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sexta-feira, 30 de abril de 2010

:: Into The Wild ::


NA NATUREZA SELVAGEM


"It is no measure of health to be well adjusted to a profoundly sick society." -- KRISHNAMURTI


[I DESCEND FROM A LONG LINE OF REBELS]

Ah, o doce perfume da rebelião! A tempestade e o ímpeto destes que rompem com as grades de suas celas, ainda que seja a cabeçadas! No cinema, há uma longa série de rebeldes que culminou, nos últimos anos, na figura digna de se tornar mítica de Alex Supertramp. Mas ele teve muitos respeitáveis precursores na arte do Sublime Desrespeito!...

Há o James Dean, em Juventude Transviada, revoltando-se contra seus pais com atos desordeiros e temerários, e orgulhando-se de seu desprezo pela morte frente à carola moderação dos ponderados. Há Marlon Brando, em O Selvagem, chefe da trupe de motoqueiros com jaquetas-de-couro que invadem pequenas cidades para "causar" e que responde, quando lhe perguntam "what are you rebellin' against?", com o clássico "what have you got?!"

Mais pra frente, surgem os dois rock'n'rollers outsiders de Easy Rider, símbolos de outro momento cultural, mas onde prossegue a sensação de que "a América um dia já foi um país danado de bom", como comenta o personagem de Jack Nicholson, mas que tudo foi pro brejo. E agora o que resta é se lançar a jail-breaks em busca do ideal sempre almejado por todos os heróis de road movies: "freedom!"

Se Juventude Transviada e O Selvagem são marcos no retrato do "desajuste juvenil" aos valores vigentes nos anos 50, o clássico de Dennis Hopper fotografa dois cabeludos anti-establishment frutos de outra geração: não exatamente a geração hippie, mas aquela que sobreviveu a ela e viveu sua "ressaca". Easy Rider nos conta as vivências na estrada de dois amigos que atravessaram os anos 60 testemunhando a ebulição do Flower Power, dos Black Panthers e da Guerra do Vietnã (e dos protestos de rua contra ela), sem falar da epidemia da psicodelia turbinada pelo LSD (e que tinha seus gurus em gente como Timothy Leary, Terence McKenna e Ken Kesey), mas que descobrem-se vivendo ainda numa América refratária, intolerante e tristemente sanguinária.


Há ainda casos dignos de menção nos charmosos revoltados de Paul Newman, especialmente em Rebeldia Indomável (Cool Hand Luke, de Stuart Rosenberg, 1967) e Hud - O Indomado (Hud, de Martin Hitt, 1963). Ou no inesquecível levante contra a opressão manicominal em Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cucko's Nest, de Milos Forman, 1975), um dos grandes papéis de Jack Nicholson.

Chegando mais perto de nossos tempos, vale lembrar o histórico rolê-de-motoca pela América Latina empreendida pelo jovem Che Guevara, que Walter Salles registrou com sua costumeira sensibilidade e singeleza em Diários de Motocicleta. E é imprescindível lembrar também do Tyler Durden de Clube da Luta, agressivo e incendiário alter-ego de um funcionário disfuncional da Sociedade de Consumo, que torna-se mentor de um submundo onde o descarrego de violência vai ganhando ares de terrorismo contra os magnatas financeiros e as empresas de cartão de crédito. Sua tese de que "as coisas que você possui acabam por te possuir" poderia ser um mote de Alex Supertramp, o herói de Sean Penn que tanto merece ser o mais novo membro desta longa linhagem de rebeldes!...


[NO LONGER TO BE POISONED BY CIVILIZATION...]

"Feliz, pensava, quem não se prende a nada na terra e passeia um eterno fervor através das constantes mobilidades. Odiava os lares, as famílias, todos os lugares em que o homem pensa encontrar descanso; e as afeições contínuas, e as fidelidades amorosas, e o apego às idéias... dizia que cada novidade deve encontrar-nos sempre disponíveis." ANDRÉ GIDE, Os Frutos da Terra

Into The Wild, quinto filme dirigido por Sean Penn (que assinou também o roteiro), é baseado na história real do jovem Christopher McCandless, "aventureiro americano" biografado por Jon Krakauer. Filho da classe-média alta, aluno brilhante e leitor omnívaro, McCandless, depois de acabar a faculdade, embarcou numa "aventura espiritual" pelos recantos mais selvagens da América. Rompeu radicalmente com a vida burguesa, o mercado de trabalho capitalista, a sociedade de consumo e a família monogâmica. E caiu na estrada, como um sábio vagabundo de Hermann Hesse ou um seguidor de Buda, sem deixar rastros ou mandar cartas, em busca de uma vida mais frugal e ascética, mas repleta de epifanias, encontros humanos genuínos e dolorosos aprendizados.


Em 1992, quando seu cadáver foi encontrado no Alaska, a revista People fez uma reportagem sobre sua vida em que o descrevia como
"a gifted, earnest young man who had been searching for simplicity and spiritual fulfillment in what he had hoped would be the rapturous heart of Mother Nature. He seemed also to be strangely alienated from his former life, ready to cast his fate to the whims of the wilderness. On a board in the bus he had scrawled, 'No phone. No pool. No pets. No cigarettes. Ultimate freedom... No longer to be poisoned by civilization, he flees, and walks alone upon the land to become Lost in the Wild."
Esta "jornada espiritual" que se segue a uma brutal ruptura com a "sociedade" não deixa de ter seus símiles na história religiosa: para ficar em dois exemplos maiores, é só lembrar que o príncipe Siddharta, futuro Buda, abandonou o palácio repleto de conforto e luxo de seu pai, a fim de viver uma vida casta e ascética em busca do Nirvana (Iluminação), e que Cristo também sentiu-se na necessidade de, em certo ponto de seu "percurso espiritual", se exilar no deserto...

Por isto enxergo Chris McCandless, ou sua transposição para o cinema em Alex Supertramp, como uma espécie de Pequeno Buda querendo rasgar as correntes que o prendem à América Capitalista, onde uma realidade social frenética, competitiva, gananciosa e consumista impossiblita qualquer tipo de "espiritualidade autêntica".

Ele poderia ter continuado a fritar batatas no Burger King. Podia ter entrado na Universidade de Harvard, para cursar Direito, "destino" que seus pais considerariam glorioso. Podia ter se tornado um respeitável engravatado, com seus ternos Armani e Rolex no pulso, especulando nos cassinos de Wall Street e divertindo-se ao modo yuppie. Poderia ter aceito o carro novo que o pai lhe oferecia, e que certamente viria mais up-to-date do que sua fatigada carcaça de caranga. Podia ter se enquadrado no sistema e virado um square. The straight life. The american way.


Mas não. Chris sente seu sublime desajuste e sabe que ele está certo. Como diz Krishnamurti: "não é sinal algum de saúde estar-se ajustado a uma sociedade profundamente doente". Chris quer, pois, cortar as amarras que lhe prendem à vidinha convencional, ao caminho que todos trilham, à clicheria nauseante chamada normalidade. O garotinho nota 10, orgulho das professorinhas na escola, depois de se formar na Universidade com o histórico repleto de A's não fará o que se espera dele: adentrar quietinho o mercado de trabalho, faturar com o submisso suor de seu rosto o seu merecido salário, para ir comprar voraz as novas bugigangas à venda...

Doa suas economias - 25 mil dólares - para caridade. Rasga seus cheques e mete a tesoura em seus cartões de crédito. Abandona seu carro no deserto do Arizona. E, munido apesar de seu polegar aventureiro, cai no mundo."Sem telefone, sem piscina e sem bichos de estimação", se manda para a estrada, como a encarnação viva dos ditos rolling stones gather no moss ou wherever I lay my hat, that's my home. "I'm an aesthetic voyager whose home is the road", talha na madeira de seu ermitério, onde centra todas as suas forças em consumar sua "revolução espiritual" --- auxiliado por grandes mestres como Tolstoi, Thoreau, Pasternak, Byron, Emerson e outros "buscadores".

Ele quer viver de pouco, depender de pouco, como um seguidor da ética ascética dentro da sociedade mais consumista, luxuosa e desperdiçante do planeta. "You can't live only on leaves and berries", lhe dizem os cautos. Ele acha que pode.


[UM HORIZONTE SEMPRE CAMBIANTE]
"Tanta gente vive em circunstancias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece paz de espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito do homem que um futuro seguro. A coisa mais essencial do espírito vivo de um homem é sua paixão pela aventura. A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante. (...) Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional." --- Carta de Chris McCandless a Ron, seu amigo de 81 anos

A certo momento, perguntam a Chris: "What are you running from, kid?" E esta é uma interpretação plausível de seus atos: a de que sejam um mecanismo de fuga bem mais do que uma nobre "spiritual journey". Sua jornada talvez se explique menos pelo "amor à natureza" do que pela repulsa pela família. Ele foge "into the wild" pois sente que suas relações familiares não o levariam a lugar nenhum - só ao convencionalismo insosso, a busca por conforto material e respeitabilidade, as monótonas burguesices cotidianas. É uma rebelião que visa esfregar na cara dos pais sua discórdia intransigente em relação aos valores que eles encarnam.

Ele não quer um carro novo ("why would I want a new car?", pergunta Chris quando lhe oferecem o presentaço, certamente com a esperança de que ele seria recebido com sorrisos largos e cabriolas). E não é somente uma questão de estar sentimentalmente apegado à velha caranga que sua mãe considera uma "sucata" ("junker"). É, me parece, uma crítica que ele faz a esta sociedade de consumo em que pessoas se sentem na necessidade de ter sempre o "Carro do Ano", caso contrário ficam mal na fita com os vizinhos. E é também, creio eu, uma tentativa de lhes dizer que amor não se compra, ou que pelo menos o seu coração não está à venda. Não é nada de "material" o que ele demanda deles!


Pois um dos aspectos mais nefastos da vida numa cultura capitalista-consumista, como é a americana (e, por consequência, também a nossa, já que estamos sob a área de influência do Grande Império e vivemos num Brasil altamente americanizado), é que a mercantilização se disseminou a ponto de emporcalhar grande parte das relações humanas, tornando muitas pessoas incapazes de demonstrar afeto a não ser através do dinheiro.

Se eu quero agradar a meu filho, vou e compro pra ele um carro zero-bala ou aumento sua mesada, ainda que passe o ano inteiro, às vezes toda uma década, sem jamais lhe dar um abraço. Se quero incentivá-lo a passar no vestibular, prometo um PC novo, o que me dispensa de conhecê-lo, apoiá-lo, amá-lo. A recompensa prometida é sempre um sonho de consumo, e assim condiciona-se a nova geração a receber prêmios sempre em bugigangas, nunca em afeto genuíno. E vive-se numa sociedade regida a tal extremo por interesses financeiros e pela "fome pelo ouro", que qualquer pessoa que demonstre outros pendores vira logo um outsider!...

"I don't want anything!", diz Chris aos pais, que aparentemente nem percebem a ênfase que ele põe na palavra "thing" (coisa), o desprezo com que enumera, como se recitando um blá-blá-blá soporífero, "things, things, things...". Se ele se sente atraído pela "natureza selvagem", pois, é por sentir que ali se furtaria à área de influência do Onipresente Capital e escapuliria para lugares onde não está rodeado por gente que vive sob o tenebroso fascínio do vil metal... Ele procura a Natureza Virgem como um modo de escapar da Sociedade da Ganância.

Fucking Greed. Na linda canção de Eddie Vedder, "Society", o cantor do Pearl Jam destaca que, longe de ser uma exceção patológica a ser tratada como uma doença, a ganância tornou-se a regra, socialmente aceita, até mesmo louvada!
"We have a greed to which we have agreed /And you think you have to want more than you need /
Until you have it all you won't be free."

[EDDIE VEDDER, "Society"]
A ganância é uma loucura disseminada no espaço social ("society, you're crazy breed, crazy indeed...") e dá em qualquer ser sensível umas ganas impetuosas de vazar. "Society, hope you're not lonely without me...".

Além disso, Chris fornece um relato desolador de sua vida familiar, como se militasse, como Wilhelm Reich fazia em seu tempo, para solapar as bases de uma instituição social caduca. As tretas conjugais constantes (e violentas) do casal, que os filhos testemunham, lhe dão vontade de voltar no tempo e dizer a eles, no passado, "não se casem! Ela é a mulher errada, ele é o homem errado!" (versos de um poema de Sharon Olds). A falta de diálogo e compreensão, a obsessão com o conforto material e o convencionalismo, o "abismo entre gerações", são outras das causas que ajudam a explicar porque Chris se sentiu tão "asfixiado" com sua família a ponto de "voar do ninho" e se independer radicalmente.

Certos críticos viram nisto um aspecto negativo, como se ter rompido com a família fosse um ato de crueldade e egoísmo. Em sua crítica para o Guardian, Peter Bradshaw adjetiva o personagem como "regressivo", "disfuncional", "teimoso" e "vingativo", sustentando que sua longa viagem é mais uma represália contra os sofrimentos que seus pais lhe infligiram:

"His need to immerse himself in nature, to throw material possessions overboard, stems at least partly from a need to punish his parents for the lies and cruelties he remembers being inflicted on him and his sister as a child. There is something regressive and dysfunctional in McCandless, a fear of human interaction. It is his unhappy fate not merely to entrance the people he meets on the highway with his unaffected charm, but to break their hearts too, by insisting on an enigmatic leave-taking. "You're wrong if you think the joy of life comes from human relationships," is one of the last things McCandless says to Franz."

O Vilaça insiste nisto também, dizendo que Chris está "simplesmente fugindo de seu passado – e seu propósito não declarado (aliás, inconsciente) é encontrar alguma forma de preencher o vazio interior deixado pela relação conturbada com os pais." O fato de sumir sem dar notícia para os pais é considerado pelo crítico do Cinema em Cena como "absolutamente imperdoável".
Sim: é possível que este elemento de "ressentimento" e "vingança" tenha funcionado como um dos vetores que o motivaram; e sem dúvida que o sofrimento que ele causou em seus pais não é negligenciável, como mostram as belas palavras da irmã de Chris quando fala sobre o que se passou com eles quando o "fantasma da perda" amoleceu os corações...

Mas a questão crucial a se perguntar é: Chris não tinha uma boa dose de razão em sua ruptura com a família? Ele é "regressivo" e "disfuncional", como sugere Bradshaw? Ou, pelo contrário, é alguém que quer pegar o leme de sua vida em suas próprias mãos, pensar com a própria cabeça e andar com os próprios pés, sem ser a ovelha submissa e obediente de seus pais? Ele deveria manter-se preso à gaiola familiar por quê, se ali não era feliz, amado ou compreendido? Por mera "fidelidade aos dogmas sociais"?



[OBJECTION, YOUR HONOUR!]

Que haja "objeções" possíveis contra o suposto "heroísmo" de Christopher McCandless, não há dúvida. Morrer de fome, sozinho num ônibus no meio do Alaska, aos 24 anos de idade, sem ninguém te acompanhando durante a agonia, dificilmente parece um "destino invejável". O fim trágico e prematuro desta criatura tão promissora, com tanto ainda a viver, não lançaria uma luz sombria sobre seu percurso, fazendo-o aparecer sob uma coloração mais cinza? É o que muitos comentadores sugerem: que a morte de Chris McCandless no meio da natureza selvagem provaria a ineficácia de seus métodos, a inconsequência temerária de suas escolhas, os resultados terríveis de sua revolta...


"Na Natureza Selvagem é uma estória de uma vida desnecessariamente perdida por um jovem homem que se conscientiza tarde demais de que uma temerária auto-suficiência não é necessariamente o caminho para o auto-conhecimento. Que ele fracasse em perceber isto antes é algo trágico; mas que o filme passe tanto tempo celebrando esta má compreensão é desconcertante", sugere Rossiter Drake, do The Examiner, um dos mais lúcidos dos críticos que "falou mal" do filme.

O mesmo crítico ainda põe em dúvida a "autenticidade da sabedoria" que Chris dissemina em seus conselhos para aqueles que encontra pelo caminho, dizendo que é tudo "emprestado de Tolstoi e Emerson" e que "McCandless, apesar de suas pretensões, é uma criança confusa fugindo de casa, e não Thoreau em Walden Pond."

Já Anthony Quinn, em seu artigo pro The Independent, destaca que, em certo momento, a jornada de Chris, quando ele recusa todos os conselhos e pedidos das pessoas com quem depara para que não parta "para o meio do nada", revela um egoísmo crasso. Ao invés de ficar entre os homens, ainda que seja longe da família, entre hippies, ciganos, poetas, ascetas, folkies, drop-outs e outros sublimes desajustados, ele prefere ir-se para seu frio ermitério, mais preocupado com sua "revolução espiritual individual" do que com laços afetivos que poderiam justificar sua existência. "McCandless's journey suddenly seems no longer a noble quest for purity but a monumental act of egotism", escreve Quinn.

No Times, a crítica Wendy Ide também coloca seriamente em questão as atitudes de Chris e sugere que faltou ao filme de Sean Penn "colocar algumas questões cruciais":
"Although McCandless’s story is undoubtedly fascinating, and Penn’s film contains moments of magic, it is a lesser piece of work because it prefers to accept its subject at face value rather than ask a few crucial questions. Was McCandless following a path to enlightenment or just a quick getaway from responsibility? Was he pursuing a quest for love and happiness, or waging passive aggressive war on his parents? And how can someone who claims to be antimaterialist embark on something that is arguably a luxury reserved for those in the most affluent of societies – the search for oneself? "
São críticas interessantes e válidas, sem dúvida, que compartilho aqui como meio de aprofundar a reflexão sobre o filme e para que evitemos a "pagação de pau" descerebrada, que só sabe louvar sem refletir sobre os nós e espinhos deste destino.


A minha impressão é a de que Chris McCandless conquistou sim uma imensa sabedoria com sua jornada e que seus atos são mais elogiáveis do que repreensíveis, sem dúvida. Aos olhos de alguns, parece ter escolhido o "caminho solitário", "the lonely path", mas este me parece um julgamento superficial. De modo algum sinto que se trata de um "sociopata", de um cara que quer rejeitar completamente as relações humanas, mas sim de alguém que as deseja autênticas, com verdadeiro diálogo e partilha, livres de convencionalismos.

Sua longa jornada faz com que ele adquira muitos amigos e amigas, entre os andarilhos, os ciganos, os hippies, a gente simples do interior, desde um casal de malucões nudistas até um velho militar viúvo e resignado. Prova do valor que ele confere à amizade e à partilha e que torna ridícula qualquer suposição de que ele pudesse ser um "egotista solipsista" ou algo assim. Sem falar que o encontro com Alex Supertramp é, para todos eles, uma rica experiência de vida, que os enche de energia para levantar a bunda da cadeira, e não faltam demonstrações de afeto pelo SuperMendigo que ruma para o Alasca. Só lembrar que ele ganha vários úteis presentes de seus transitórios convivas: uma touca, um par de botas, utensílios de sobrevivência na selva...


Afinal de contas, não estamos diante de um misantropo, que rejeita em massa a raça humana, mas sim de um jovem sensível, com alma de poeta e coração aventureiro, que rompe com os aspectos mais perversos e cruéis da sociedade onde vive em nome de outros valores: o auto-conhecimento, a contemplação da natureza, o conforto de estranhos, o passeio dionisíaco por horizontes cambiantes e correntezas sempre moventes...

Afinal de contas, no ápice de seu percurso, ele adquire plena consciência de que o isolamento não é a solução e que só o amor salva. "Happiness is only real when shared", percebe em epifania, e confesso que considero esta uma das frases mais lindas com que já me deparei nesta vida. A solidão pode trazer sim seus ricos frutos, sem dúvida, e o sorriso radiante que se estampa na face de Chris, na última de suas fotografias, pouco tempo antes de sua morte, é sinal de uma plenitude e de uma sabedoria que raramente um "civilizado" morando numa metrópole-formigueiro é capaz de atingir. Mas a solidão não basta: Zaratustra, enfim, desce da montanha; e um verdadeiro Buda sempre retorna ao convívio dos homens, tornando-se um Bodhissatva. É a epifania, também muito comovente, da Céline de Julie Delpy em "Antes do Amanhecer", na poética cena (que sempre me deixa lacrimejando...), em que ela diz a Jesse: "se existe alguma mágica neste mundo, não está em mim nem em você, mas neste espaço entre nós". Pois se existe neste mundo alguma felicidade real, ela só pode estar na partilha...

Meu amor intenso por este filme está na certeza de que Chris não jornadeou em vão e que seu destino se encontra, no livro de Krakauer, no filme de Sean Penn e nos milhões que já o leram e o assistiram, felizmente partilhado!


quinta-feira, 29 de abril de 2010

:: Revolutionary Road ::


>> REVOLUTIONARY ROAD << de Sam Mendes

>>> A casinha branca, com gramado amplo, sem cercas ou arame farpado, numa rua arborizada onde cantam os passarinhos, em uma pacata e ajeitadinha vizinhança feliz nos ídilicos anos 50. É aí que o jovem casal Wheeler, dois bonitinhos e higiênicos "americanos médios", se instalam para tentar reproduzir o doce teatro do american way of life como nos contam dele nas propagandas de margarina. Mas o fel derruba-se no caldeirão e a receita azeda. Nuvens negras virão nublar esse sonho solar. Gotas de sangue virão sujar esse quadro radioso onde a maravilha é inteirinha de fachada e há muita sujeita debaixo dos tapetes. Sejam bem-vindos à Beleza Americana II, mais um demolidor conto expondo as entranhas apodrecidas da Cultura Americana!

Para fugir desta, alguns explodem seus próprios apartamentos e organizam gangues urbanas de terrorismo lírico, tentando trazer abaixo o império do capital e do consumismo, ainda que sob o disfarce de um certo Tyler Durden ou de um mascarado que traz um V de Vingança tatuado em sua alma furiosa. Outros, menos destrutivos, resolvem simplesmente se mandar para os ermos, como fazem os anacoretas hindus, e procuram Na Natureza Selvagem a intensidade vivida e o espetáculo dos sentidos que a vidinha capitalista nos nega. Alguns enlouquecem de tanta raiva mau-canalizada e saem atirando por aí, seja o yuppie playboy tornado serial killer de Psicopata Americano ou os garotos que se levantam com suas metralhadoras para dizimar Columbine em Elefante. Alguns até fazem planos mirabolantes para assassinar o presidente --- com o Sam Picke de Sean Penn em The Assassination Of Richard Nixon. São diferentes planos de fuga que realizam os presidiários da mesma penitenciária cultural. Conseguirão os novos “heróis” de Sam Mendes sucesso onde tantos outros fracassaram?


O casal Wheeler (mais ela do que ele, porém) quer fugir do convencional, do percurso traçado pela cultura, dos caminhos que todos seguem, da ordeira andança em fila indiana – mas terão coragem de dar o salto e abandonar a "velha vida"? Ele, Frank Wheeler (DiCaprio), 30 anos, suporta como pode um trampo que odeia, junto a colegas que o chateiam, trepando na clandestinidade com uma mocinha por quem não sente nada, só para descargo do tédio. A câmera de Mendes começa a registrar a vida deste casal num momento já desolador, em que o marido está traindo a esposa à companhia de quem volta, dia a dia, sem nem sinal do tesão dos tempos primevos. E ele sente-se horrível por estar quase encalhando num destino que não queria para si: igual ao de seu pai, que trabalhara na Knox por 20 anos, estagnado como um navio ancorado em mares rasos.

Já ela, April Wheller (Kate Winslet, numa das mais comoventes atuações da sua brilhante carreira), desde sempre teve um coração com asas, afeito a fantasias, despregado do chão árido do realismo. Quando ela e o marido se conheceram, numa tediosa festa, ela revelou seu sonho: ser atriz. Fracassa feio. Ela é desse tipo de criatura para quem sonhar é um martírio, já que a realidade jamais colabora. É dela que parte a fantasia que norteia grande parte do caminhar do par pela Revolutionary Road: abandonar tudo, vender casa e carro, pegar carona no avião do Imprevisível e se mandar para a Europa, para a romântica e magnética Paris, onde – é o que imagina! - a Vida de Fato Começaria...

Prova de que esta Terra de Oportunidades não é assim tão extasiante: há americanos que, sufocados debaixo da pilha de bugigangas-para-consumo disponíveis nos shoppings o império, sonham com outros ares, sem nem suspeitarem que ali, também, na verdadeira França que se contrapõe à mítica França que idealizam, existe também o tédio e a sensaboria – que fizeram Baudelaire escrever tanto e tanto contra o “spleen” e que arrancaram de Rimbaud o gemido de insatisfação: “A verdadeira vida está ausente...”.


Para os Wheeler também: a verdadeira vida está ausente. A relação do casal é uma tensa gangorra entre uma vontade de lançar-se a uma aventura ímpar, que fizesse o sangue correr mais quente nas veias, e uma quase irresistível e abominável sedução pela resignação ao morno e ao sem sal. Vendo-os daquele jeito, inebriados com planos, tomando coragem para a decolagem, cheios de sonhos do que viria ser a Nova Vida que namoravam à distância, podemos até ver neles grandes heróis em gestação. Há um heroísmo no coração desse casal que vai crescendo, tomando vulto, pedindo espaço – e alguns de nós, deste lado da tela, como testemunhas oculares desta luta, podemos até vibrar na torcida, na torcida, na torcida! Pois sim: seria lindo essa ousada ruptura com um destino mortão, esse salto no escuro de um futuro novo, essa tão louca e tão sábia decisão de mudar de modo radical o que ia mal. A coragem de tentar já seria um belo heroísmo num mundo onde os loucos são os mais lúcidos e a normalidade é a pior das patologias. Mas não; este não é um casal de heróis consumados, mas sim de heróis caídos, perdidos, fracassados. O fracasso deles espelhando o nosso. A tentativa de revolução deles instigando a nossa vontade por inventar a nossa.

Quando se consuma o fracasso de tantos lindos sonhos, a própria rua onde moram – a Estrada da Revolução – passa a parecer uma imensa zombaria que os demônios urbanos bolaram com escárnio. Não seria muito diferente se os dois fossem paraplégicos morando na Rua dos Maratonistas ou surdos vivendo na Cidade da Música. Pois, se Wittgenstein estava certo ao dizer que “revolucionário é quem consegue se auto-revolucionar”, os Wheeler fracassaram feio na missão. Disseram-se palavras duras demais para que o perdão seja possível. Enfiaram o punhal muito fundo no peito um do outro para que retirá-lo da carne não gerasse uma hemorragia letal. Abandonaram de modo muito profundo a doçura e a civilidade para que a relação pudesse voltar a se açucarar. E perderam-se, desnorteados, esmagando suas cabeças e corações um contra o outro, continuando ambos presos dentro da cela cultural de onde tentaram se evadir...


Há muito tempo não víamos projetada na tela uma disputa matrimonial tão cruel. O casal Wheeler traz à lembrança todos os horrendos combates entre Liz Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, aquela imensa orgia da catarse de ressentimentos reprimidos com a qual Mike Nichols deixou marcado seu nome na história do cinema logo em seu longa de estréia. Um homem e uma mulher que tacam pedras e bosta na cara um do outro, por tempo integral, é de fato um espetáculo indigesto de se ver, mas ali parecia que um repouso, no fim da tempestade, era possível: não haveriam os dois de se aquietarem como dois exércitos cansados, um rendido ao outro, assim que a munição acabasse ou o campo de batalha estivesse já muito infestado de cadáveres?

Em Revolutionary Road, depois dos histéricos disparos das metralhadoras giratórias, uma chance de conserto do quebrado até se rascunha. Mas... é um rascunho que se amassa e lança-se ao lixo, besuntado de sangue, como um plano que sabe-se que não funcionaria. Depois da briga mais feia que o casal tem, tendo dito um para o outro os horrores mais imperdoáveis, nasce o dia seguinte em aparente calmaria. Ela, que no dia anterior era emanação pura de ódio, de desamor, de sadismo (“fuck whoever you like!”, diz April ao marido, e que bordoada!), aparece transformada numa doce, atenciosa e suave dona-de-casa, que prepara os ovos para o maridinho, o enche de mimos no breakfast e deseja-lhe um bom dia de trabalho, my dear. Ele, que tinha amaldiçoado o ventre da mãe de seus filhos, fazendo uma das mais horrendas ofensas que se pode fazer a uma mulher, descobre-se surpreso com a súbita paz que se faz após a catástrofe da véspera. E embarca na viagem dela, fazendo o papel do comportado maridinho trabalhador que está contentíssimo com uma vida altamente convencional. Nem percebe a farsa. Pois aquilo é ela armando para ele um teste definitivo – e ele não passa.

No fim das contas, a matemática da vida oferece um resultado totalmente negativo às complexas aritméticas que estes dois procuraram equacionar. Os dois revolucionários falhados, mártires de suas próprias covardias e crueldades, ficam assombrando como espectros esta melancólica Revolutionary Road - a rua das ilusões perdidas, das fantasias desfeitas e dos machucados sem remissão - onde pinga, gota a gota, do interior do útero de uma mãe que está ferida demais para continuar vivendo, a rubra e trágica água que mancha o prendado carpete do Sonho Americano...

DOWNLOAD - TORRENT: THE PIRATE BAY

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SAM MENDES + KATE WINSLET

segunda-feira, 12 de abril de 2010

:: Os EUA contra John Lennon ::


:: OS EUA CONTRA JOHN LENNON ::
[de David Leaf e John Scheinfield, EUA, 2006, 1h36min, doc.]


"De todos os documentários já feitos sobre John Lennon,
este é o que ele amaria" (YOKO ONO)



Musicalmente, é duro decidir qual dos ex-Beatles merece a medalha de carreira-solo mais interessante. Foi Macca, que se dedicou às baladinhas poppy e às silly love songs, eventualmente prestando tributo ao rock clássico dos anos 50 e 60? Foi John, que se transformou numa máquina de ativismo político, parindo canções angustiadas e amargas, hinos pacifistas, experimentos sonoros esquisitos? Ou foi George, que foi em busca do sentido da vida numa espiritualidade de inspiração oriental e viagens hare krishna, acabando por cometer pelo menos um clássico absoluto, o grande All Things Must Pass? (O Ringo, coitado, não conta...).

D
ifícil de julgar: que cada um escolha seu pet-beatle com as insondáveis razões do coração! Mas o que é inegável é que John Lennon, como “pessoa pública” e como “figura histórica”, foi o ex-Beatle que, após o fim da banda em 1970, causou mais estragos, levantou mais polêmica e mais marcou época em comparação com o resto dos Fab-Four, que parecem ter preferido uma vida mais discreta e menos chamativa.

O excitante, dinâmico e classudo filme inglês Os EUA contra John Lennon, um dos melhores documentários de rock que já assisti, é um detalhado retrato das atividades de John Lennon nos anos que vão dos anos de Abbey Road e Let It Be, quando o cisne beatle começou a cantar suas últimas (e lindas) canções, até meados dos anos 70. Foram anos de "agitos" abundantes e muito controversos na vida de uma das maiores figuras da arte mundial.

E vocês sabem: John Lennon nunca teve medo das blasfêmias e das heresias e adorava posar de troublemaker. Só lembrar do famoso episódio em que comentou que os Beatles eram mais famosos e significavam mais para a juventude universal do que Jesus Cristo – episódio que despertou uma onda de indignação nos puristas e fanáticos cristãos, que chegaram a organizar boicotes e fogueiras públicas dos discos do quarteto de Liverpool, degolando simbolicamente, numa espécie de Inquisição no século 20, o ousado ateuzinho desrespeitoso...

Ele não se deixou calar. Já num dos primeiros álbuns-solo, voltou a fazer capetices para atazanar os crentes, como em "God", em que redefine o conceito de "deus" num verso memorável: "God is a concept by which we measure our pain".


O filme, co-dirigido por David Leaf e John Scheinfield, descreve principalmente o progressivo engajamento de John & Oko contra a Guerra do Vietnã e a vasta gama de atividades políticas às quais o casal se dedicou no começo dos anos 70. Foram 15 anos de dura confecção para que finalmente, em 2006, o filme finalmente fosse lançado, oferecendo a todo beatlemaníaco um saboroso documento histórico sobre o mais cínico, sarcástico e rebelde dos ex-Beatles.

Já esmiucei numa matéria antiga o modo como a amargura e o ressentimento tomaram conta da música e da poética de Lennon em seus primeiros álbuns-solo – que, à parte toda a melancolia e ira que os impregnam, são sim profundamente políticos. Do hino pacifista de “Imagine” ao feroz proto-punk de “Gimme Some Truth”, passando pelas músicas “grito de guerra” “Power To The People” e “Give Peace a Chance”, a arte de John Lennon, naqueles tempos, ficou impregnada por suas atividades na arena pública e por suas batalhas ideológicas.

Parece ter sido só depois de se libertar da banda que o cara pôde se tacar de cabeça no “militantismo”, acabando por se tornar uma espécie de “rebelde político” na América que adotou como casa nos anos 70. Sim, é verdade que certas músicas dos Beatles já prenunciavam que isso poderia acontecer, “Revolution”, claro, sendo a principal delas. Neste clássico da fase final dos Beatles, Lennon já conclamava a juventude a se erguer para um levante revolucionário, se bem que seguindo os moldes pacifistas gandhianos (“but if you talk about destruction you can count me out!”).

Mas a dedicação a causas políticas só atinge seu ápice na carreira-solo de Lennon. E talvez seja tudo culpa da influência da Yoko, que sempre entendeu a arte como um instrumento para provocar, chocar e retirar as pessoas da passividade e da inércia. Tanto que ela, sempre controversa como artista plástica (e rechaçada por muitos fãs como a "elementa" alien que fez os Beatles se separem...), dizia que se sentiria fracassada como artista se metade dos frequentadores de suas “mostras” não fugissem correndo de suas exposições, horrorizados...

Mas o fato é que John & Yoko, naqueles turbulentos anos marcados pela Guerra do Vietnã e pela efervescência máxima do ideário hippie, caíram de cabeça na luta política e ideológica – usando a arte como ferramenta de protesto e acreditando convictamente que iriam ter sucesso, usando a imensa influência social que tinham junto à juventude, para tacar pedras nas engrenagens da máquina de guerra americana.


Participaram de shows-protesto e eventos beneficientes - o mais histórico deles sendo aquele que reclamava a libertação de John Sinclair, que estava na prisão por posse de dois baseados, e que foi libertado no dia seguinte à participação de Lennon no concerto em prol de sua libertação --- prova incontestável do poder político do ex-Beatle.

Diziam para todo mundo que o esquema era fazer amor, e não a guerra, tornando o slogan make love, not war uma espécie de símbolo supremo da ideologia juvenil da época. Criaram um monte de “happenings” e de protestos, muitas vezes bancando tudo do próprio bolso, sem nenhum patrocínio, como naquela ocasião emz que espalharam por uma dúzia de metrópoles mundiais os famosos cartazes e outdoors que tinham em letras garrafais os ditos WAR IS OVER, seguidos por um pequeno adendo entre parênteses: (IF YOU WANT IT).

E, claro, partiram PRO PAU contra o governo Nixon, se juntando com ativistas políticos de muita penetração, inclusive com o povo do Black Panthers, até que o nome de John Lennon fosse inscrito na lista negra do governo americano como um perigo público que precisava ser detido a qualquer preço.
É delicioso de ver o governo americano tentando – e deliciosamente em vão! - expulsar aquele inglesinho enxerido do país, usando como pretexto para o mandato de exílio qualquer bobagem que Lennon tinha em sua ficha policial.

Lennon, que tinha caído apaixonado por Nova York e não tinha a mínima vontade de abandonar a América, onde tinha feito tantos amigos e onde estava engajado em uma pá de movimentos de luta social, permaneceu firme e forte lutando nos tribunais por seu direito de permanecer nos Estados Unidos – e permanecer como um voz dissidente e rebelde, que ajudava a destoar o coro dos contentes e chamar para que se levantasse a voz dos rebeldes...

Maior exemplo disso, claro, é o famosíssimo refrão que ele criou quase sob medida para servir como um hino de guerra das massas na luta contra o massacre no Vietnã: “all we are saying is give peace a chance!”
Uma cena chave mostra Lennon numa calorosa discussão com uma jornalista do New York Times sobre a eficácia das ações de ativismo político do ex-Beatle. A jornalista, descrente e cética, desce o cacete em Lennon, dizendo que ele “se tornou ridículo” e perguntando, com um certo sarcasmo: “você acha mesmo que ajudou alguma coisa na luta contra a Guerra do Vietnã?” E Lennon, com uma empolgante convicção no seu poder, argumenta que milhares e milhares de pessoas cantavam em uníssono nos protestos contra a Guerra o seu famoso refrão.

As imagens do filme, mostrando as multidões saindo às ruas para protestar contra os descalabros sangrentos do Império Americano no Quarto Mundo, emocionam demais e provam que Lennon é que tinha razão: sempre sinto calafrios de excitação vendo essas imagens de arquivo que mostram uma imensa onda de energia humana se congregando numa só voz...
A impressão que permanece no espectador depois do fim do documentário, depois de ver aquela multidão a entoar em coro o “give a peace chance” de Lennon, é a de que a coragem e a luta infatigável de John & Oko, com absoluta certeza, deram seus frutos – e nada foi em vão. Qualquer espectador de Os EUA contra John Lennon, se perguntado, na saída do filme, se John Lennon ajudou a parar a Guerra do Vietnã, sente-se imediatamente levado a responder, sem o mínimo sinal de dúvida, e com a maior empolgação, mais fã de Lennon do que nunca: “Mas claro que sim! E muito!”

alguns saborosos screenshots:
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Alinhar à esquerda
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TRAILER:


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EM CARTAZ EM SP NAS SEGUINTES SALAS:

Cine Bombril - Sala 2
14:00 | 16:00 | 20:00 exceto terça | 22:00 exceto terça

Espaço Unibanco Pompéia - Sala 10 (Vip)
16:00 | 20:00 | 22:00

Unibanco Arteplex Frei Caneca - Sala 5
14:00 | 16:00 | 18:00 | 22:00 | 20:00 exceto quinta

quarta-feira, 7 de abril de 2010

:: Lenny ::


:: LENNY ::
de Bob Fosse
(1974)

-- por Du Pitomba --

O lugar assegurado pelo cineasta Bob Fosse no pergaminho cinematográfico sempre deveu-se ao seu ardor em renovar as coreografias, e sobretudo também ao agraciado “Cabaret” (1972) - molde supremo da persona estelar de Liza Minelli. Justiça seja feita, se é para entornar seu talento, temos que escapar um pouco dos bailados frenéticos, indo parar nas coreografias das almas - e neste quesito, o pensamento fica acoplado na biografia do comediante judeu Leonard Alfred Bruce, “Lenny” (1974).

Se o principal instrumento de um piadista é sua voz, a de Lenny Bruce (Dustin Hoffman) é a palavra vulgar, ou o popular ‘palavrão’. Tanto que a presença policial nas suas apresentações eram dadas como certeiras. Os guardas de plantão já tinham programa quando o artista estava na ribalta. Sua vida íntima não foi menos escandalosa, casando-se com a stripper de codinome açucarado ‘Honey’ (Valerie Perrine).

Olhando sobre vários ângulos, podemos observar que tanto um especialista em cinema quanto um menos munido leigo terão sua atenção tomada pela presença cênica de Hoffman, e podemos ainda inferir como “Lenny” se faz típico exemplo de filme de personagem. Entretanto ressaltemos que este típico tem de ser encarado como vendagem e catalogação da obra e nunca como acabamento formal desta, visto que sua corporificação carrega ricas camadas e enfrentamentos.


Têm-se a idéia viciada de vincular estas atuações com o termo composição do personagem (ainda mais neste projeto). Retrato de vida real, o filme é engendrado por um ator que insere-se e ,por fim, contribui com os métodos stanislaviskanos filtrados pela Broadway. Sendo assim, o melhor termo talvez seja a antítese do verbete, decomposição do personagem. Hoffman vai se degradando fisicamente ao longo de sua saga regada à sexo, drogas e holofotes; chega a criar a hipótese de Lenny detestar sua platéia. Os palavrões das piadas podem ser travestidos de insultos para quem o vê. O que vemos é um personagem suicida artisticamente, já que põe em xeque sua profissão e seu público.

O planejamento fotográfico de Bruce Surtees não deixa o protagonista em paz. Nas suas performances noturnas o preto e branco derramado nas casas de espetáculo deixa em evidência sua solitária figura. Na cena mais densa, Lenny obriga sua esposa a fazer sexo com outra mulher, ficando visível ao espectador somente a face dos envolvidos. Um verdadeiro jogo de máscaras que toma emprestado foros bergmanianos. Pensando no crepúsculo dos pop stars da virada do 60 para 70, a única apresentação esperada de Lenny foi sua morte, o clássico fim de overdose. Somente nu no chão do banheiro ele foi previsível.

terça-feira, 6 de abril de 2010

:: Amadeus ::

"AMADEUS"
de Milos Forman
(1984)

- por Rodrigo Gomes Lobo -


“Somos todos medíocres!”
Salieri entre loucos bradando a mesquinhez humana após frustrada tentativa de suicídio.

Trata-se de um filme, é claro.
Um processo complexo de construir histórias.
Cheio de cortes, interpretações, desvios, criações imaginadas libertas de qualquer amarra mais fixa, mais fato.

Assim como qualquer outra História ou Ciência.
Assim como tudo o que nos forma.

(não é o caso de dizer:
“Tudo é sonho. Tudo é ilusão. A verdade nos espera em algum recanto, de preferência inacessível”.
Não é o caso de invadir palco, derrubar cenários, arrancar máscaras, acender luzes para espantar sombras.
Não estamos na platéia.
A existência de cadeiras numeradas é incerta.
Todos os bilhetes podem ser truque de cambista.
Os mortos talvez não se congreguem)

Salieri tem minha simpatia.
Ele é fraco, invejoso, temente a deus e ao rei.
Ele é só uma referência apagada.
Sua música foi esquecida.

Minha maior empatia:
Salieri tem consciência de seu destino nada heróico.
Sabe da grandeza de Mozart.
Sofre com a escolha feita pelos céus de concederem o milagre à uma criança sapeca e mimada.
Salieri enxerga o futuro sem otimismos.
Sem auto-promoção.
Salieri vislumbra os limites.
Resta nele algo de profeta, de sábio, de ponderação medrosa.

Vejo Salieri e Mozart constituídos, finalizados, no passado.
É um filme, bem sei.
As coisas não se passam dessa forma.
A eternidade inteira está sendo remexida a todo o instante.
O antigo sendo fabricado sem previsão de acabamento.
Mozart foi eleito para constar como pedra fundamental.
Salieri é menos que sombra.
O pleito é refeito com constância de eras.
O mandato é escrito na areia.

Não entendo de música clássica.
Mozart já me foi apresentado como gênio.
Salieri nunca me foi apresentado.
Me emociono com a música de Mozart algumas vezes.
Em outras durmo.

A universalidade de Mozart teria dificuldades de aceitação na ilha dos tímpanos tapados.

Amanhã o mundo ensurdece.
Ou aprende a reger o invisível.
Ouço Salieri bradar novamente em ecos rememoráveis:
“Somos todos medíocres!”
Simplesmente estoura em mim uma espécie de calma.
Quando a ventania implacável faz seu intervalo
e deixa de chacoalhar as folhas
mergulhando tudo em silêncio e espera.