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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

<<< O Povo Contra Larry Flynt (Milos Forman, 1997) >>>


Liberdade de expressão, dizia George Orwell, é o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir. Voltaire demonstrou compreender isto muito bem quando disse, fidelíssimo ao espírito do Iluminismo: "Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo." Para ser algo além de uma piada ou uma fachada, a liberdade de expressão precisa valer tanto para nossos adversários quanto para nossos aliados, tanto para aquilo que nos fere os ouvidos quanto para aquilo que os acaricia... Pode a democracia existir sem ela, que possibilita a coexistência da diferença em sociedades complexas, irredutíveis a um pensamento único e que não mais se deixam governar pela força do dogma?

Larry Flynt, o polêmico pornógrafo criador da Hustler (uma Playboy mais obscena, desbocada e explícita), foi uma das personalidades americanas que levou mais ao extremo o direito constitucional conferido pela Primeira Emenda à Constituição dos EUA. E pagou alto preço por isso, tornando-se um mártir involuntário a demonstrar que as instituições americanas são bem mais fundamentalistas e intolerantes do que seu auto-elogio marketeiro nos faz supor. "Land of the free"? Só se for do free market, porque do resto...

Decerto que foi preciso uma imensa revolução de costumes, herdeira da pélvis de Elvis, do movimento hippie, do "é proibido proibir!" do Maio/68, de Whilhelm Reich e de Marcuse, dentre outras coisas, que tornou possível a enxurrada de "revistas adultas" que toma as bancas-de-jornais da década de 70 pra frente. O problema espinhento, que os movimentos feministas não deixariam de sublinhar, me parece ser o seguinte: se por um lado a "Revolução Sexual ocidental" gerou uma massiva libertação da sexualidade em relação a carolices e repressões quadradas, em contraste radical com o ferrenho ascetismo do mundo islâmico (que encerra até hoje suas mulheres detrás de pesadas burcas...), o Ocidente americanizado caiu no vício da comercialização barata do corpo feminino, coisificado, marquetificado, posto no moedor de carne... O próprio Flynt, em um momento de mea culpa, publicou uma clássica capa de Hustler, em Junho de 1978, em que dizia: "We will no longer hang women up like pieces of meat". Mas seu escrúpulo durou pouco, e o deleite pelos milhões com que a publicação recheava sua conta bancária prevaleceu...

O filme de Milos Forman é um ótimo retrato de uma vida punk: confrontadora, sacrílega, provocativa. Pois a vida de Flynt, como Forman a narra com seu talento habitual, foi altamente podreira: o pornógrafo passou tempo na cadeia, foi baleado por um desafeto, ficou tetraplégico, virou morfinômano, gastou milhões em fianças, enviuvou de uma suicida, entre outras desgraças. A presença de Courtney Love, encarnando visceralmente a esposa junkie e auto-destrutiva de Flynt, poucos anos após o suicídio de Kurt Cobain, só frisa ainda mais o caráter contra-cultural e escancaradamente transgressor desse casal para quem toda polêmica sempre foi pouca. Eles foram como Bonnie & Clyde da imprensa marrom.

Mas a obra de Forman, mais que uma mera cine-bio instigante de um personagem maldito, ao estilo do excelente Os Contos Proibidos do Marquês de Sade (de Philip Kaufamn), alça-se mais alto do que a mera descrição de um destino individual. É a crônica do intenso debate público que a figura de Flynt gerou em torno de questões como desrepressão da sexualidade, liberdade de imprensa e afronta a instituições religiosas estabelecidas.

É óbvio que é uma questão moral espinhosa decidir se, no caso da Hustler, a censura seria justificável. Uma democracia deve permitir que um magnata da imprensa, acusado por seus detratores de publicar revistas de um tremendo mau-gosto, fique milionário? Será que deve-se permitir que Larry Flynt utilize a Primeira Emenda como escudo para defender-se por estar faturando alto ao vender fotos de bucetas arrombadas e notícias falsas que cobrem de lama as autoridades religiosas adoradas pelas massas? A Hustler poderia sair impune ao criar uma matéria falsa onde diz-se que o pastor Jerry Falwell cometeu incesto com sua mãezinha depois de ficar bebaço de Campari?

O filme se vai, mas deixa impresso na memória do espectador o arco obsceno e herético que fez nos ares do zeitgeist este figuraça, Larry fuckin' Flynt. As perguntas que ele pôs à sociedade de seu tempo continuam tão dignas de serem postas hoje quanto eram então.

<<< this country is founded on the belief that unpopular speech is absolutely vital to the health of our nation... >>


O Povo Contra Larry Flynt
. De Milos Forman.

sábado, 4 de dezembro de 2010

:: The Straight Story (David Lynch, 1999) ::


“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (...) Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.”
MILAN KUNDERA, A Lentidão


História Real, como cansou-se de frisar, é um filme que destoa bastante do restante da filmografia de David Lynch: nenhuma bizarrice, aberração, perversão sexual, confusão psíquica, extravagância obscena ou vilão cafajeste têm lugar neste sereno e comovedor road movie caipira. Nenhuma ruptura brusca na linearidade tranquila aparece para complicar um enredo que flui adiante como um riacho num suave declive. Nenhuma tentativa de borrar os limites entre o onírico e o real, o objetivo e o subjetivo, a sanidade e a insânia. A obra parece representar um daqueles momentos no percurso criativo de um grande artista em que a vontade de inovar e surpreender sossega, suas ambições tornam-se mais modestas e os recursos de que lança mão, mais simples. Ornamentos e floreios são preteridos em prol da singeleza sem sinuosidades. É como quando Bob Dylan encontra seu remanso, após a chapada salada surrealista-beatnik-dadá de Highway 61/Blonde On Blonde, na mansidão de Nashville Skyline

O clima de pesadelo aflitivo e confuso que impregna um Cidade dos Sonhos ou A Estrada Perdida está completamente ausente desta crônica amena e benevolente da jornada de Alvin Straight pelo interior americano em seu cortadorzinho de grama. Algo nos belos olhos azuis e na barbicha branca de Richard Farnworth conquista de imediato qualquer espectador com uma capacidade mínima de empatia. Este é um personagem que ganha nosso afeto com uma facilidade espantosa. Que virtudes são estas, que emanam de sua expressão como uma aura angelical? Como pôr em palavras o que faz deste velhinho uma criaturinha tão amável quanto um vovô querido que ainda não tínhamos conhecido? Talvez a franqueza tranquila, a abertura espotânea, o espanto ingênuo no olhar, a delicadeza e a afabilidade nos modos, a facilidade na confiança... Eis um homem que jamais considerar qualquer ser humano como indigno de se tornar seu confidente.

Para Alvin Straight, um desconhecido é só um amigo que ele ainda não fez. E o filme de Lynch não tem poucas simples mas comovedoras provas de solidariedade e amizade entre pessoas que acabaram de se conhecer, mas que não demoram a se afeiçoar.

Sua viagem pelas estradas da América não deixa de ser também uma viagem pelos trilhos da memória. Ao acaso de seus encontros, ele faz confidências e rememora traumas (por exemplo: matou por acidente um aliado na II Guerra Mundial...), desvelando os motivos de sua extravagante epopéia: o desejo de fazer as pazes com um irmão com quem está brigado há uma década.

É uma viagem realizada com uma lentidão premeditada e escolhida: pois de que valeria viajar sem ter tempo para contemplar as estrelas ou assar salsichas à beira da fogueira? O que pode surpreender o espectador contemporâneo, especialmente se este vive em meio ao frenesi de uma metrópole e jamais conheceu a morosidade da roça ou do sertão, é o fato de Alvin parecer incapaz de entediar-se. A vagarosidade de seu veículo-tartaruga, que faria qualquer um de nós amaldiçoar a chatura da viagem, é algo que ele enxerga com benevolência: pode, assim, observar melhor a paisagem, conhecer gente pelo caminho, sentir na face a brisa suave... 

Este é o road movie do common folk, mais próximo de uma novela de John Steinbeck ou William Faulkner do que d'um exercício artaudiano de mergulho nos recantos mais obscuros da psique humana, aventura tão tipicamente lynchiana... But then again: The Straight Story é um Lynch bem atípico, e talvez por isto mesmo tenha um sabor tão especial... 

Não se trata tanto de uma afoita correria na direção de um parente adoentado em apuros, necessitado de auxílio. O que parece mover Alvin nesta estrada, mais que os 12 galões de gasolina que ele carrega em seu tosco trailer, é a vontade de pacificar um relacionamento humano gangrenado por uma longa e lenta ferida --- tão longa a ferida, talvez, quanto a estrada. É mais um ajuste de contas com seu próprio passado que este velho homem decide empreender ao sentir a morte roçar pelo irmão. A jornada é aquilo que se segue à tomada de consciência de que o fim se aproxima, que o falecimento do irmão é iminente e que logo será tarde demais para a reconciliação.

Há feridas que, se não cicatrizadas em seu devido tempo, irão sangrar até a morte. Alvin Straight viaja em busca da cicatrização, e carregando consigo a vontade de paz e de saúde, por mais tardia que se faça. Ele é um homem que aprendeu que diante de uma tumba que se abre, é difícil (e muito tolo...) manter-se aferrado a ressentimentos mofados e mágoas ancestrais. Alvin viaja com a bandeira da paz hasteada em seu coração. Alvin viaja na lentidão daquele que opera, conforme os quilômetros são transpostos, uma cirurgia nos tumores da memória. 


Quando ele atinge seu destino, Lynch é tão discreto e singelo quanto foi o filme todo. Não apela para a verbosidade de um longo diálogo, para o sentimentalismo de um banho de lágrimas ou para o comovimento fácil de um abraço amigo. Encerra sua obra com o simples reconhecimento, da parte do irmão, da beleza de um gesto. Gesto de quem preferiu o perdão à mágoa, a serenidade ao ressentimento, a fraternidade à cisão. Nunca um combalido cortador de grama, judiado depois de uma viagem matadêra, foi um símbolo tão comovente de uma intenção benévola de superação do ódio e consumação da reconciliação. 

E sobre eles, irmãos enfim reunidos, à sombra do fim, na água fresca do perdão, milhares de estrelas observam, silentes, os estranhos carroséis dos corações humanos...



RMVB - legendado em português - 350 MB