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sábado, 28 de agosto de 2010

:: The Great Dark Between the Stars... ::



:: COSMOS ::


There is no refuge from change in the cosmos”
Carl Sagan



Nos últimos tempos, mergulhei de cabeça em duas séries de TV antigas que me cativaram, maravilharam e fizeram refletir um bocado: O Poder Do Mito (que contêm 6h de entrevistas concedidas por Josephn Campbell a Bill Moyers sobre "temões" como mitologia, sabedoria e o sentido da vida...) e Cosmos (“Épico Científico” de Carl Sagan em 13 fascinantes episódios!). Já não sei decidir quem destes dois instigantes mestres tem mais a nos ensinar, se Sagan ou Campbell. Mas ainda bem que não precisamos escolher um e excluir o outro: ouçamos (e sejamos alunos...) de ambos! Pois um dos maiores privilégios daqueles que assumem na terra a humilde condição de aprendizes-da-vida (e na-vida!) é o fato de nada impedir que aprendam de vários professores. E que possam aprender até mesmo das estrelas que não falam e dos espaços escuros entre elas: “the great dark between the stars”, aquele misterioso negrume que deixava Pascal apavorado mas que parece chamar Sagan com a força encantatória de uma esfinge imensa...

Carl Sagan e Joseph Campbell, me parece, são ambos mestres na arte do maravilhamento. Eles chaqualham nossa apatia esparramando diante de nossas consciências uma procissão de mistérios. “Há mais estrelas no universo que grãos de areia em todas as praias do planeta Terra...”. Sagan nos convida para olhar para cima: não para louvar um Deus que estaria sentado em sua nuvemzinha, gerenciando sua obra, mas para que tomemos ciência da incomensurável grandeza do Mistério que temos diante de nossas consciências. Como não se assombrar com a vastidão de tudo e a pequenez de cada um de nós, seres humanos, como que esquecidos como um trapo num canto remoto de uma das bilhões de galáxias que compõe isto que nenhuma palavra ou conceito explica: o “Universo”, o “Ser”, o "Todo"... (Ah, miséria das palavras!!!)

Partir na jornada de decifração dos enigmas do cosmos é também partir numa jornada de auto-conhecimento: o que somos nós nesta misteriosa maquinaria cósmica? Como pôde acontecer esta espantosa coisa que é existir um Universo assim tão imenso e, dentro dele, contidos nele, criaturas tão estranhas e desnorteadas como nós?!?

Estes dias deparei com um assombro semelhante no livro de Thomas Nagel que estou lendo, o Visão a Partir de Lugar Nenhum (The View From Nowhere, lançado pela Martins Fontes):

"Eras se passaram sem que existisse algo como eu, mas graças à formação de um organismo físico particular, num lugar e tempo particulares, repentinamente passei a existir, e existirei enquanto esse organismo sobreviver. No fluxo objetivo do cosmos, esse evento subjetivamente estupendo (para mim!) mal chega a produzir uma leve ondulação... Somos todos sujeitos do universo sem centro... sou um sujeito que pode ter uma concepção do universo sem centro na qual Thomas Nagel não passa de um pontinho insignificante que facilmente poderia nunca ter existido."
Até os que sabem mais não sabem muito. O Universo - eis talvez a principal "moral da história" para quem assiste Cosmos... - prossegue sendo um gigantesco mistério.

* * * * * *
II. ALUMBRAMENTO
Não acho que seja lá muito proveitoso rotular um ser humano com “etiquetas intelectuais”, rótulos classificatórios... Por isto vou tentar não cometer nenhum tipo de reducionismo preguiçoso ao lidar com a figura de Carl Sagan, imprimindo nele um “carimbo” para melhor identificá-lo no meu mumificado mundinho mental ressecado... Quero uma mente desperta, que nada tenha de burocrática, e o próprio Sagan é exemplo vivo de que este estado de lucidez de consciência só se conquista quando evitamos ceder às tendências preguiçosas de nossos cérebros acomodatícios e olhamos nossos entornos com a curiosidade viva e espantada de uma criança – ou de uma criatura que acabou de chegar do espaço...

Sagan, pra mim, é antes de tudo uma pessoa que procura despertar nos outros um “senso de maravilhamento”. A sense of wonderment. Apesar de ser possível interpretar sua “atitude” como a de um cientista muito “convencido” e seguro de si que fala com a duvidosa autoridade de quem pensa ter descoberto todas as respostas, isto seria uma falsa imagem. Acompanhar Sagan através da série é descobrir um homem que observa o Cosmos com um olhar assombrado, boquiaberto, plenamente ciente de que há profundos mistérios irresolvidos e outros ainda sequer sondados...

O que Sagan mais quer é que a gente se deslumbre ---- e um programa de TV como o Fantástico, que eu assistia direto quando pivete, antes de ter chegado à conclusão de que a Rede Globo era uma ofensa ao meu cérebro, deve muito ao “espírito” de Sagan (apesar de carecer de 90% de seu insight e talento). O principal efeito que Sagan procura gerar em nossas consciências com seu Cosmos não é a submissão a teorias que ele nos imporia como verdades inegáveis, mas sim um espanto deslumbrado diante do novo, do inefável, do imensurável, do nebuloso, do misterioso, do enigmático e do sublime...

Em vários momentos da série isto chega a beirar o piegas, o kitsch, o corny... Em seus momentos menos inspirados, Sagan pode até aparecer a um espectador mais irônico como um caricato abraçador-de-árvores, que fica dando beijinhos nas rosas e falando hipponguices de eco-chato: um cara assim, meio Greenpeace e P.V., que talvez nutra simpatias pelo hare krishna e pelas músicas do George Harrison que contêm cítaras... Estou chacoteando, mas juro que é com carinho...

É que, por mais que eu o admire, não consigo conter minha ironia quando, em vários momentos, irrompe aquela bizarra trilha-sonora meio new age, meio Kitaro e Enya (blargh!), tudo rodeado por um colorido artificialesco que lembra O Mágico de Oz e os primórdios da computação gráfica... Mas não dá para exigir de um cientista que possua bom gosto estético, certo? Mas suas duvidosas escolhas estéticas não são desprovidas de uma certa magia: pois Sagan parece não se deslumbrar somente com o Universo, mas também com a magia do cinema, por vezes tentando assumir na tela uma atitude de Indiana Jones ou Luke Skywalker da vida-real... Infelizmente, Sagan não é nem metade tão bom ator quanto é bom pensador. Mas ao menos isto deixa Cosmos com um certo sabor humorístico involuntário que é um de seus charmes. E não falta charme mesmo nas cenas mais “metidas a bonitinhas” onde vemos borboletinhas pousando em rosas, vaga-lumes piscando na noite como pequenas estrelas aladas ou dandelions soprados pela brisa matinal... É, confesso, um guilty pleasure irresistível.

Já os efeitos de computação gráfica, para nós da era de Avatar e da trilogia Toy Story, são aquela “tosqueira” que dos anos 1970 e 80 que hoje lamentamos (“tão primitivos! E tão feiosos!”, seria tentado a queixar-se um amante dos eye-candys da nossa atual Sociedade do Espetáculo circa 2.010...). Mas não acho que estraguem o caldo. Ao contrário: o conteúdo, de longe, compensa pelas limitações da forma.

Pois não há como negar que a série é, em geral, muitíssimo bem-sucedida em elucidar para o espectador de modo cativante, compreensível e sedutor várias dos mais importantes empreendimentos científicos da jornada humana, do átomo de Demócrito ao heliocentrismo de Copérnico, do mapeamento das órbitas planetárias de Kepler à decifração do Genoma humano, do evolucionismo de Darwin à relatividade de Einstein...

Em seus melhores momentos, Carl Sagan parece alçar-se ao nível de alguma das maiores mentes do Iluminismo francês, como uma espécie de Voltaire norte-americano, capaz de ferinas ironias e aparentemente apto a reter em sua mente um conhecimento tão vasto que mereceria um adjetivo bem à la Diderot e D'Alembert: “enciclopédico!” 

Mas há outras sociedades que, bem mais que a sociedade francesa circa-1789, que Sagan parece ver com extrema simpatia quando faz um “passeio histórico” pelo passado humano. As civilizações que ele parece descrever com maior carinho são aquelas da Grécia pré-socrática, entre 400 e 200 a.C., quando viveram e pensaram Demócrito, Tales de Mileto, Anaxágoras e tantos outros precursores da ciência moderna; a Alexandria durante os anos de profundo cosmopolitismo e discussão científica e filosófica, antes da queima da Grande Biblioteca; e a Holanda do século 17 – aquela de Rembrandt, Vermeer, Huysgens etc.

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III. WE ARE STARDUST

The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a 3rd generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff...”
A série tenta dar respostas sensatas e ponderadas para muitos temas de vasto interesse popular (e que encheram por décadas as páginas de revistas como a Superinteressante, a Galileu e a Mundo Estranho, que muito devem ao “espírito” de Sagan, ainda que também deixem a desejar em termos de aprofundamento...): da possibilidade de uma viagem no tempo aos OVNIs, da origem da vida à composição química das estrelas, de futuras missões inter-estelares a cálculos sobre o número de civilizações inteligentes possíveis no Universo, a série não se recusa a averiguar hipóteses. E até afirma que é verdade certas "coisas" de deixar bestificado de espanto qualquer um de nós: somos, afinal de contas, feitos de poeira estelar! Nenhum dos átomos que compõe nossos corpos, nenhum dos átomos que compõe tudo o que existe neste planeta, foi gerado por aqui mesmo. Tudo o que conhecemos é construído com "tijolinhos" gerados nos bilhões de úteros das estrelas e depois esparramados pelo vasto, escuro e frio espaço... 

We're all stardust, harvesting star light!

Mas nem tudo é poesia e alumbramento nesta jornada: a série foi produzida com a adrenalina dos tempos de crise e em muitos momentos nota-se uma certa “tensão” no ar, natural de um seriado concebido e gravado nos anos 70, não muitos anos depois da Crise dos Mísseis em Cuba que ameaçou esquentar a Guerra Fria, pondo assim em risco a sobrevivência de todo o planeta. Cosmos é um seriado assombrado pelo fantasma do Apocalipse Nuclear. De modo que soa às vezes como uma espécie de “levante” de um grande cientista norte-americano que ergue-se, soando barulhentos alarmes, como se quisesse impedir que Hiroshima se repita. Em certo sentido, é como se seguisse o conselho de Theodor Adorno de que a educação depois do Holocausto deveria ter uma de suas tarefas cruciais “evitar que Auschwitz se repita”. Sagan protesta com veemência, p. ex., contra o trilhão de dólares anuais que o mundo, em sua época, dedicava a gastos militares. E nossa época não está muito diferente, como sabe qualquer um que consulte as verba$$$ suntuosas que os EUA dedicam ao militarismo.

Sagan foi também um destes que embarcou na onda da “globalização” de um modo festeiro e utópico, supondo de modo talvez otimista em excesso que a fraternidade humana estaria sendo construída pelas facilitações tecnológicas na comunicação e no transporte que possibilitam nosso atual estado de inter-conexão global. Elogia o cosmopolitismo e a abertura a outras culturas e tradições, como quem bem sabe que somos todos uma só espécie sobre um planeta que, quando visto do espaço, não possui fronteiras.

Defende o método da ciência, segundo o qual “a única verdade sagrada é que não existem verdades sagradas”. Lança sua abominação sobre o obsceno número de armas nucleares nos arsenais de tantas nações, sobre a desnecessária matança das baleias e contra o deflorestamento, e já insistia desde então nos perigos do aquecimento global e do Efeito Estufa. E nos mostrou muito bem, no caso de Marte e Vênus, que desgraceira pode decorrer da gente zoar com nossa camada de ozônio...

Não fala em Gaia, mas a deusa está presente por toda parte.



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IV. Blues for a Blue Planet

Há, sim, algo de potencialmente deprimente nesta viagem de descoberta. Na vasta imensidão do Universo, somos algo inegavelmente minúsculo. A astronomia esmaga qualquer pretensão humana de gigantismo: somos anões num planeta medíocre de uma galáxia qualquer. Não há nenhuma evidência confiável de que alguma espécie de outra civilização de outro planeta tenha entrado em contato conosco: por enquanto, não encontramos nada que negue a hipótese de que estamos sozinhos. Nossos telescópios vasculham cada centímetro cúbico dos céus, com criaturas por detrás das lentes sedentas por diálogo, e as estrelas prosseguem em silêncio. É o que apavorava Pascal: “le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie...”. É o “silêncio das estrelas” de que se lamenta Lenine numa de suas mais melancólicas canções: “amanheço mortal...”

Cosmos fala pouco sobre a morte, como quem por polidez evita um tema penoso. Mas, ao falar sobre o universo e sua grandeza quase inimaginável, faz com que nos confrontemos com o fato irrecusável da pequenez e da fragilidade da raça humana. Ao mesmo tempo que nos abre frente aos olhos um imenso leque de façanhas que esta mesma espécie conquistou: não há em nenhum outro canto do Universo conhecido nada que se assemelhe a nós. Não conseguimos, por enquanto, nos deparar com outros seres conscientes habitando este cosmos tão repleto de “coisas” que existem em total ignorância de si mesmas, inconscientes de sua própria existência.

Tudo indica que fomos só nós, nesta imensidão da matéria, que “despertamos”. E talvez seja algo muitíssimo raro isto que aconteceu neste planetinha: a matéria chegando a uma organização tal que fez surgir a Consciência. É sinal que a matéria tem espantosas propriedades, já que nos gerou, a estas espantosas criaturas que somos!

O córtex cerebral não é menos fantástico que uma galáxia distante. E pensar que há mais neurônios dentro da cabeça de cada um de nós do que há grãos de areia em todas as praias do planeta Terra! Temos um imenso universo dentro do crânio. Um universo capaz de consciência de si mesmo, o que o universo lá fora não é capaz de alcançar, ao que parece... É que a consciência tinha que começar em algum lugar? Pois bem: talvez sejamos este começo, o que já é missão nobre.

E que faz com que seja importantíssimo não deixar que esta chama se apague. Bilhões de anos foram gastos neste “produto” espantoso da Natureza: matéria viva e consciente. E agora temos em mãos a sombria e inquietante possibilidade de jogar isto fora e desfazer uma obra-prima da Dança Cósmica...

A Dança de Shiva

Somos minúsculos, é verdade, mas também somos raros. Somos pequenos, é verdade, mas para cada uma das células que nos compõe talvez sejamos do tamanho de uma galáxia, e tão misteriosos e incompreensíveis quanto...

E somos, é claro, o único ponto em todo o Ser onde há busca pela verdade, pela compreensão, pelo sentido. É claro que Carl Sagan não nos explica qual é o “sentido do Universo”: seria muito megalomaníaco e francamente antipático se sustentasse ter a solução para este profundo enigma. É óbvio que a Ciência não tem uma resposta para isto, o que salva a Filosofia de cair na inutilidade, e a reabilita para os séculos porvir.

Afinal de contas, a tentação de abraçar a hipótese de um deus prossegue, já que parece necessário que algo tenha sido o Primeiro Motor ou o Criador de toda esta miríade de galáxias - a watch implies a watchmaker. Mas o fato da humanidade ter inventado a hipótese Deus me parece apenas uma tentativa simplória de tentar dar conta de um mistério que ainda estamos longe de desvendar. Àqueles que se sentirem tentados a abraçar a confortável hipótese de um deus criador de tudo depois de assistirem Cosmos, sugiro que antes tem um passeio por outra grande mente científica de nosssos temops: Richard Dawkins, o grande desilusionista... Sim: de onde diabos "saíram" todas as estrelas, planetas, buracos-negros, tudo que existe? O que é o diabo deste "espaço" (aparentemente infinito...) onde tudo isso bóia, viaja e existe? Quem foi que colocou em movimento esta incessante correnteza cósmica que não conhece um só segundo de remanso? De onde saiu toda essa matéria, todos esses átomos, toda essa luz? Sempre existiu ou um dia começou? Tem sentido ou somente existência? É eterno ou conhecerá um dia o nada?

Tudo, ainda, profundos mistérios. E vasto alimento para o nosso espanto.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

:: "The illegality of cannabis is outrageous..." ::



Outra das excelentes razões que temos para reverenciar e cultuar o Carl Sagan --- além dele nos ter legado uma série de TV supimpa (Cosmos), uma obra literária sci-fi muito interessante, transposta para o cinema por Zemeckis e Jodie Foster (Contato) e alguns impactantes livros de divulgação científica (como O Mundo Assombrado Pelos Demônios) --- é que ele foi um notório maconheiro. Sagan elogiava abertamente os efeitos de expansão da consciência, refinamento da sensibilidade e dilatação temporal decorrentes do uso da cannabis e defendia, muito antes do Planet Hemp e da Marcha da Maconha, a descriminalização da erva. Abaixo, compartilho com todos vocês que tem simpatias pelo Lado Verde da Força alguns dos argumentos de Sagan em prol da maconha, baseados em suas próprias experiências positivas com a substância. Isso saiu num livro organizado por Lester Grinspoon em 1969: Marijuana Reconsidered.

"The cannabis experience has greatly improved my appreciation for art, a subject which I had never much appreciated before. The understanding of the intent of the artist which I can achieve when high sometimes carries over to when I'm down. This is one of many human frontiers which cannabis has helped me traverse."

"A very similar improvement in my appreciation of music has occurred with cannabis. For the first time I have been able to hear the separate parts of a three-part harmony and the richness of the counterpoint. I have since discovered that professional musicians can quite easily keep many separate parts going simultaneously in their heads, but this was the first time for me. Again, the learning experience when high has at least to some extent carried over when I'm down. The enjoyment of food is amplified; tastes and aromas emerge that for some reason we ordinarily seem to be too busy to notice. I am able to give my full attention to the sensation. A potato will have a texture, a body, and taste like that of other potatoes, but much more so. Cannabis also enhances the enjoyment of sex - on the one hand it gives an exquisite sensitivity, but on the other hand it postpones orgasm: in part by distracting me with the profusion of image passing before my eyes. The actual duration of orgasm seems to lengthen greatly, but this may be the usual experience of time expansion which comes with cannabis smoking."

"I do not consider myself a religious person in the usual sense, but there is a religious aspect to some highs. The heightened sensitivity in all areas gives me a feeling of communion with my surroundings, both animate and inanimate."

"When I'm high I can penetrate into the past, recall childhood memories, friends, relatives, playthings, streets, smells, sounds, and tastes from a vanished era. I can reconstruct the actual occurrences in childhood events only half understood at the time. Many but not all my cannabis trips have somewhere in them a symbolism significant to me which I won't attempt to describe here, a kind of mandala embossed on the high. Free-associating to this mandala, both visually and as plays on words, has produced a very rich array of insights."

"The illegality of cannabis is outrageous, an impediment to full utilization of a drug which helps produce the serenity and insight, sensitivity and fellowship so desperately needed in this increasingly mad and dangerous world."

 LEIA MAIS: http://www.cannabisculture.com/articles/63.html

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

:: Woody Allen e o ateísmo ::



"Se Deus não existisse, tudo seria permitido."
DOSTOIÉSVKI. Os Irmãos Karamazóvi.

"O homem: o único ser que se sacode com a bela loucura do riso."

CHESTERTON. O Homem Eterno. 


INTRÓITO 

Woody tem dúzias de filmes mais espirituosos e hilários. Mas talvez nenhum seja uma obra-de-arte tão fina quanto Crimes e Pecados (1989), considerado pela maioria dos críticos e allen-maníacos como o mais clássico dentre os seus filmes "sérios" e bergmanianos. O próprio Allen parece reservar um posto especial na sua filmografia para esta obra, onde diz que procurou comunicar um pouco de sua "filosofia pessoal". Apesar de indefinível em poucos termos, esta "filosofia de vida" woody-alleniana me parece sugerir que  é vital a gente adoçar o amargo caldo da vida em um universo sem deus com o açúcar aliviante do humor e da leveza. Algo como "devemos rir de nossa própria miséria para não atravessarmos nosso  piscar-de-olhos-de-tempo-no-mundo com cara-de-funeral. Ainda que este mundo tão imperfeito e de alegrias tão efêmeras, e de trombadas tão caóticas entre as criaturas, bem faça por merecer uma carranca... Mas não: nos vinguemos com uma gargalhada!".

Em Match Point - Ponto Final (2005), o diretor meio que voltou ao mesmo enredo, às mesmas encanações e aos mesmos debates com Dostoiévski e Sófocles; a ponto de muitos, eu incluso, se perguntarem: mas por que diabos fazer o mesmo filme duas vezes? O que é claro é que isso é sintoma da importância que o autor deles concede à questão da relação entre a ética e a religiosidade. E, como prova o texto abaixo, a aposta de Woody Allen é oposta totalmente à aposta de Pascal. Acreditar em Deus é condenar-se a agir sempre de modo interesseiro, querendo "marcar pontos no pós-vida", conquistar uma recompensa celestial ou fugir das fogueiras do capeta... e isso nada tem de "nobre", moralmente falandol; é puro egoísmo racionalizado. É o que ele parece explicar no excelente trecho abaixo, retirado do livro de entrevistas a Eric Lax recentemente publicado no Brasil:

COM A PALAVRA... WOODY ALLEN:

"Uma coisa interessante: li um artigo escrito por um padre a respeito do filme [Ponto Final]. Era muito bom, mas ele partia de uma hipótese errada. A hipótese era assim: se, digamos, a vida não tem sentido, é caos, é acaso, então pode-se tudo, e nada tem sentido, todo ato é tão bom quanto qualquer outro. E isso imediatamente leva alguém com uma convicção religiosa à seguinte conclusão: é, pode-se matar pessoas e se dar bem com isso, se é o que se quer fazer. Mas é uma falsa conclusão. O que estou dizendo de fato - e não é oculto, nem esotérico, é claro e simples como água - é que nós temos de aceitar que o universo é sem deus, e a vida é sem sentido, muitas vezes uma experiência brutal e terrível, sem esperança, e que as relações amorosas são muito, muito difíceis, e que ainda precisamos encontrar um jeito não só de suportar, mas de levar uma vida decente e moral. 

As pessoas já vão concluindo que estou dizendo que qualquer coisa serve, mas na verdade estou fazendo a pergunta: dado o pior, como podemos continuar, ou até mesmo por que deveríamos escolher continuar? Claro, nós não escolhemos - a escolha está impregnada em nós. O sangue escolhe viver. (risos) Por favor, repare que enquanto eu pontifico aqui, você está entrevistando um sujeito com um mecanismo de negação deficiente. De todo modo, os religiosos não querem admitir a realidade, que contradiz o conto de fadas deles. E se o universo for sem deus (ri baixo) eles perdem o emprego. Interrompe o fluxo de caixa.

Ora, existe uma porção de gente que escolhe levar a vida de um jeito completamente autocentrado, homicida. Pensam assim: já que nada significa nada e eu posso me dar bem com assassinato, vou fazer isso. Mas pode-se também fazer a escolha de que estamos vivos, e outras pessoas estão vivas, e estamos juntos num bote salva-vidas e é preciso tentar e fazer o bote ser o mais decente possível para você e para todo mundo. E me parece que isso é muito mais moral, e até mesmo muito mais "cristão". 

Se você admite a terrível verdade da existência humana e escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo que vai haver alguma recompensa ou algum castigo celestial, ou algum tipo de ganho, e você age bem, então está agindo bem não por esses nobres motivos, os mesmos motivos chamados cristãos. É igual aos homens-bomba suicidas, que afirmam agir por motivos religiosos ou nacionais, quando na verdade a família deles recebe uma compensação financeira, festeja um legado heróico - sem falar na promessa de virgens para os perpetradores, embora eu não entenda por que alguém iria querer um grupo de virgens em vez de um grupo de mulheres altamente experimentadas.

* * * * *

Vi outra coisa escrita por um padre-filósofo na St. John's University, que achou que o filme talvez fosse o filme mais ateu jamais feito. Mas ele era muito gentil, muito elogioso. O ponto de vista dele era mais tolerante comigo porque ele sentia que, ao longo dos anos, o fato de eu constantemente abraçar um universo ateu, sem esperança, sem deus, sem sentido, queria dizer que a ausência de Deus no universo era importante. E sinto que ele tem razão, estou mesmo dizendo que isso importa. Eu disse isso explicitamente em Crimes e Pecados. Para mim, é uma grande vergonha o universo não ter nenhum Deus ou nenhum sentido, e no entanto só quando se admite isso é que se pode levar o que as pessoas chamam de uma vida cristã - isto é, uma vida moral decente. Você só leva uma vida assim se, para começar, admite o que tem diante de si e joga fora toda a casca de conto de fadas que leva a pessoa a fazer escolhas na vida não por razões morais, mas para marcar pontos no pós-vida...

Então o filme despertou muita discussão nessa área, e isso me deixa contente. Fico contente que não tenha sido visto apenas como um suspense de mistério e assassinato, coisa que, veja bem, não estou desprezando. Como espectador, adoro esses filmes. Mas eu esperava usar Ponto Final para colocar pelo menos um ou dois pontos do que constitui minha filosofia pessoal, e sinto que consegui fazer isso."


in:
Ed. Cosac & Naify, pg. 172 

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

:: Inception, de Christopher Nolan (2010) ::


Your mind is the scene of the crime.


:: SINFONIA ONÍRICA ::

"But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams..."

YEATS

Inception não deixa de ser um blockbuster espetaculoso de efeitos visuais estonteantes e de custos de produção tão estratosféricos quanto a bilheteria que promete render. A boa nova é que o filme faz o espectador pensar, questionar e se maravilhar muito mais do que o costumeiro arrasa-quarteirão de verão. A façanha de Christopher Nolan foi ter criado algo que possui tudo aquilo que os brucutus adoram nos filmes de ação - metralhadoras, explosões, perseguições em alta velocidade, veículos despencando em abismos, sobrevivências miraculosas e muita marmelada, tudo em ritmo frenético... - inseridas num enredo tão  ousado, complexo e fascinante que não deixa um segundo sequer de oferecer à reflexão um vasto material de trabalho.

Este filme, apesar de visualmente seguir a corrente do mainstream Hollywoodiano, parece fruto de uma mente de extraordinária criatividade e imaginação: Chris Nolan,  que já provou com Amnésia, Following, O Grande Truque e seus dois Batman ser um dos mais sérios candidatos, dentre os cineastas contemporâneos, a entrar para o panteão dos gênios do "cinema popular".

Para escrever um roteiro como o de Inception (impresso, ele daria decerto um ótimo romance sci-fi!), Nolan deve ter lido e assimilado muita coisa de Freud, Bergson, Shakespeare, Philip K. Dick, Otto Rank, Julio Verne, Ray Bradbury, Fritjof Capra, Joseph Campbell, dentre outros autores visionários. E em termos de design visual, o filme também é um primor tão grande que tem gente apontando similaridades (e dívidas) do filme para com a obra dum artista como o Escher, p. ex. Como disse um crítico, "este é o filme de ação mais inteligente que você vai ver na vida", e com um dos visuais mais classudos, também. Mas etiquetá-lo como "filme de ação" é cometer uma injustiça contra um filme tão rico, que mescla tantos gêneros a ponto de se tornar absolutamente único, avesso a toda etiqueta.

Decerto que o filme não saiu "do nada". Tem seus predecessores de peso: há em Inception um pouquinho de Matrix, de Minority Report, de Vanilla Sky, de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, de Missão Impossível, de eXistenZ... E decerto que a exploração da temática do sonho já foi levada a grandes profundezas e graus de insanidade nas mãos de Lynch, Buñuel ou Guy Maddin (pra ficar só em 3 exemplos). Mas, mesmo inserido numa certa linhagem (que eu chamaria de "sci-fi surrealista"), o sétimo filme de Nolan traz a marca de um autor que traz ao cinema alguns conceitos muito inovadores, instigantes, até mesmo revolucionários. Inception comove mais pela ousadia das suas idéias e pela radicalidade com que Nolan as empurra até o limite, até os extremos, como se espremesse todos os seus insights até retirar deles todo o sumo, toda a maravilha...


"Os sonhos são um escudo contra a enfadonha monotonia da vida: libertam a imaginação de seus grilhões, para que ela possa confundir todos os quadros da existência cotidiana e irromper na permanente gravidade dos adultos com o brinquedo alegre da criança. Sem sonhos, por certo envelheceríamos mais cedo; assim, podemos contemplá-los, não, talvez, como dádiva do céu, mas como uma recreação preciosa, como companheiros amáveis em nossa peregrinação para o túmulo..." NOVALIS

Este filme é um abacaxi para o crítico de cinema; quase tanto quanto o Mulholland Drive ou o Império dos Sonhos de Lynch. Impossível falar sobre ele em poucas linhas. E muito difícil, também, transpô-lo para palavras, ainda que se escreva um livro. Tal como alguma boa sinfonia de Beethoven, o filme de Nolan nos convence que a arte do cinema, tal como a música, possui algo de absolutamente inefável. Há algo que as imagens e os sons são capazes de comunicar que a linguagem escrita não consegue alcançar. 

Mas podemos tatear em busca de uma expressão para explicar o que é tão fascinante em Inception. E me parece que duas "idéias" são bem centrais na obra de Nolan: a concepção de uma estratificação do sonho e da distensão da temporalidade acarretada por ela. Calma lá que não é tão hermético quanto parece!

Nolan imaginou o "espaço onírico" não como se fosse uma planície ou uma casa térrea; imaginou-o mais como um complexo prédio, com um intrincado e labiríntico jogo de escadas e elevadores, em que cada "andar" representa um "nível" na complexa arquitetura do inconsciente.

Inception opera com a lógica de uma matrioshka. É como se o filme dissesse que a boneca russa é uma excelente metáfora para o sonho humano. O segredo que os ladrões buscam em sua jornada onírica estaria num cofre no interior da menor das matrioshkas, e chegar até ali é descrito por Nolan como uma aventura tão espetacular quanto a Viagem ao Centro da Terra ou as Vinte Mil Léguas Submarinas... 


"É essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente para que se torne possível formar uma opinião correta da origem do que é psíquico. Nas palavras de Lipps, deve-se pressupor que o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é apresentado de forma tão incompleta pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais..." SIGMUND FREUD. A Interpretação dos Sonhos. Pg. 584, ed. Imago, Edição Comemorativa (100 Anos).

De certo modo, também me parece que Inception traz uma das primeiras tentativas na história do cinema de uma representação gráfica e narrativa do que Freud estava tentando comunicar quando disse que "o inconsciente é atemporal". Nolan, no começo de sua brilhante carreira, já tinha procurado revolucionar a nossa consciência temporal com Amnésia, que com fina magia invertia o fluxo do devir e enviava a nossa mente numa viagem mental das mais inusitadas, como se o rio do tempo fluísse ao contrário, do futuro para o passado. Agora, em Inception, Nolan se aventura a questionar a relatividade do tempo, mas de modo mais freudiano do que einsteniano.

Seria muito interessante, aliás, que alguém com mais conhecimento e talento que eu se aventurasse a fazer uma interpretação de Inception estabelecendo um paralelo com o  Interpretação dos Sonhos, o clássico de Freud. Que maravilha seria, aliás, se o Pai da Psicanálise pudesse ter assistido a este filme e nos escrito uma crítica! 

Uma das descobertas freudianas foi a de que o tempo do sonho é "dilatado": você pode sonhar por 5 minutos e ter a sensação, ao acordar, de que sonhou por uma hora. É o que o gênio vienense batizou com o conceito de "condensação". Inception explora bravamente a idéia de que a "descida" rumo ao "núcleo" do Inconsciente equivale a adentrar cada vez mais no domínio da atemporalidade.

O sonho aqui é descrito mais como uma complexa arquitetura de vários níveis e, conforme se vai "descendo", a temporalidade vai ficando mais distendida. É como se o inconsciente fosse um poço e nosso heróis mergulhassem cada vez mais fundo em suas profundezas, sendo alvejados por todos os lados pelas "personificações" da repressão do super-ego, pela hostilidade das "projeções" do adormecido, pelo "sistema imunológico" do organismo, que trata os "hackers" como se fossem um vírus infeccioso...

Não que o filme verse sobre psicanálise, exatamente: não há nenhuma intenção terapêutica em jogo. Inception flagra a técnica da psicanálise sendo aplicada diabolicamente, posta a serviço da espionagem industrial, utilizada como instrumento na guerra corporativa em um mundo dominado por mega-empresas que jogam na base do vale-tudo... É como se os tecnocratas tivessem se apossado das descobertas de Freud e seus seguidores, passando a utilizá-las na busca dos interesses mais escusos e sem jamais se colocarem questões éticas de primeira importância. 

Depois de Inception, o thriller de espionagem jamais será o mesmo: os espectadores se tornarão mais exigentes. Pois Nolan nos apresentou à engenhosa fantasia de que é possível roubar os segredos de rivais e desafetos por meio de um novo tipo de perfídia: o que eu chamaria de hacking onírico. E mais que isso: Nolan nos mostra que os atos concretos dos homens são motivados em larga medida por motivos inconscientes, de modo que se alguém conseguisse "plantar" uma idéia nas profundezas psíquicas de outra pessoa teria muito mais chance de atingir seus fins do que procurando coagi-la pela força. Inception substitui os tanques de guerra, os kamizakes e os grampos de telefone pelo terrorismo psíquico e pela inseminação quase cirúrgica de idéias desagregadoras.


(Breve parêntese: "A Origem" me parece um título muito mal escolhido como tradução de Inception. Aliás, quem são os panacas responsáveis por estes batismos tão desajeitados? Um título como Inseminação seria muito mais eloquente, muito mais fiel ao original, e creio que dotado até dum certo "potencial comercial"...)

Jamais em sua carreira o diretor tinha soltado tanto as rédeas da imaginação. Em Inception Nolan se permitiu pirar como nunca dantes havia feito. Aqueles que acusavam seus primeiros filmes (Following, Amnésia, Insônia...) de serem excessivamente racionais, "frios" em matéria de comoção, agora podem parar de reclamar. O irracional irrompe em Inception com toda a força, e há muitos elementos no roteiro que são escancaradamente inverossímeis.

Mas Nolan é um cineasta tão ponta-firme, ousado e seguro-de-si que seus filmes parecem mais que dirigidos: parecem orquestrados. Este maestro da sétima-arte (que já está fazendo por merecer as comparações com Stanley Kubrick e Steven Spielberg) vem numa série de trabalhos sempre de altíssima qualidade; e sua arte consiste em pôr em prática o princípio que Tarkovsky dizia nortear a sua própria obra: uma tentativa de "esculpir o tempo".

Inception é mais que um filme: é uma sinfonia onírica.


[+] PABLO VILAÇA - POP MATTERS - L.A. TIMES - NEW YORKER TIME MAGAZINE - NEW YORK TIMES - SLATE - SALON.

domingo, 8 de agosto de 2010

:: se minha retina fosse máquina fotográfica... ::

Terrence Malick.
Days Of Heaven.
(1978)



Piro na fotografia dos filmes do Terrence Malick: assisto-os apertando o pause a toda hora para poder contemplar com mais vagar a beleza (por vezes trágica e pungente, outras suave e idílica...) de suas imagens. E numa dessas peregrinações alegres que fizeram os meus olhos sobre elas, fiquei desejando que minha retina fosse máquina fotográfica: eu então dispararia um click cerebral algumas dúzias de vezes durante a projeção de seus filmes, criando depois álbum mental de fotografias...

E aí eu percebi que esta fantasia não é tão irrealizável assim, tendo em vista que uma das vantagens da tecnologia que hoje temos disponível é a facilidade na transposição entre mídias (por exemplo, de um DVD podem-se extrair infindáveis JPEGS, facilmente publicáveis em Flickrs, Picasas, Orkuts, Facebooks e blogs... ). Tive então a idéia de inaugurar uma série de posts essencialmente visuais aqui pro Depredando o Cinema. Menos crítica de  cinema que exposição de fotografias. Menos verborrágicos e mais contemplativos. Que ofereçam mais alimento para os olhos do que para o raciocínio.

((( Acho que eu preferiria poder assistir filmes com home theather, surround sound e barras de chocolate fino, e com a bunda num sofá que fosse mais simpático com as nádegas do que a única cadeira que tenho no meu quarto. Mas há uma vantagem (ainda que mixuruca...) em ser um  pobre universitário destrampado, que não tem televisão nem DVD (sequer tem sofá!), e que assiste filmes em seu valente PCzinho-carroça e monitorzin de modestas 14 polegadas... o fato d'eu estar sempre bem perto do Print Screen! )))

Começo esta série de "álbuns" dedicados a alguns de meu pet-movies por um cineasta que me fascina sobretudo por sua fotografia: Terrence Malick. Dias de Paraíso é seu 2º filme. É uma obra cinematográfica daquela fina estirpe das que a gente assiste com o mesmo prazer que temos ao ler um belo romance histórico, algo do naipe de John Steinbeck, William Faulkner ou Émile Zola.

Cinco anos antes, Malick estreava de modo ousado e polêmico com Badlands - Terra de Ninguém (1973), outro colírio. Neste clássico americano setentista, o diretor americano fez a crônica de um amor entre um fora-da-lei e sua namorada (Martin Sheen e Sissy Spacek) num road-movie que cai bem na linhagem de Bonnie & Clyde (de Arthur Penn), Thelma & Louise (de Ridley Scott) e Assassinos Por Natureza (de Oliver Stone).

Depois de sua belíssima segunda obra, este Days Of Heaven, que conta com uma atuação magnífica do Sam Shepard, Terrence Malick demoraria mais de 20 anos até retornar com um novo filme. Mas faria jus às duas décadas de incubação com Além da Linha Vermelha (1998), um dos mais lúcidos filmes já feitos sobre a guerra e os horrores do militarismo. E que mereceria (qualquer dia desses, quem sabe role!) um álbum depredístico só dele, sem falar numa resenha poética que tentasse desvendar seus muitos mistérios...

Malick: assistam e deixem suas retinas (e corações...) seguirem os estranhos e conturbados rumos a que nos arrastam essas poderosas imagens e enredos!...

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

:: Sinédoque New York, de C. Kaufman (2008) ::


RETRATO DO ARTISTA QUANDO EM DORES DE PARTO

Charlie Kaufman, um dos mais brilhantes roteiristas de Hollywood, estréia na direção mergulhando na alma de um artista atormentado em Sinédoque Nova Yorke

“A ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam.” (Artaud)

Um filme assim é um evento raro: uma daquelas provas vivas de que ainda há brechas na engrenagem do cinemão hollywoodiano para o surgimento eventual de uma grande obra-prima autoral, personalíssima. Uma obra-de-arte que carrega a marca d’água de uma mente criadora à qual é dada a liberdade de se expressar livremente, sem submissão ao comercialismo e ao entretenimento fácil. Um filme que, sem tratar o público como um neanderthal, vêm repleta de densidade, complexidade e “texturas de sentido”, convidando o espectador a um recompensador trabalho de decifração enquanto acompanha uma fascinante jornada existencial. Uma obra densa, cheia de mistérios, de trama que gradualmente se expande e complica, merecendo ser experenciada repetidas vezes para que seus hieróglifos se aclarem e suas mensagens sejam sacadas...

Sinédoque Nova Yorke é um mergulho na psique atormentada de um homem – Caden Cotard – que se encontra em estado de confusão existencial e sofrida gestação artística. Um artista padecendo com as dores de parto de sua obra. Ele procura atravessar uma vida traumática tendo sua criação como aliada, mas percebe que as frustrações e equívocos deste processo de transpor para a arte o vivido se acumulam e multiplicam. É um filme feito para causar vertigens. Para tornar enevoadas as fronteiras entre o subjetivo e objetivo, entre o criador e sua criação, entre percepção e imaginação. E para nos dar a sensação de que uma alma humana, em especial a de um artista que batalha para encontrar sua voz e sua visão, é bem mais vasta e complexa do que sonha nossa vã filosofia…

Philip Seymour Hoffman
Charlie Kaufman, esse efervescente cérebro de criatividade infindável, já tinha se consagrado como um dos melhores roteiristas do cinema moderno: é o parteiro dos roteiros de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Quero Ser John Malkovic, Confissões de Uma Mente Perigosa e Adaptação. Agora mostra que migrou com classe para a direção e estreou cometendo, de cara, um filmaço de um frescor e uma originalidade incríveis. Sem falar que Sinédoque Nova Yorke é mais uma chance para comprovarmos que Philip Seymour Hoffman, já tão badalado por suas performances em Capote, Dúvida, Magnólia e Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto, entre outros, é de fato um dos atores mais magníficos e talentosos desta geração. Apesar do elenco de apoio de primeiríssima – com belas atuações de Emily Watson, Catherine Keener e Hope Davis, por exemplo – Sinédoque é levado nas costas rumo à glória por Hoffman e Kaufman, duplinha dinâmica que esbanja autenticidade.

de Julian Shnabel
Charlie Kaufman surge aqui como uma espécie de herdeiro de Woody Allen, com toques de comédia romântica à la Manhattan ou Annie Hall em certos momentos, mas mergulhando no “climão” mais dark e angustiado dos filmes mais sérios e “existenciais” do diretor americano, como Maridos e Esposas ou Crimes e Pecados. Por horas, lembra também um discípulo de David Lynch, pelo retrato que faz dos recessos mais sombrios desse circo de horrores e maravilhas que é a mente humana. Também traz à lembrança, por ser a crônica de uma existência conturbada votada à expressão artística, o trabalho de Julian Shnabel, cineasta que investigou, em 3 filmes brilhantes, a vida de três artistas contemporâneos que produziram em circunstâncias adversas e heróicas – o pintor-mendigo Basquiat (no filme homônimo), o poeta cubano gay Reinaldo Arenas (em Before Nights Falls) e o francês vítima de “locked-in syndrome” Jean-Do Bauby (em O Escafandro e a Borboleta).


[ WE'RE ALL GONNA DIE ]

“Do you realize that everyone you know someday Will die?”
(The Flaming Lips)

Jon Brion, compositor.
Nosso anti-herói, Caden Cotard (Hoffman), é um homem rodeado e obcecado pela morte – a própria e a alheia. Não são somente os obituários que ele lê no jornal, sua obsessão matinal sorvida junto ao cereal, que denunciam sua “inclinação mórbida”. Sua obsessão com a finitude humana é uma enxurrada que não pára de jorrar alma afora. Quando ele se depara com uma manchete envolvendo personalidades, imagina logo que se trata de algum novo defunto célebre (como no episódio em que bate o olho numa foto e manchete sofre Harold Pinter, e salta na hora para a conclusão de que este tinha vestido o paletó de madeira, quando na verdade havia vencido o Prêmio Nobel de Literatura!). Na TV, ao invés de desenhos animados bonitinhos e inofensivos, a família assiste pequenos documentários sobre o “Mister Virus” e as matanças que ele gera através do mundo animal. Sem falar que o filme já começa com uma cancioneta de ninar (a cargo do brilhante Jon Brion, que cometeu aqui uma de suas mais belas trilhas sonoras) que é imensamente mais mórbida e saturada de humor negro do que costumam ser essas fofurezas feitas para pôr as crianças a dormir.

A angústia em relação à morte não tem nada de “absurda” ou “imaginária”: Caden é obrigado a encarar, no curso do filme (que é ao mesmo tempo a narração sintetizada de várias décadas de sua vida), a morte da mãe, do pai, da filha, de Hazel e de Sammy. Além disso, é um homem sempre doente: depois de um ridículo acidente doméstico, começa a mijar preto, cagar ensanguentado, ter ataques epiléticos e derrames, enquanto pula de médico em médico na cansativa busca por uma cura sempre precária. Vemos suas funções corporais se detiorando: perda da capacidade de salivação; secura das glândulas lacrimais; tremores extremados na perna, que exigem o uso de uma bengala; e gradual perda da memória, da identidade, da vida. Tudo somando para lhe dar uma constante noção da fragilidade do organismo humano e da rapidez com que ele pode ser devorado e destruído pela doença. Irônico que um homem à procura da expressão bruta de emoções verdadeiras esteja condenado – baita gozação de um Destino que parece regido pelo Sarcasmo e pela Lei de Murphy! – a uma condição clínica que o faz escravo das Lágrimas Artificiais e da Salivação Forçada!


Este homem, dolorido e melancólico, inseguro e autêntico, tem uma angústia estampada no rosto e na carne que o torna um Grande Solitário (“can you understand loneliness?“, pergunta à sua amante, com lágrimas nos olhos…). Quando é abandonado pela primeira esposa, que foi procurar a glória e os holofotes em Berlim, ele é obrigado a ler em uma revista esta declaração de Adele: “Estou num momento de minha vida em que só quero estar ao redor de pessoas saudáveis e sorridentes”. E saudável e sorridente Caden certamente não é. Mas que grande artista tinha a alma toda ensolarada e repleta de borboletinhas?


[MORTOS CONSCIENTES]

Clássico livro de E. Becker
Albert Camus, o luminar do existencialismo, dizia que uma das missões mais fundamentais de uma obra-de-arte era a de criar “mortos conscientes”: “o verdadeiro, o único progresso da civilização, aquele a que um homem de vez em quando se aferra, é o de criar mortos conscientes” (Núpcias). Para ele, os seres mortais que somos precisam urgentemente tomar consciência plena de sua própria mortalidade. Ou seja, cessar de reprimir esse saber e essa percepção como é tão comum fazermos – processo psíquico de resistência e auto-cegueira analisado pelo brilhante psicólogo e antropólogo Ernest Becker, que venceu o Prêmio Pulitzer de 1962 por seu “A Negação da Morte”. Caden Cotard não só assassinaria em baixo, como pôs sua arte à serviço dessa missão: criar “mortos conscientes”, ou seja, vivos que sejam plenamente conscientes de sua mortalidade e que não procurem escapar, pela ilusão ou pela diversão, pela cegueira ou pela religião, desta verdade crua.

Caden Cotard encarna um artista existencialista camusiano que deseja “espalhar”, através de sua criação, essa Conscientização de nossa Finitude – finitude esta que é, para ele, uma obsessão, um tormento e um fermento. O próprio nome do personagem remete a uma síndrome patológica descrita pelo neurologista francês Jules Cotard (1840-1889). Aqueles que sofrem da Síndrome de Cotard – se confiarmos no raso e breve verbete da Wikipédia – possuem tendências para o “niilismo” e o “delírio de negação” e costumam, por exemplo, imaginar que já estão mortos ou com o corpo putrefato.

Isso fica muito bem retratado naquela cena em que, reunido frente ao seu cast de atores, Caden, falando sobre o que deseja explorar em sua obra, comenta que todos estamos fatalmente indo em direção à morte, e que sua peça de teatro, independentemente de seu sucesso ou seu fiasco, não mudará um átomo deste destino fatal. Seu “insight” pode até parecer “banal” – quem de nós não percebe que nada do que façamos é capaz de fazer-nos derrotar a morte, que vencerá a guerra, não importa quantas batalhas ganhemos? Mas essa percepção não deixa de ser uma espécie de “pedra angular”, de primeiro tijolo da construção, aquilo que alicerça todo o edifício de sua estética. “É isso o que quero explorar”, pontua, com simplicidade cortante, fundando sua “estética” sobre esse desejo de transpor para os palcos a “verdade nua e crua” sobre a vida – vida que é, sempre, para todos, mortal e fugaz.

Este climão um tanto “tétrico”, onde somos constantemente lembrados do quanto somos máquinas de carne fáceis de adoecer e pifar, não impede que o filme esteja repleto de momentos de extrema ternura. Os diálogos no início da “paquera” entre Caden e Hazel são uma descrição graciosa de um diálogo amoroso alegre e tocante entre dois tímidos incuráveis, que vão se tateando em busca de um amor possível. É este mesmo casal, quando ambos estão envelhecidos, que protagoniza a cena mais doce e lacrimejável do filme, quando, dentro daquela casa em chamas, surge um vínculo repleto de aconchego e compreensão entre os dois velhinhos que a vida juntou e desencaminhou – o que faz Caden considerá-lo “o dia mais feliz de sua vida”.



[THE STRUGGLE TO BE TRUTHFUL]

O mesmo Camus dizia, em A Inteligência e o Cadafalso, que “a arte que recusa a verdade de todos os dias perde a vida.” Poderia ser uma frase de Cotard, um homem espancado pela vida que se põe a transpor para a arte todas as feridas que padeceu. Sinédoque Nova Yorke não deixa de ser o relato de uma longa e perseverante luta de um homem para transferir para sua arte todo o seu sofrimento. De modo que o ideal artístico de Caden não é o surrealismo, apesar do filme de Kaufman estar repleto de respingos surreais, nem a tragédia, apesar da vida deste personagem muitas vezes beirar o trágico: ele é um artista que deseja transplantar a realidade para a arte, criar na arte um simulacro perfeito do real, de modo que esta arte tenha como principal e mais crucial atributo esta: soar verdadeira. Em inglês, há uma ótima expressão para descrever isso: “it has to ring true”. E outra, pra narrar o confronto do artista com essa difícil criação de algo genuíno: “the struggle to be truthful”.

Pois Caden Cotard vagamundeia por um mundo de artificialismo e frivolidade. Sua arte é sua revolta e sua reação a isso. Sua psicoterapeuta, por exemplo, é um símbolo dessa futilidade que ele procura massacrar com sua obra: uma loira boazuda pra lá de incompetente, que está mais interessada em propagar seus best-sellers de auto-ajuda ou seduzi-lo com suas coxonas à mostra. É uma alfinetada certeira nos charlatões da Psicanálise, como Woody Allen sempre fez tão bem, que nos leva a perguntar: há algo de realmente benigno neste processo de arrancar das pessoas, à força, confissões sobre o que de mais horrível e reprovável elas possuem no fundo de si mesmas? Não há certos casos em que essa verdade cruel, ao invés de ser cultuada e posta debaixo de holofotes, não seria melhor tratada se remediada com doses cavalares de doçura, piedade e compreensão?

Charlie Kaufman
Caden, no início do filme, está visivelmente desconsolado com a artificialidade e a má-atuação de seus atores. Ele nos é apresentado dirigindo “A Morte do Caixeiro Viajante”, clássico da dramaturgia americana que une o realismo mais cru com os “dramas cotidianos” mais trágicos. Mas ele, como diretor, sente-se incapaz de fazê-los interpretarem seus papéis de modo visceral, profundamente sentido, encarnando de modo total aqueles personagens. Na noite em que a Adele, sua primeira esposa, vai assistir a peça, Kaufman retrata bem o constrangimento de Caden, o diretor, frente à performance melodramática e espetaculosa de sua atriz. Em sua grandiosa nova obra teatral, ele irá partir em busca de doses cavalares de verdade (é um apologista de um teatro da verossimilhança) e de representação contagiosa do sofrimento (o que o aproxima das teses do chamado Teatro da Crueldade).

Uma cena bastante emblemática é aquela em que Caden é filmado frente a uma imensa mesa, toda repleta de “bilhetinhos” que pretende entregar aos atores. Cada um deles contêm algo de terrível que aconteceu a seus personagens e que eles deverão interpretar. Coisas como “Você foi estuprada ontem à noite”, “Você descobriu que têm câncer” ou “Você de repente acordou e percebeu que sua esposa é uma estranha.” Um imenso caleidoscópio do sofrimento humano, sendo sua obra uma espécie de Catedral onde essa multidão de dores iria soar, numa polifonia de dores soando em uníssono.

Conversando com Hazel, Caden “viaja na maionese”, como se tivesse chapado de tanto ler Artaud, dizendo que sua intenção, como artista, é criar um “banho comunal” onde as pessoas mergulhem em “sangue menstrual” e outras eviscerações. Em outro momento, fazendo um discurso irado frente ao seu cast de atores, que ensaiam há 20 anos uma peça que jamais estréia, Caden, enlouquecido e autoritário, chegando às raias da demência por excesso de solidão, diz que não aceitará nenhum resultado que não traga, em estado cru, a VERDADE BRUTAL. E eis aí uma expressão-chave para se entender este filme e esta alma: que Caden tenha dado justamente este adjetivo – “brutal”! – para a verdade é sintomático das feridas que a vida lhe infligiu e das feridas que ele quer, através de sua arte, comunicar a outros.

O jovem Artaud

[O TEATRO E A PESTE]

Por isso dá pra conceber a proposta estética de Caden Cotard como um cruzamento ou uma mescla do existencialismo de Camus com o Teatro da Crueldade de Artaud. Pois vejam só se Artaud, um dos mais incendiários e subversivos dos pensadores que já se aventurou a meditar sobre o teatro, não comunicou idéias que exprimem perfeitamente a proposta estética de Caden Cotard:

“Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual (…) e impõe às coletividades reunidas uma atitude heróica e difícil”, escreve ele no clássico O Teatro e Seu Duplo. Ali estabelece também o célebre paralelo entre o Teatro e a Peste (e não é à toa que nos últimos momentos de Sinédoque Nova Yorke o galpão onde se desenrola a peça aparece transformado quase num cenário pestífero, com ratos pelos corredores e corpos esparramados pela calçada, com pouquíssimos sobreviventes num mundo dizimado por alguma cruel moléstia):

“Se o teatro essencial é como a peste, não é por ser contagioso”, continua Artaud, “mas porque, como a peste, ele é a revelação, a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num indivíduo ou num povo todas as possibilidades perversas do espírito.”(…) “O Teatro desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas possibilidades e essas forças são negras a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida”. (…) Não consideramos que a vida tal como é e tal como a fizeram para nós seja razão para exaltações. Parece que através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente.”
No fundo desta estética de Caden Cotard (e quanto dela é a estética de Charlie Kaufman?), além dos elementos existencialistas e artaudianos, está outro insight fundador: o de que cada um dos Outros que vemos de forma tão desbotada e desatenta é, na verdade, sempre o herói e o protagonista de sua própria história. Num mundo onde coexistem 6 bilhões de seres humanos, nenhum deles é secundário ou irrelevante no “filme” de sua própria vida – Sua Majestade, o Ego, sempre se vê como o centro do Universo, e tudo o mais orbita ao seu redor… Cada uma dessas pequenas faíscas de vida que somos, vivas por um átimo em meio à imensidão de tempo em que ainda não existimos e em que não existiremos mais, são todas efêmeras protagonistas de seus próprios destinos. Quando cai o “the end”, cada um de nós entra para o negrume dos créditos com o nome em primeiro lugar, seguido por 6 bilhões de coadjuvantes. Se isso é uma acusação contra o invencível egocentrismo de cada ser humano, ou se é uma abertura de percepção que nos abre ao grande mistério da alteridade e da empatia, é questão em aberto. Sinédoque Nova Yorke, um filme que soa como um abscesso vazado, uma dilacerante criança de um artista dos maiores do cinema contemporâneo, prefere, ao invés de nos fornecer respostas, nos cumular de dúvidas e nos contagiar com sua angústia. Talvez assim, criando novos mortos conscientes, cientes do quanto são fugazes e cientes da imensidão de destinos com que convivem, possam, tateando no escuro, encontrar algum caminho através desse vale de lágrimas e maravilhas que chamamos mundo.