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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

<<< Reds (de Warren Beatty) - por Amir Labaki >>>



Com Dez Dias Que Abalaram o Mundo, o jornalista americano John Reed registrou para a eternidade, no calor da hora, a crônica da Revolução Soviética de 1917. Com Reds (1981), Warren Beatty reconstituiu romanticamente sua saga, em pleno radicalismo de direita da era Reagan.

Reds talvez seja o maior dos épicos fílmicos de esquerda - ao menos, dos bancados por Hollywood. Cinematograficamente, nada fica a dever, em ritmo e páthos, aos melhores momentos de um David Lean (Lawrence da Arábia, Dr. Jivago). Politicamente, é menos ingênuo do que parece - registrando as vilanias internas ao processo, entre os comunistas russos e americanos, e o próprio desencando de Reed com os rumos da revolução que tanto propagandeou.

Beatty discute a um só tempo dois mitos: o da revolução libertadora de todos os homens e o do amor absoluto de um casal. Reservou-se o papel de John Reed e escalou corajosamente Diane Keaton para viver a ousada mas volúvel Louise Bryant. O resultado é um dos pares mais convincentes das telas.



Henry Miller
Há muitos outros personagens de antologia. Jack Nicholson e Maureen Staplenton injetam humanidade aos mitos Eugene O'Neill e Emma Goldman. O Zinoviev de Jersy Kozinsky (o algo esquecido e muito subestimado escritor polonês) é um acabado retrato de homem do partido.

Outro grande achado é a pontuação da narrativa ficcional por trechos de depoimentos de contemporâneos de Reed. Entre outros, lá estão um filho de Kerensky, o historiador Will Durant e os escritores Henry Miller, Rebecca West e Adela Rogers St. John, como que saídos dos diários de Edmund Wilson daquele período.

Beatty dá conta, assim, de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Reds é um filme de idéias, um épico histórico, um melodrama político - extremamente eficaz em todos esses registros, mesmo depois do furacão de 1989. Rodado às vésperas (em tempo histórico) da glasnost e da queda do Muro, é um belo testamento de nós que amávamos tanto a revolução.



AMIR LABAKI
(Coleção Ilha Deserta - Filmes, Ed. Publifolha, Pg 52-53.)

DOWNLOAD
(Bluray Rip, 720p, HD, 2.25 GB)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

<<< A Última Noite (The 25th Hour, de Spike Lee, 2002) >>>



To his Coy Mistress
by Andrew Marvell (1621-1678)

Had we but world enough, and time,
This coyness, lady, were no crime.
We would sit down and think which way
To walk, and pass our long love's day;
Thou by the Indian Ganges' side
Shouldst rubies find; I by the tide
Of Humber would complain. I would
Love you ten years before the Flood;
And you should, if you please, refuse
Till the conversion of the Jews.
My vegetable love should grow
Vaster than empires, and more slow.
An hundred years should go to praise
Thine eyes, and on thy forehead gaze;
Two hundred to adore each breast,
But thirty thousand to the rest;
An age at least to every part,
And the last age should show your heart.
For, lady, you deserve this state,
Nor would I love at lower rate.

But at my back I always hear
Time's winged chariot hurrying near;
And yonder all before us lie
Deserts of vast eternity.
Thy beauty shall no more be found,
Nor, in thy marble vault, shall sound
My echoing song; then worms shall try
That long preserv'd virginity,
And your quaint honour turn to dust,
And into ashes all my lust.
The grave's a fine and private place,
But none I think do there embrace.

Now therefore, while the youthful hue
Sits on thy skin like morning dew,
And while thy willing soul transpires
At every pore with instant fires,
Now let us sport us while we may;
And now, like am'rous birds of prey,
Rather at once our time devour,
Than languish in his slow-chapp'd power.
Let us roll all our strength, and all
Our sweetness, up into one ball;
And tear our pleasures with rough strife
Thorough the iron gates of life.
Thus, though we cannot make our sun
Stand still, yet we will make him run.

domingo, 28 de agosto de 2011

<<< A Árvore da Vida (de Terrence Malick, 2011) [2nd try!] >>>



(PROLEGÔMENO: Ontem, 27/08/2011, très fumée, sensibilidade amplificada pelo THC, fui conferir este filme indizivelmente belo. E que ecoa... ecoa em nós por muito tempo depois dos créditos finais. Saindo do cinema em estado de graça, dando muita razão à Cannes por tê-lo laureado com a Palma de Ouro, bati com a cara nesta bagaça tão desagradável chamada São Paulo. Dois tweets, quando cheguei em casa:


 Eduardo Carli 

 Eduardo Carli 


Lembrei-me do Joseph Campbell, em uma das entrevistas d'O Poder do Mito, quando ele diz que a experiência sublime vivenciável num templo de meditação é completamente destroçada quando você vai encarar uma grande metrópole capitalista. A Árvore da Vida é menos um filme que um templo de meditação. E transpor para palavras esta vivência é algo que sinto, de início, condenado a um certo fracasso. Ainda assim, há que se tentar, mesmo o impossível. Eis, pois, alguns rascunhos preliminares sobre um filme que transcende em muito as míseras palavras que possamos rabiscar sobre ele.)

Uma oração é sempre um monólogo. Para que se tornasse diálogo, seria preciso que Deus existisse. Um dos males das demandas emocionais feitas a um interlocutor imaginário é esta: amigos imaginários não retornam ligações. "Onde é que você estava?", pergunta-se a mãe enlutada para os céus silentes, querendo saber o porquê da morte do filho de 19 anos. Mais que isso: quer saber como podem coexistir na mesma realidade estes dois fenômenos tão contraditórios, a morte absurda dos que amamos e uma suposta divindade benigna que deveria fazer o serviço de velar pela felicidade de suas criaturas prediletas. É o "por que me abandonastes?" de Cristo em sua cruz revisitado, vezes e vezes sem conta. E a sensação de abandono não cessará até que cessemos de pedir do Cosmos que nos seja um Pai: não há velhinho de barbas brancas e super-poderes redentores, morando nas nuvens e cuidando de seus filhinhos; o que há no céu são supernovas explodindo, matéria sendo assada na fornalha das estrelas, luz viajando pelos espaços silentes... uma imensidão que não fala.
Malick construiu boa parte de seu filme com retalhos de orações. Mãe e filho, cada um a seu jeito, conversam com o "Altíssimo". Mas o que se escancara nestes discursos são desejos e angústias humanos, sem que haja jamais nenhuma intervenção divina. O Feuerbach, filósofo alemão lido e criticado por Marx, escreveu em A Essência do Cristianismo aquele que considero um dos melhores livros sobre religião já escritos. Ali, a prece é considerada como uma confissão humana de desejos íntimos, um meio de acesso à verdade das ânsias humanas mais recônditas. Ao sentirem-se em estado de radical dependência e temor em relação a poderes superiores, que podem esmagar-nos impiedosamente, as pessoas inclinam-se à fé e pedem clemência aos céus. Fazendo-o, revelam mais sobre a condição humana do que sobre os atributos divinos. Feuerbach: uma oração é um discurso que deve ser interpretado com a chave da antropologia, e não da teologia.

"Please, God, kill him. Make him die." Assim o filho faz sua prece, pedindo ao Pai do Céu para ver-se livre de seu pai na terra. É o Complexo de Édipo, este item já tão massacrado e criticado da psicanálise freudiana, recebendo um outro tratamento. Malick não é simplista: ele põe em cena, de fato, uma criança que, chegando à puberdade, passa a experimentar culposos desejos em relação à sua mãe (lembrem-se daquela cena em que entra de fininho no quarto da mãe para acariciar camisolas e roupas íntimas, para depois, num transe, ir lançar às águas de um riacho o objeto que lhe despertou desejos tão feios...). O pai, militar durão que aposta numa educação autoritária e não tem muito jeito para ternurices e agrados físicos, soa como um ditador do lar que impede a casa de ser um ninho da alegria, da espontaneidade criativa e da partilha de amor (tão odiada é esta figura de autoridade que, a certo momento, o filho, vendo o pai deitado debaixo do carro, pensa em esmagá-lo debaixo do peso; até olha para os lados checando se haveriam testemunhas; acaba por desistir e por pedir em oração que seu desejo assassino se realize).

Malick soube fazer uma espécie de "drama doméstico" ímpar: ao invés de fazê-lo se desenrolar no microcosmo familiar, como em Mike Leigh ou John Cassavetes, ou de ambientá-lo na moldura de uma situação social mais ampla, feito Spike Lee, nos dá a sensação de que estamos observando relações humanas cujo palco é nada menos que o Universo. Jamais Malick tinha feito filme tão ambicioso e grandioso, onde tudo é amplificado e magnificado até atingir, por assim dizer, uma "dimensão cósmica". E me parece até que  A Árvore da Vida, apesar de ser um filme aparentemente a-político, possui uma janela aberta para a Utopia. 

Através da idealização da figura feminina, tornada eficaz pela linda interpretação e presença da belíssima Jessica Chastain, Malick sugere (sem pregação e com tranquilidade) que é preciso "femininizar" nossa cultura, pôr mais yang no nosso yin, mais sensorialidade em nosso racionalismo, mais emoção na nossa razão instrumental, mais doçura em nossa testosterona e mais amor em nossas guerras cotidianas. Os senhores da guerra, os que ordenam bombardeios, os que lutam nos campos de batalha, são sempre homens. A figura paterna dominadora, que manda que os filhos se calem perante à força do chefe e que pune o mínimo rascunho de rebeldia, tem que cair. Um certo heroísmo serve de aura à rebeldia do filho que taca pedras nos vidros dos vizinhos, perambula pela cidade sem freios e confronta a autoridade paterna que a mãe é demasiado dócil para peitar. Mas esta não é uma rebeldia semelhante àquela de Martin Sheen em Badlands - Terra de Ninguém, primeiro filme de Malick, onde os protagonistas saem por aí, em transe psicótico, matando gente à esmo. Aqui a rebeldia é mais sábia: é a expressão de uma vida cuja essência é uma vontade de expansão e de expressão, um conatus (Spinoza) ou uma vontade de Poder (Nietzsche) que não pode ser barrada e obstacularizada sem que surja conflito, cisão, porrada. 

O personagem de Sean Penn, entristecido em meio ao mundo artificial criado pelos humanos, melancólico mesmo diante dos mais imponentes arranha-céus, lamenta ver uma humanidade dominada pela ganância e que perdeu o contato com a Natureza que a circunda. E a palavra religião, é sempre bom lembrar, vem do latim religare: serve como religação do Homem com aquilo que o transcende. Por isso, num certo sentido, o filme de Malick trabalha tentando sanar aquela "crisis of perception" [crise da percepção] de que nos fala Ponto de Mutação (Capra). Tão preocupados estamos em acumular capital que nos esquecemos de contemplar o cosmos. Tão viciados estamos em acreditar nas lorotas das religiões organizadas que não nos entregamos mais à experiência imediata de conexão com o Universo. Tão corrompidos por uma cultura de competitividade e dominação que nem suspeitamos que a fragilidade admitida pode ser fonte de laços de amizade e que cooperar é bem mais inteligente do que saltarmos uns sobre as carótidas dos outros. 

A Árvore da Vida está mais pra ayahuasca que pra hóstia; mais para Gaia que para Javé; mais para hinduísta que para cristão. É um manifesto poético-religioso dos mais lindos que o cinema já cometeu, algo digno de Tarkovsky, Dreyer ou Von Trier fase-Ondas do Destino. É um filme cujo desejo supremo parece ser espalhar encantamento sobre tudo aquilo que nós, esta trupe de cegos e loucos que vagam vendados pelo planeta, negligenciamos. Tal como um girassol tem tropismo pelo Sol, devemos nós ter um tropismo pelo cosmo: de consciências boquiabertas diante da imensidão de tudo, devemos quedar silentes, certos de que a palavra Deus é uma completa miséria quando se trata de descrever verbalmente as verdades complexíssimas e múltiplas da Matéria. 

sábado, 27 de agosto de 2011

<<< A Árvore da Vida (de Terence Malick, 2011) >>>

Gustave Klimt (1862-1918)

A maior polêmica sobre a Árvore da Vida, me parece, é esta: seria ela um legítimo fruto da terra, para usar a expressão de André Gide, ou sua semente teria sido plantada por um jardineiro celeste? Nós, animais e plantas, temos uma raiz puramente terrestre, ou estamos de algum modo enraizados no divino? Somos fruto de um acaso ou de um plano? Um acidente da matéria, tão insignificante quanto um buraco negro, ou criações de uma divindade inteligente, de um "divino relojoeiro"? E as folhas que caem ao outono... fazem-no sob a pressão da "pulsão de primavera" (como dizia o jovem Nietzsche, ébrio das beberagens de Dionísio...), ou seria pois o inverno há de ter, afinal de contas, a última palavra?...

O filme de Terence Malick possui uma qualidade rara não só no cinema, mas nas artes em geral: a capacidade de refletir sobre as mais extremas das questões humanas, os maiores dilemas da nossa condição terráquea, sem jamais cair no dogmatismo, no fanatismo ou na convicção excessiva. É um filme que mantêm sempre uma imensa janela aberta para o Mistério. Uma brisa sopra, suave e constante, pelas frestas desta obra tão doce e tão sábia.

Mesmo nos momentos em que flerta com um certo esoterismo new age ou uma certa retórica de livro de auto-ajuda, a obra não soa jamais como misticismo barato. Mesmo quando abusa de efeitos especiais e chapa nossos olhos com imagens deslumbrantes, não cai jamais naquele espetacularismo exorbitante que, ao menos para o meu paladar, estragou o Fonte da Vida de Darren Aronofsky. Mesmo quando o filme entra em "clima de missa", outra coisa que usualmente me dá um certo asco, Mallick prossegue dando-nos amplo material para reflexão e deslumbramento. Eis um filme muito inteligente e sensível que se debruça sobre os mais abissais dos mistérios ditos "religiosos". Desde o Dúvida, de John Patrick Shanley, que o cinema não se aventurava com tamanha ventura por estes picos e abismos da metafísica.


Este poema visual de Malick interessa-se essencialmente, me parece, pela sacralização do cotidiano. Este filme não nos fala de um Deus transcendente e distante, que viveria como que remoto e separado da "Criação". O divino, que as principais doutrinas e mitologias monoteístas costumam "exilar" da Terra, varrendo-o para uma "outra dimensão", a partir da qual Ele teria criado algo exterior a si, é aqui radicalmente re-interpretado numa outra chave: uma chave imanentista, panteísta, cosmológica, que se assemelha mais à visão-de-mundo de Spinoza do que aquelas do cristianismo, do judaísmo ou do islamismo. O "misticismo" de Mallick assemelha-se àquele do poeta William Blake, que nos convidava a enxergar o Universo num grão de areia:

To see a world in a grain of sand, 
And a heaven in a wild flower, 
Hold infinity in the palm of your hand,
And eternity in an hour. 
(William Blake)


As fronteiras entre Criador e criaturas são derrubadas a golpes de poesia pela ousada câmera de Mallick até que estas "duas" entidades supostamente diferentes se misturem numa única sopa cósmica, cuja imensidão e infinita variedade o espectador esperto há de experenciar com deleite e estarrecimento. Nunca foi mais transparente para mim este insight hinduísta-budista-zen: o Uno é múltiplo! Ou: a multiplicidade, somada, forma Um. São coisas que não cabem na palavra. Que, quando tentamos descrever verbalmente, escorregamos na banana. São indizíveis, inefáveis, intraduzíveis, in-significáveis.

A fórmula do panteísmo spinozista, Deus = Natureza, parece cair como uma luva para a visão-de-mundo que anima A Árvore da Vida. Mas, não à toa, Spinoza em sua época foi excomungado pela Igreja, tratado como um herege, estigmatizado como persona non grata pelas autoridades eclesiásticas, já que seu panteísmo tanto se assemelhava a um ateísmo... Malick, apesar de sua serenidade, de sua sabedoria tranquila, de seu método de proceder mais por alusões e sugestões do que ditados e ditames, ainda assim corre o risco de ser considerado pelos de mente estreita um "herege", um deturpador do cristianismo...

A maior parte das doutrinas religiosas trabalha através de cisões imaginárias entre "dimensões da realidade": fantasia-se sobre um certo Paraíso, imaginado como um lugar purgado de todas as impurezas que maculam nossa existência terrestre, e um certo Inferno, onde todo o mal e todo o sofrimento estariam concentrados e onde os ímpios e infiéis seriam, no além-Túmulo, tostados como frangos-assados. O sonho (vão) do homem monoteísta é poder superar a ambiguidade e a ambivalência intrínsecas à vida - a coexistência, no mesmo plano, do amor e do ódio, da delícia e do sofrimento, da luz e do fogo, do Sol e das trevas. O sonho do homem que crê em um Deus transcendente é um dia ser "resgatado" desta "dimensão sub-lunar" onde se encontra, "alçado" a outro plano, aquele de uma beatitude perfeita, de uma felicidade sem mácula, de uma vida sem sofrimento...

Terence Mallick não referenda este sonho: ele talvez seja absolutamente vão. Ao invés desta ânsia por um Deus que nos é alheio e distante, ele nos convida a outra coisa: a amarmos tudo, todas as folhas e todos os raios de luz, todas as nuvens (mesmo as nubladas) e todos os corpos celestes (mesmo aqueles que, chocando-se contra planetas, provocam a extinção de espécies). Um clima de amor fati nietzschiano, temperado com uma certa sabedoria spinozista, parece-me emanar desta obra. Malick não escamoteia o conflito, o egoísmo, a morte, o sofrimento: crianças e jovens morrem, pais passam por terríveis lutos, Deus jamais responde nenhuma prece. Tudo isto é verdade. Mas também a brisa e o mar são reais, e as estrelas que brilham em aparente indiferença por nossos destinos, sem se incomodarem com nossas virtudes ou crimes. A imensidão parece contentar-se em existir. Ela, imensidão, nem precisa fantasiar-se com os adornos do sentido. É possível existir, não ter sentido e, ainda por cima, ser belo. E melhor: é possível amar aquilo cujo sentido se desconhece, ou que talvez nem o possua. Pois talvez o amor seja justamente aquilo que produz sentido; sem ele, há só fatos brutos, jogos de força, choques entre átomos, matéria boiando pelo espaço, energias relacionando-se umas com as outras sem nenhum télos. Talvez a bondade, no Universo, seja coisa pra ser inventada, e não algo que já existe pronto. O amor, há de se fazê-lo, nós mesmos, pois ninguém o fará por nós. Não há Reino fora este onde já estamos. Não há Eternidade alguma a não ser a do presente. Eterno presente em eterno fluxo. E é aqui-e-agora que nós, efêmeros mas "contemporâneos do eterno" (para usar a genial expressão de mestre Comte-Sponville), devemos inventar o amor. Caso contrário, não há sentido.


A Árvore da Vida é menos um filme sobre fé, e mais um filme sobre o amor. Aqueles que têm fé muitas vezes se matam, ou embarcam em Cruzadas homicidas, ou mandam para as fogueiras da Inquisição seus desafetos, ou lançam-se suicidamente contra prédios ou explodem-se em carros-bomba. Já aqueles que amam, muitas vezes, não tem fé alguma além da fé no amor mesmo. Não é Deus que é amor (Ele, o sempre silente, o que manda moscas pousarem sobre as feridas que queríamos curadas, Ele que não impede que crianças morram e que tiranos genocidem e que terremotos devastem e que Holocaustos de extermínio e de miséria ocorram; Ele que, para falar bem claro, NÃO EXISTE). Não: é o amor quem se torna deus, mas somente enquanto nós, frutos da terra, o nutrirmos. O cosmos inteiro pode ser objeto para este amor salvífico: e não um cosmos distante, "abstrato", mas este que nos toca a face quando venta, este que nos molha os cabelos quando chove, este que está debaixo de nossos pés quando pisamos na grama e acima de nossas cabeças enquanto boiam as nuvens e sobre nós chove a torrencial tempestade de fótons pelo Sol irradiada...

Ao cosmos, em sua completude, trata-se de dizer-sim, com jovial afirmação, com lucidez e honestidade; "fatalismo"? Talvez, mas não é o fatalismo dos resignados aos sofrimentos, o fatalismo dos cristãos que fazem cara feia enquanto carregam cruzes, o fatalismo destes kamizakes ou homens-bomba que fazem-se de "armas fatais" justificando-se com a lorota de que são arautos da "Justiça Divina"... Se há "fatalismo" em Malick, ele tem predicados muito próprios: é um fatalismo, ouso dizer, repleto de felicidade. Um fatalismo que é uma espécie de "aceitação plena da necessidade" que muito se assemelha a uma amplíssima aquiescência. O fatalismo de quem diz Sim ao destino, mesmo aquele que o esmaga.

A Árvore da Vida é uma obra-prima que diz o Sim mais amplo que pode ser dito. 

domingo, 14 de agosto de 2011

<<< Nostalgia For The Light (Patrício Guzmán, Chile, 2010) >>>


















O Deserto do Atacama, no Chile, é o melhor observatório de estrelas da Terra. Telescópios formidáveis estão ali instalados, perscrutando os céus. São janelas abertas para o cosmos. Buracos-de-fechadura por onde os terráqueos espiam os mistérios celestes.

Enquanto os astrônomos tentam responder aos insondáveis enigmas sobre as Origens do Universo - como e quando surgiram as estrelas, os planetas, as galáxias... - os arqueólogos debruçam-se sobre os desenhos sobre as pedras, ali incrustados mais de 1.000 anos atrás pelas tribos nômades pré-colombianas que ousavam atravessar aquela imensidão de secura.

Mas não são somente os astrônomos e os arqueólogos que possuem como palco de pesquisa e deslumbre o deserto do Atacama: ele é também essencial para os historiadores e sociólogos chilenos. Ali, no meio do nada, localizava-se um campo de concentração de presos políticos da ditadura militar de Pinochet.

Estima-se que cerca de 30.000 chilenos tenham sido torturados durante o truculento governo que tomou conta do país a partir do golpe de estado de 11 de Setembro de 1973, quando o governo de pendores socialistas de Salvador Allende foi derrubado na base da força bruta, com o devido auxílio dos EUA.

Até hoje viúvas enlutadas vagam pelo deserto a procura dos ossos e crânios dos seus parentes, assassinados pelos militares por serem opositores políticos. Mulheres traumatizadas, de olhos molhados, incapazes de esquecer da ausência dos que amaram, querendo vencer o poder do olvido e erguer um monumento em nome da memória.


Nostalgia Pela Luz, o brilhante documentário de Patrício Guzmán, consegue transitar por todas estas áreas do conhecimento humano - a astronomia, a arqueologia e a história - guiado pelo mistério das estrelas e da memória. Estes mistérios estão conectados: sempre que nossos cérebros formam uma imagem mental de uma estrela, sempre que nossos olhos entram em contato com a luz provinda de uma, estamos diante da paradoxal presença do passado.

Os 8 minutos que os raios do Sol demoram em sua jornada até a Terra, mesmo sendo velocípedes feito um Papa-léguas (300.000 mil quilômetros por segundo é uma velô de deixar qualquer Schumacher humilhado!), provam-nos algo fascinante: o que vemos no céu são emanações de distantes rincões do Universo que talvez não existam mais. Emanações não somente das lonjuras, mas das próprias entranhas do passado. Qualquer estrela que produziu aquela luzinha vaga-lumeante nos céus pode estar morta há muito tempo; mas não suas luminosas reverberações.

Está aí a conexão entre estes dois pesquisadores aparentemente tão diferentes, o astrônomo e o arqueólogo: ambos lidam com o passado e tentam interpretá-lo de modo a esclarecer o mistério das origens - seja da raça humana, seja do planeta, da galáxia e do universo que nos abriga.

O Gênese bíblico, para estes audazes perscrutadores do firmamento e da poeira terrestre, já foi descartado como a superstição anti-científica que é; o Big Bang é o verdadeiro mistério a decifrar. Carl Sagan, em um dos episódios mais acachapantes de Cosmos, sugere que não há nada neste planeta que não tenha sido gerado, centenas de milênios atrás, no útero das estrelas. Um dos entrevistados pelo documentário de Guzmán, seguindo na trilha saganiana, pede ao espectador que medite sobre o seguinte: de onde saiu o cálcio presente em seus ossos?


Ora, a resposta talvez seja esta: o cálcio que todos temos em nossos ossos é provindo das estrelas. "We're made of starstuff!", exclamava quase em epifania um sorridente Sagan, nos anos 1980. Pesquisas mais recentes parecem dar razão a ele. Cada vez parece mais absurdo conceber uma separação rígida entre nós e o universo - ele lá, nós aqui, e entre ambos algum abismo intransponível.

Não há esse abismo: há sim uma inegável conexão que nos conecta ao cosmos de modo irrecusável. A matéria que nos constitui é matéria cósmica, lançada pelos ares pela Grande Explosão primeva. Aquilo que somos, devemos às estrelas, sem às quais nunca teríamos surgido nem poderíamos sobreviver.

A imagem grandiosa de um Universo exuberante, repleto de energia, em eterno fluxo sem fim, emerge também deste filme. Uma moça chilena, que teve os pais assassinados pela ditadura Pinochet, conta às câmeras como encontrou na astronomia uma anestesia para suas feridas, um bálsamo para seu luto. Ela passou a enxergar esta traumática perda com um senso de seguir-avante, ao invés de render-se à depressão ou buscar o suicídio, contemplando a corrente cósmica em que a matéria é perenemente reciclável, não há nada eterno a não ser o moto-perpétuo e em que tudo precisa desfazer-se, mesmo as estrelas, para que o novo possa formar-se.


The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a third generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…” - CARL SAGAN





sábado, 13 de agosto de 2011

<<< José & Pilar >>>

Parábola de Abraão e Isaac recontada com a devida lucidez atéia e ironia cáustica pelo grande mestre Saramago: “…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” - JOSÉ SARAMAGO. Caim. Cia das Letras. Pg. 80-81.

JOSÉ E PILAR (documentário): "Um retrato intimista da relação entre o escritor português e prêmio Nobel de Literatura José Saramago e a jornalista espanhola Pilar Del Rio. Através do registro do dia-a-dia do autor em sua casa em Lanzarote e em viagens a trabalho pelo mundo, o documentário acompanha o processo de criação, produção e promoção do romance “A Viagem do Elefante”, do momento inicial da construção da história em 2006 até o lançamento do livro no Brasil em 2008. A dura viagem do elefante entre a corte de D. João III em Lisboa e a corte do arquiduque Maximiliano na Áustria irá refletir a própria jornada do autor durante o processo de criação deste livro. “José e Pilar” é como uma excelente homenagem a José Saramago, um dos mais amados e talentosos escritores da língua portuguesa, que faleceu aos oitenta e sete anos de idade."
DOWNLOAD (RMVB, 430 MB, via @almascorsárias)

<<< Dobradinhas (por Annie Leibovitz) >>>


i. christopher nolan e heath ledger
ii. gus van sant e sean penn
iii. penelope cruz e woody allen
iv. sam mendes e kate winslet
todas as fotos de annie leibovitz.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

<<< Melancholia (de Lars Von Trier, 2011) >>>

"The universe seems
neither benign nor hostile,
merely indifferent."


CARL SAGAN



Acho muito admirável o poder que possuem certos grandes artistas, tão raros e tão preciosos, de fazer-nos refletir em profundidade sobre os maiores dramas da condição humana através do impacto emocional que seus personagens e seus destinos nos causam. Pois uma coisa é meditar sobre a morte e o tempo, a finitude e o sentido, utilizando-se, à moda dos filósofos mais avoados, somente abstrações pálidas, conceitos generalizantes, palavras grandiloquentes... Outra coisa é assistir de camarote, através da janela indiscreta que um bom filme nos abre, atores de carne-e-osso, cujos corações pulsam diante das câmeras, encarnando todo o som e a fúria do estar-humano em meio ao que parece ser a imensíssima desumanidade cósmica. "Há inocentes que não escapam que lhes caia um raio na cabeça", diz a Cleópatra de William Shakespeare. Em Melancholia, Lars Von Trier levou mais longe este preceito trágico e, pegando carona num enredo de ficção científica, sugeriu que há planetas que não escapam de sofrer inimagináveis hecatombes que, em sua absurdidade impenetrável, lançam todas as conquistas humanas e todos os sentidos humanamente construídos no lixo. Enxergar, do presente, uma tal perspectiva de futuro... é ser sugado pelo buraco negro da melancolia.

Lars Von Trier, com este Melancholia, dedica-se a um outro tipo de radicalismo, diverso daquele que aprendemos a esperar do enfant terrible dinamarquês depois dele ter-nos feito testemunhar mutilações genitais (Anticristo), genocídios brutais (Dogville), surubas monumentais (Os Idiotas) e muitos outros extremismos. Sem violência gráfica ou táticas de choque, Von Trier, célebre adepto das mais extremas das radicalidades estéticas, fez em Melancholia um de seus filmes menos "invasivos" e apunhalantes, mas ainda assim consegue insidiosamente nos dar amplo material para preencher nossos pesadelos despertos. Afastando-se um pouco do cinema de pendores brechtianos de Dogville e Manderlay, deixa o corrosivo comentário político inundado de sarcamo provisoriamente em descanso e dedica-se a investigar males psíquicos que conheceu de perto: a depressão, a melancolia, o luto. 




"Life on Earth is evil."  Juízos tão radicais como este ("a vida na Terra é do Mal...") vêm acompanhados por outros, tão excessivos quanto, que a melancólica moçoila Justine (Kirsten Dunst) sustenta com idêntica convicção: estamos sozinhos no Universo e este não sentirá nossa falta quando a raça humana estiver extinta.  Idéias tipicamentes melancólicas, o que não prova que sejam mentirosas: e se a verdade for triste? Há algo de saramaguiano nesta desoladora perspectiva abraçada por Justine: "o Universo jamais vai se dar conta que Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia", diz às câmeras o Nobel de Literatura português em uma das cenas do doc José & Pilar, crônica de sua velhice, tingida esta, como foi boa parte de sua vida e obra, pelo fado e pelo blues...  Há algo também de camusiano nesta sensação de absurdidade, decorrente do anseio humano por sentido em meio a um cosmos que parece absolutamente indiferente a nossos propósitos e desejos, o que pode, se não conseguirmos dar o salto sugerido por Camus do absurdo até a revolta, atolar-nos no pântano da melancolia...

Justine, cujo matrimônio desastroso é descrito na primeira parte do filme, assiste a aproximação da catástrofe cósmica com uma espécie de fatalismo, como se estivesse certa de que toda (re)ação é inútil. Mais: certa de que a vida na Terra não meceria nenhum destino melhor do que a extinção. Aquele "hóspede sinistro" que, segundo Nietzsche, assombrava a Europa do século XIX, o niilismo, mostra-se vivíssimo no século XXI. E Lars Von Trier volta a colocá-lo em debate através de um filme que nos obriga a nos defrontar com a possibilidade do fim da espécie e do planeta que nos hospeda, e que através disto nos obriga a pensar no valor de tudo que é humano. Não são somente as civilizações que são mortais, como nos lembra Paul Valéry, mas o próprio astro sob o lombo do qual erguem-se todas as civilizações têm também seu prazo de validade.


Vendido como um "filme-catástrofe", Melancholia é bem diferente dos tradicionais arrasa-quarteirão na escola de Michael Bay: como disse Pablo Vilaça, é como se Armageddon tivesse sido filmado por Ingmar Bergman. Von Trier não manda pelos ares os prédios públicos em violentas explosões à la Guerra dos Mundos, nem reduz a Casa Branca a pó à la Independence Day: contra invasores alienígenas a humanidade tem sempre a esperança de uma guerra vitoriosa (e uma que glorifique, é claro, o aparelho bélico-militar com elefantíase que faz dos EUA a potência truculenta que é...).
Von Trier prefere deixar de lado os homenzinhos verdes armados de laser desembarcados de Marte e faz uma escolha bem mais adequada à sua investigação dramática dos males psíquicos vinculados à melancolia: um planeta em rota de colisão com nosso planeta, sem que haja absolutamente nada que possamos fazer para modificar o inelutável. Esta sensação de impotência tinge todo o filme. Uma luz sombria espraia-se sobre as maiores conquistas da tecnologia e da ciência, já que, por mais desenvolvidas que tenham se tornado, não chegaram a nos tornar capazes de comandar o movimento de nosso planeta e fazê-lo escapar de um choque bruto com outro corpo celeste. Não há leme que nos possibilite desviar o navio dos icebergs que vemos pela frente. Estamos submetidos à órbita solar de um modo tão imperativo que nossa única opção é a obediência.

Comparado com o costumeiro arrasa-quarteirão de verão onde a catástrofe é vendida aos consumidores como um amigável entretenimento, Melancholia é sim um sci-fi filosófico primoroso e um drama psicológico sensível; mas, comparado com obras-primas do passado de Tarkovsky ou Kubrick, o filme de Von Trier empalidece: Solaris e 2001 me parecem filmes melhores, dignos do status de clássico que Melancholia não merece. Mesmo a primeira parte do filme, que escancara a vida familiar repleta de mágoas e desavenças de aristocratas da alta sociedade, têm precursores mais poderosos, por exemplo, no Festa de Família, de Thomas Vinterberg, conterrâneo e ex-colaborar de Trier nos tempos do Dogma 95, pra não falar em Buñuel...

Von Trier não se interessa, em Melancholia, por ciência. Não gasta película tentando provar a verossimilhança da ocorrência. O que ele quer é focar sua atenção sobre as reações emocionais humanas diante da iminência da extinção. As duas irmãs, Justine e Claire, representam dois modos diferentes de se lidar com a situação: Claire, casada e com filho pequeno, é aquela que tem algo de precioso a perder e que, por esta razão, experimenta sensações de pânico e de aflição mais intensas em comparação com a irmã que, tão deprimida com o naufrágio de seu casamento e a insensatez das ocorrências cósmicas, has nothing left to lose.

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Pobre dino: não foi aceito
na Arca de Noé!
"Nature is a big series of un-imaginable catastrophes!", sustenta Zizek, tentando demolir a idéia demasiado otimista daqueles que, devotos da deusa Gaia, acreditam numa Natureza harmoniosa, balanceada e amigável que só sairia de seus trilhos por causa das insensatas intervenções humanas em seu seio edênico. Que uma catástrofe de tais proporções seja possível é o que a extinção dos dinossauros nos indica. Não só vivemos num cosmos onde merda acontece, mas mais que isso: de vez em quando acontece merda grandiosa, bem mais do que cocô de mamute lançado a um ventilador GG. Outra prova? O petróleo, fonte de energia predileta de nossa civilização de dias-contados, gerou-se a partir de uma desgraça monumental que teve que ocorrer neste planeta. Wikipedia: "É de aceitação para a maioria dos geólogos e geoquímicos, que ele [petróleo] se forme a partir de substâncias orgânicas procedentes da superfície terrestre (detritos orgânicos)... há inúmeras teorias sobre o surgimento do petróleo, porém a mais aceita é que ele surgiu através de restos orgânicos de animais e vegetais depositados no fundo de lagos e mares, sofrendo transformações químicas ao longo de milhões de anos". Que tipo de petróleo do futuro seria formado a partir dos detritos orgânicos de 7 bilhões de homo sapiens?

Zizek comenta, em sua entrevista ao documentário de Astra Taylor Examined Life, que nós seres humanos somos constantemente "tentados", em situações de catástrofe, a encontrar nela um sentido, uma explicação, uma justificativa, uma desculpa. A AIDS, por exemplo, seria punição divina recaindo sobre homossexuais e junkies; os terremotos no Haiti ou no Japão, prenúncios da volta de Cristo... Há algo de consolador nisto, sugere Zizek, pois com isso evitamos pensar que existem catástrofes causadas por forças naturais cegas e desapiedadas e nos agarramos à tese de que, afinal de contas, em última análise, há de haver um sentido, ainda que Deus escreva certo por linhas tortas e pareça ter uns cem milhões de parafusos a menos em sua cabecinha sofrente de demência senil...

Melancholia é um filme de um ateísmo implícito sem falhas. Em nenhum momento o espectador vê algum personagem rezando para os céus ou invocando a ajuda de um deus. Ninguém sugere uma justificativa para o fenômeno astronômico do tipo punição divina ou Somoda e Gomorra revisitada. Apesar de Justine sustentar que "a vida na Terra é má", jamais sugere que, em decorrência disso é que a catástrofe cósmica está ocorrendo, como para purgar o Universo de um câncer; sua idéia, tipicamente melancólica, consiste mais em retirar o valor daquilo que será destruído para que esta destruição não seja sentida como tão trágica assim... Lars Von Trier não cai na "tentação do sentido", para usar a expressão de Zizek, e não tira nem um grama das toneladas de ABSURDIDADE GRATUITA que chocam-se contra o planeta dos personagens. Diante de um evento tão calamitoso, seria no mínimo ridículo e obsceno sustentar o insustentável: que há um Deus preocupado com o humano. Esta escapatória fácil o filme não permite ao espectador e é isto que comunica um certo mal-estar que persiste bem depois dos créditos finais. A "cabaninha mágica" que Justine inventa para abrigar a criança, afinal de contas, é bem semelhante a uma religião: algo fabricado por humanos em momentos de angústia para minorar nossa sensação de impotência. Em última análise, porém, o cosmos passa por cima de nossas cabaninhas mágicas com perfeita impiedade.

Melancholia, planeta ímpio, não respeita os deuses que os humanos se inventam para neles abrigarem-se  como crianças em cabaninhas mágicas.

Albert Dürer (1471-1528), "Melancolia"