantismo” já se foi desse jornalista: ele tornou-se um cínico que olha pra baixo para aqueles que ainda se iludem a pensar que o jornalismo “serve à causa da verdade”, considerando isto um sentimentalismo babaca ou algo do tipo. Depois de ter sido mulherengo, beberrão e impulsivo em muitas estações de seu longo percurso de pé-na-bunda em demissão corrida, ele detêm o recorde de ONZE empregos perdidos e agora se encontra feito um vira-lata: sem um troco-furado, pneus já roídos and a very lousy reputation


Se o Bukowski ou o Henry Miller tivessem escrito um romance protagonizado por um jornalista, teriam criado alguém parecido com o Tatum de Kirk Douglas (e que atuação fodaça, caráculas!). O cara é durão, adora um whisky e está louco pra sair do lodaçal que se tornou sua vida. Quando o conhecemos, ele está vendendo seu peixe como Jack Nicholson no início de O Iluminado: aceitando qualquer negócio para poder ter um mínimo de estabilidade e aí tentar superar a  re-ascensão depois da completa decadência... 

Seu “plano diabólico”: recomeçar sua carreira numa cidadezinha interiorana, ainda que o trampo pague a mixaria de uns 40 dólares por semana, enquanto espera que um “furo” lhe caía no colo como uma graça divina. Algo que lhe desse na bandeja uma reportagem formidável, daquelas que o faria retornar ao status daqueles que são recebidos com tapetes vermelhos e salvas de palmas...
  
 Cego por esta ambição, ele se utiliza de métodos duvidosos quando uma oportunidade de "estouro jornalístico" aparece: chantageia o xerife prometendo-lhe fama em troca de privilégios no acesso à "cena" do acontecimento; trata a loura esposa do homem em apuros como se fosse uma atriz a ele subordinada e que deveria interpretar o papel que ele impõe e ordena; e, pior de tudo, convence as autoridades locais a atrasar de propósito o resgate do homem soterrado, para que pudesse escrever não uma reportagem só, mas uma série delas... 

O espectador sente que está diante daquele mesmo Billy Wilder que fez algumas das mais sagazes e finas comédias da história do cinema (O Pecado Mora Ao Lado, Se Meu Apartamento Falasse, Love In The Afternoon, Quanto Mais Quente Melhor, A Primeira Página, todos clássicos!), mas que o humor neste Ace In the Hole não é muito do tipo que arranca gargalhadas. Não que o filme peque por excesso de gravidade (crítica que talvez se aplique muito mais ao Crepúsculo dos Ídolos). A peculiariade aqui é que o humor, em comparação com aquela atmosfera "colorida" dos filmes estrelados por Marilyn Monroe ou Audrey Hepburn, é bem mais sombrio, cáustico, às vezes mórbido.  


 Em uma das cenas chave da obra, o personagem de Kirk Douglas (o jornalista) está enfurecido com a maldita cidade no cu-do-mundo onde nada de bombástico acontece. Ele sugere então à senhorinha que é datilógrafa na redação: “ei velha, você bem podia arranjar um jeito de se envolver num assassinato, não?”. Os mais bem-humorados na platéia talvez caiam na gargalhada com a tirada do espertinho. O problema é que na sequência seu humor deixa de ser tão "simpático" e atinge um cinismo cortante, capaz de chocar, machucar, causar no outro uma ferida. Ele diz para a senhora algo --- “I could do wonders with your dismantled body!” --- que parece atravessar os limites do humorismo e tornar-se um ataque sádico, uma grosseria quase obscena. É algo com potencial cômico, mas a imagem que evoca é tão horrível (a de um jornalista contente feito um canibal com as partes do cadáver de uma velhinha só porque ele agora tem uma excelente reportagem...) que nos sentiríamos culpados se ríssemos.

Se este filme é tão querido pelos professores de jornalismo e por todos aqueles que refletem sobre mídia e comunicação social, é por possibilitar uma vasta reflexão sobre ética. Pois o personagem principal, movido por seu desejo de subir na carreira, deixar o emprego que odeia num jornal paroquial no agrário Sul americano, chega a torcer para que algo de ruim aconteça. "Um incêndio, uma epidemia ou 50 cobras invadindo a cidade... isto tudo seria uma mão-na-roda!", pode-se ouvir o diabinho dentro dele tramando...


Quando um maluco fica preso na montanha, o jornalista fica em êxtase com a sublime possibilidade de construir uma série de reportagens "de interesse humano", cheias de aventura e suspense, com uma pitadinha de superstição (há uma terrível maldição assombrando aquela tumba indígena...), para tudo consumar-se num resgate salvífico e heróico... Sonhos de jornalista. Mas, pelo menos neste filme, o tradicionalíssimo happy end hollywoodiano é chutado para escanteio. Salve, salve, mestre Wilder!


O filme retrata então um snowball effect que vai transformando aquela montanha no meio do nada num verdadeiro point turístico, com barraquinhas vendendo hot-dogs, rodas-gigantes divertindo as crianças e, é claro, um cara lá na porta cobrando entradas. Donde a interpretação mais óbvia e clichezenta: ver A Montanha Dos Sete Abutres como uma metáfora para a desgraça sendo transformada em espetáculo; a catástrofe é transformada em aventura e em drama para vender jornal ou dar audiência, e quando se vê o estrago que se fez.... "Xiiii, Marquinho!"


É esta a crítica mais evidente e escancarada (mas também a mais superficial) que o filme faz contra a mídia: a espetacularização do jornalismo estaria deixando os profissionais cegos a qualquer coisa que não sejam "furos" que darão muitos lucros... Aquele jornalista que Douglas encarna mostra-se absolutamente desleixado com relação à ética, como se não desse  mais à mínima pra isto, como alguém que só tirra sarro da corrupção generalizada da mídia, mas sem demonstrar que pode fazer melhor do que o lixo que ele critica.

E percebe um tanto tarde demais que as irresistíveis consequências de seus atos são terríveis: ele matou um homem. De oportunista espertalhão ele se transforma num homicida "acidental" (ou nem tão acidental assim...). A discussão avança para outra dimensão quando não nos limitados a assistir o filme de Wilder como uma obra que versa sobre um assunto tão impessoal quanto "a natureza de uma profissão" (o jornalismo), e a percebemos como uma crítica social mais vasta que não poupa de suas alfinetadas nem a mídia, nem o xerife, nem os funcionários... A obra me parece tematizar e pôr em questão mais a sociedade em geral do que uma profissão específica, descrevendo as funestas consequências que decorreram deste "grande carnaval da notícia" (o título alternativo do filme, aliás, é The Big Carnival). Uma vida que poderia ter sido facilmente salva não o foi pois o perigo de morte em que aquele homem estava rendia um bom IBOPE. E aquilo que era pra ser somente uma "sessão de cinema light", cheia de risadas leves ofertadas por Wilder, acaba sendo um soco no estômago

De modo que o filme torna-se uma engenhosa descrição, que beira o dostoiévskiano em sua lucidez sombria, narrando como um Raskolnikóv da máquina de escrever é capaz de cometer um assassinato sem nunca disparar um tiro ou esfaquear sua vítima. E o fato deste personagem transformar-se em algo tão grave quanto um assassino talvez se explique pelas idéias que ele nutria --- e que Alexandre Gomes, no Observatório da Imprensa, bem descreve:

"A morte de centenas ou milhares de pessoas, prega Tatum, não tem o mesmo interesse que a morte de uma única pessoa. Neste evangelho do penny press a morte de milhares é apenas um número, enquanto a morte de uma única pessoa tem 'interesse humano', faz com que as pessoas 'tenham interesse em saber tudo sobre ele'." Se me lembro bem, foi Stálin quem disse ago parecido: "a morte de milhares é uma estatística; a morte de um homem é uma tragédia...". Um exemplo claro disto é que o fato de que costuma gerar mais terror e piedade (e audiência...) uma notícia de morte de celebridade (tentem se lembrar como foi quando morreu Kennedy, John Lennon, Airton Senna, Lady Di, Michael Jackson...) do que a notícia de que 1 milhão de pessoas passam fome em tal país da África ou da América Latina. 

Por isto é tão conveniente, como explica Tatum, possuir uma personagem principal, um protagonista, um homem só debaixo do holofote (como Charles Lindbergh cruzando o Atlântico...), do que falar sobre as multidões. O filme de Wilder, aliás, é baseado em fatos reais: "o soterramento de Floyd Collins em 1925, que inaugurou a 'história de fundo humano' como produto da imprensa" (Gomes). A grande questão é: o jornalismo não comete algum “pecado ético” justamente quando pára de falar das massas (das grandes massas!) e passa a querer concentrar-se mais no relato de problemas individuais? E mais: não se perverte ao utilizar-se pessoas como fantoches para a fabricação de uma reportagem altamente vendável? Não é isso um sintoma de estar sucumbindo ao que os marxistas chamariam de “ideologia dominante”? (justamente esta do espetáculo, do sensacionalismo, do individualismo, do star-system, do Mickey Mouse e do McDonalds mancomunados para nos persuadir ao consumo...).

"Se em 1951 Tatum era um caso extremo, hoje ele seria a regra absoluta de um jornalismo que não é só industrial por adotar modernos processos de produção e disciplina fabril, mas também porque não produz informação, e sim mercadoria", termina a matéria do Observatório da Imprensa, e não discordo totalmente. Só acho que falar em "regra absoluta" não tem sentido numa profissão que sempre possuiu (e continuará possuindo!) as "ovelhas negras" que se desviam da ordeira (e perversa) maquinaria do mercado e se aventuram em mar aberto, prontos para a rebeldia e a insubmissão, com a coragem de ainda investir na utopia desgastada de servir mais à verdade do que à bufunfa...
  
p.s.: Acho que Ace In The Hole daria uma ótima continuação como um filme de tribunal (que Billy Wilder infelizmente não teve a idéia de inventar), onde os atos do cara seriam julgados e a problemática ética subjacente ao filme pudesse vir à tona numa discussão aberta, acalorada e polêmica (quem sabe até carnavalesca, obscena, transgressora...). Acho que poderia sair um filmaço uma sequência de A Montanha Dos Sete Abutres que fosse no estilo de um Anatomia de Um Crime (de Otto Preminger) ou de um O Julgamento de Nuremberg (de Stanley Kramer), mas incorporando aí uma pitada do Network - Rede De Intrigas (do Sidney Lumet)! Quem sabe um dia eu arregace as mangas e rascunhe um roteiro...