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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

<<< O Povo Contra Larry Flynt (Milos Forman, 1997) >>>


Liberdade de expressão, dizia George Orwell, é o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir. Voltaire demonstrou compreender isto muito bem quando disse, fidelíssimo ao espírito do Iluminismo: "Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo." Para ser algo além de uma piada ou uma fachada, a liberdade de expressão precisa valer tanto para nossos adversários quanto para nossos aliados, tanto para aquilo que nos fere os ouvidos quanto para aquilo que os acaricia... Pode a democracia existir sem ela, que possibilita a coexistência da diferença em sociedades complexas, irredutíveis a um pensamento único e que não mais se deixam governar pela força do dogma?

Larry Flynt, o polêmico pornógrafo criador da Hustler (uma Playboy mais obscena, desbocada e explícita), foi uma das personalidades americanas que levou mais ao extremo o direito constitucional conferido pela Primeira Emenda à Constituição dos EUA. E pagou alto preço por isso, tornando-se um mártir involuntário a demonstrar que as instituições americanas são bem mais fundamentalistas e intolerantes do que seu auto-elogio marketeiro nos faz supor. "Land of the free"? Só se for do free market, porque do resto...

Decerto que foi preciso uma imensa revolução de costumes, herdeira da pélvis de Elvis, do movimento hippie, do "é proibido proibir!" do Maio/68, de Whilhelm Reich e de Marcuse, dentre outras coisas, que tornou possível a enxurrada de "revistas adultas" que toma as bancas-de-jornais da década de 70 pra frente. O problema espinhento, que os movimentos feministas não deixariam de sublinhar, me parece ser o seguinte: se por um lado a "Revolução Sexual ocidental" gerou uma massiva libertação da sexualidade em relação a carolices e repressões quadradas, em contraste radical com o ferrenho ascetismo do mundo islâmico (que encerra até hoje suas mulheres detrás de pesadas burcas...), o Ocidente americanizado caiu no vício da comercialização barata do corpo feminino, coisificado, marquetificado, posto no moedor de carne... O próprio Flynt, em um momento de mea culpa, publicou uma clássica capa de Hustler, em Junho de 1978, em que dizia: "We will no longer hang women up like pieces of meat". Mas seu escrúpulo durou pouco, e o deleite pelos milhões com que a publicação recheava sua conta bancária prevaleceu...

O filme de Milos Forman é um ótimo retrato de uma vida punk: confrontadora, sacrílega, provocativa. Pois a vida de Flynt, como Forman a narra com seu talento habitual, foi altamente podreira: o pornógrafo passou tempo na cadeia, foi baleado por um desafeto, ficou tetraplégico, virou morfinômano, gastou milhões em fianças, enviuvou de uma suicida, entre outras desgraças. A presença de Courtney Love, encarnando visceralmente a esposa junkie e auto-destrutiva de Flynt, poucos anos após o suicídio de Kurt Cobain, só frisa ainda mais o caráter contra-cultural e escancaradamente transgressor desse casal para quem toda polêmica sempre foi pouca. Eles foram como Bonnie & Clyde da imprensa marrom.

Mas a obra de Forman, mais que uma mera cine-bio instigante de um personagem maldito, ao estilo do excelente Os Contos Proibidos do Marquês de Sade (de Philip Kaufamn), alça-se mais alto do que a mera descrição de um destino individual. É a crônica do intenso debate público que a figura de Flynt gerou em torno de questões como desrepressão da sexualidade, liberdade de imprensa e afronta a instituições religiosas estabelecidas.

É óbvio que é uma questão moral espinhosa decidir se, no caso da Hustler, a censura seria justificável. Uma democracia deve permitir que um magnata da imprensa, acusado por seus detratores de publicar revistas de um tremendo mau-gosto, fique milionário? Será que deve-se permitir que Larry Flynt utilize a Primeira Emenda como escudo para defender-se por estar faturando alto ao vender fotos de bucetas arrombadas e notícias falsas que cobrem de lama as autoridades religiosas adoradas pelas massas? A Hustler poderia sair impune ao criar uma matéria falsa onde diz-se que o pastor Jerry Falwell cometeu incesto com sua mãezinha depois de ficar bebaço de Campari?

O filme se vai, mas deixa impresso na memória do espectador o arco obsceno e herético que fez nos ares do zeitgeist este figuraça, Larry fuckin' Flynt. As perguntas que ele pôs à sociedade de seu tempo continuam tão dignas de serem postas hoje quanto eram então.

<<< this country is founded on the belief that unpopular speech is absolutely vital to the health of our nation... >>


O Povo Contra Larry Flynt
. De Milos Forman.

sábado, 4 de dezembro de 2010

:: The Straight Story (David Lynch, 1999) ::


“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (...) Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.”
MILAN KUNDERA, A Lentidão


História Real, como cansou-se de frisar, é um filme que destoa bastante do restante da filmografia de David Lynch: nenhuma bizarrice, aberração, perversão sexual, confusão psíquica, extravagância obscena ou vilão cafajeste têm lugar neste sereno e comovedor road movie caipira. Nenhuma ruptura brusca na linearidade tranquila aparece para complicar um enredo que flui adiante como um riacho num suave declive. Nenhuma tentativa de borrar os limites entre o onírico e o real, o objetivo e o subjetivo, a sanidade e a insânia. A obra parece representar um daqueles momentos no percurso criativo de um grande artista em que a vontade de inovar e surpreender sossega, suas ambições tornam-se mais modestas e os recursos de que lança mão, mais simples. Ornamentos e floreios são preteridos em prol da singeleza sem sinuosidades. É como quando Bob Dylan encontra seu remanso, após a chapada salada surrealista-beatnik-dadá de Highway 61/Blonde On Blonde, na mansidão de Nashville Skyline

O clima de pesadelo aflitivo e confuso que impregna um Cidade dos Sonhos ou A Estrada Perdida está completamente ausente desta crônica amena e benevolente da jornada de Alvin Straight pelo interior americano em seu cortadorzinho de grama. Algo nos belos olhos azuis e na barbicha branca de Richard Farnworth conquista de imediato qualquer espectador com uma capacidade mínima de empatia. Este é um personagem que ganha nosso afeto com uma facilidade espantosa. Que virtudes são estas, que emanam de sua expressão como uma aura angelical? Como pôr em palavras o que faz deste velhinho uma criaturinha tão amável quanto um vovô querido que ainda não tínhamos conhecido? Talvez a franqueza tranquila, a abertura espotânea, o espanto ingênuo no olhar, a delicadeza e a afabilidade nos modos, a facilidade na confiança... Eis um homem que jamais considerar qualquer ser humano como indigno de se tornar seu confidente.

Para Alvin Straight, um desconhecido é só um amigo que ele ainda não fez. E o filme de Lynch não tem poucas simples mas comovedoras provas de solidariedade e amizade entre pessoas que acabaram de se conhecer, mas que não demoram a se afeiçoar.

Sua viagem pelas estradas da América não deixa de ser também uma viagem pelos trilhos da memória. Ao acaso de seus encontros, ele faz confidências e rememora traumas (por exemplo: matou por acidente um aliado na II Guerra Mundial...), desvelando os motivos de sua extravagante epopéia: o desejo de fazer as pazes com um irmão com quem está brigado há uma década.

É uma viagem realizada com uma lentidão premeditada e escolhida: pois de que valeria viajar sem ter tempo para contemplar as estrelas ou assar salsichas à beira da fogueira? O que pode surpreender o espectador contemporâneo, especialmente se este vive em meio ao frenesi de uma metrópole e jamais conheceu a morosidade da roça ou do sertão, é o fato de Alvin parecer incapaz de entediar-se. A vagarosidade de seu veículo-tartaruga, que faria qualquer um de nós amaldiçoar a chatura da viagem, é algo que ele enxerga com benevolência: pode, assim, observar melhor a paisagem, conhecer gente pelo caminho, sentir na face a brisa suave... 

Este é o road movie do common folk, mais próximo de uma novela de John Steinbeck ou William Faulkner do que d'um exercício artaudiano de mergulho nos recantos mais obscuros da psique humana, aventura tão tipicamente lynchiana... But then again: The Straight Story é um Lynch bem atípico, e talvez por isto mesmo tenha um sabor tão especial... 

Não se trata tanto de uma afoita correria na direção de um parente adoentado em apuros, necessitado de auxílio. O que parece mover Alvin nesta estrada, mais que os 12 galões de gasolina que ele carrega em seu tosco trailer, é a vontade de pacificar um relacionamento humano gangrenado por uma longa e lenta ferida --- tão longa a ferida, talvez, quanto a estrada. É mais um ajuste de contas com seu próprio passado que este velho homem decide empreender ao sentir a morte roçar pelo irmão. A jornada é aquilo que se segue à tomada de consciência de que o fim se aproxima, que o falecimento do irmão é iminente e que logo será tarde demais para a reconciliação.

Há feridas que, se não cicatrizadas em seu devido tempo, irão sangrar até a morte. Alvin Straight viaja em busca da cicatrização, e carregando consigo a vontade de paz e de saúde, por mais tardia que se faça. Ele é um homem que aprendeu que diante de uma tumba que se abre, é difícil (e muito tolo...) manter-se aferrado a ressentimentos mofados e mágoas ancestrais. Alvin viaja com a bandeira da paz hasteada em seu coração. Alvin viaja na lentidão daquele que opera, conforme os quilômetros são transpostos, uma cirurgia nos tumores da memória. 


Quando ele atinge seu destino, Lynch é tão discreto e singelo quanto foi o filme todo. Não apela para a verbosidade de um longo diálogo, para o sentimentalismo de um banho de lágrimas ou para o comovimento fácil de um abraço amigo. Encerra sua obra com o simples reconhecimento, da parte do irmão, da beleza de um gesto. Gesto de quem preferiu o perdão à mágoa, a serenidade ao ressentimento, a fraternidade à cisão. Nunca um combalido cortador de grama, judiado depois de uma viagem matadêra, foi um símbolo tão comovente de uma intenção benévola de superação do ódio e consumação da reconciliação. 

E sobre eles, irmãos enfim reunidos, à sombra do fim, na água fresca do perdão, milhares de estrelas observam, silentes, os estranhos carroséis dos corações humanos...



RMVB - legendado em português - 350 MB

terça-feira, 30 de novembro de 2010

<<< You don't need no weatherman to know which way the wind blows... >>>


"Kill a gook for GOD."

esta não é uma cena de filme.
é um soldado americano no Vietnã
(e crente de ter Deus de seu lado.)




"you don't count the dead
when God's on your side."
(BOB DYLAN)


e deu no que deu:









"o horror, o horror!"


kurtz (marlon brando), 
ao fim de "apocalypse now"




(...)






e estas são algumas das faces 
daqueles que não ficaram quietos
e arregaçaram mangas
para barrar o horror
que marchava:






























--- the weather underground.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

<<< Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) >>>



por François Truffaut


Há duas espécies de diretores: os que levam o público em consideração ao conceber e posteriormente realizar seus filmes e aqueles que não se importam com isso. Para os primeiros, o cinema é a arte do espetáculo e para os segundos, uma aventura individual. Não se trata de preferir esses ou aqueles, é simplesmente assim. Para Hitchcok e Renoir, como para quase todos os diretores americanos, aliás, um filme só dá certo quando faz sucesso, ou seja, quando atinge o público no qual se pensou desde a escolha do tema até o término da realização. Enquanto Bresson, Tati, Rossellini e Nicholas Ray fazem filmes à sua maneira e depois solicitam ao público o favor de "jogar seu jogo", Renoir, Clouzot, Hitchcock e Hawks fazem seus filmes para o público, colocando-se incessantes questões a fim de assegurarem-se do interesse dos futuros espectadores.

Alfred Hitchcock, que é um homem extraordinariamente inteligente, habituou-se desde muito cedo, desde o início de sua carreira na Inglaterra, a considerar todos os aspectos da feitura dos filmes. Dedicou a vida inteira a fazer coincidir suas predileções com as do público, enfatizando o humor em seu período inglês e enfatizando o suspense no período americano. Essa dosagem de suspense e humor fez de Hitchcock um dos cineastas mais comerciais do mundo (a renda de seus filmes é geralmente quatro vezes superior ao custo) mas é sua enorme exigência em relação a si mesmo e à sua arte que fazem igualmente dele um grande diretor.

Não é resumindo o enredo de Janela Indiscreta que se pode revelar a total novidade do empreendimento, inenarrável em sua complexidade. Preso à cadeira devido a uma perna quebrada, o repórter fotográfico Jeffrie (James Stewart) observa, através da janela, o comportamento dos vizinhos. Um belo dia, convence-se de que um deles matou a esposa irascível, desagradável e doente. A investigação que realiza, embora imobilizado pelo gesso, é, em termos, o tema do filme. Seria necessário falar também de uma prestigiosa moça (Grace Kelly) que gostaria muito de casar-se com Jeffrie...

Sei que assim resumido o roteiro deve parecer mais astucioso que profundo e, no entanto, estou convencido de que este filme é um dos mais importantes dos 17 filmados por Hitchcock em Hollywood, um dos raros, pelo menos, que não tem falha alguma, nenhuma fraqueza, nenhuma concessão. Por exemplo: é evidente que tudo no filme gira em torno da idéia de casamento. Quando Grace Kelly esgueirar-se no apartamento do suposto criminoso, a prova que fora procurar é uma aliança; Grace Kelly a enfia no dedo estendido enquanto, do outro lado do pátio, James Stewart, de binóculos, acompanha seus movimentos. Mas no fim do filme nada indica que eles se casarão e, para além do pessimismo, Janela Indiscreta é um filme cruel. Stewart, com efeito, só assesta seus binóculos sobre os vizinhos em momentos de angústia, quando eles se encontram em posições ridículas ou mesmo detestáveis.

A construção do filme é nitidamente musical, com vários temas que se imbricam e se respondem perfeitamente - os do casamento, do suicídio, da perda e da morte - banhados por um erotismo refinadíssimo (a sonorização dos beijos é extremamente precisa e realista). A impassibilidade de Hitchcock, sua "objetividade", são apenas aparentes; é no tratamento do roteiro, na direção, na condução de atores, nos detalhes e, principalmente, num tom bastante insólito participando do realismo, da poesia, do humor macabro e da pura magia que se revela uma concepção de mundo que chega às raias da misantropia. 


Janela Indiscreta é o filme da indiscrição, da intimidade violada e surpreendida em seu aspecto mais ultrajante; o filme da felicidade impossível, o filme da roupa suja lavada fora de casa, o filme da solidão moral, uma extraordinária sinfonia da rotina e dos sonhos desfeitos.

Falou-se muitas vezes em sadismo a propósito de Hitchcock.  Acho que a verdade é mais complexa e que Janela Indiscreta é o primeiro filme em que o autor se traiu a tal ponto. Para o herói de A Sombra de uma Dúvida, o mundo era um chiqueiro. Hoje acho que era o próprio Hitchcock que se expressava por trás do personagem. Não venham dizer que estou extrapolando; em Janela Indiscreta a sinceridade explode em cada plano, assim como o tom, sempre mais grave nos filmes de Hitchcock, vai diretamente ao encontro de seu interesse espetacular, logo comercial. Sim, trata-se exatamente da atitude moral de um autor que vê o mundo com a excessiva severidade de um puritano sensual.

Alfred Hitchcock adquiriu uma tal ciência da narrativa cinematográfica que em 30 anos transformou-se em muito mais que um contador de histórias. Como ama apaixonadamente seu trabalho, não pára de filmar e há muito tempo resolveu a questão da direção; ele precisa, sob pena de entediar-se ou repetir-se, inventar dificuldades suplementares, criar novas disciplinas. Daí o acúmulo, em seus filmes mais recentes, de obstáculos apaixonantes sempre brilhantemente superados.

Neste filme, o desafio foi ter filmado sempre no mesmo lugar, do ponto de vista único de James Stewart. Vemos somente o que ele vê, de onde ele vê, ao mesmo tempo que ele. O que poderia ter sido uma aposta austera e teórica, um exercício de frio virtuosismo, é na relaidade um espetáculo fascinante devido à invenção constante que nos deixa pregados em nossas cadeiras tão solidamente quanto James Stewart bloqueado pela perna engessada.


No entanto, diante de semelhante filme, tão estranho e tão novo, esquecemos um pouco esse virtuosismo atordoante; cada plano, por si só, é uma palavra vitoriosamente mantida; o esforço de renovação, de novidade, afeta tanto os movimentos da câmera, as trucagens e os cenários quanto a cor. (Ah! Os óculos dourados do assassino, iluminados na escuridão pelo clarão intermitente de um cigarro!)

Quem entendeu Janela Indiscreta perfeita e integralmente (é impossível numa única vez) pode ficar indignado e recusar-se a participar de um jogo cuja regra é a perfídia dos personagens, mas é tão raro encontrar num filme uma concepção de mundo tão precisa, que temos de curvar-nos diante do irrefutável sucesso.

Para esclarecer Janela Indiscreta, proponho a seguinte parábola: o pátio é o mundo, o repórter fotográfico é o cineasta, os binóculos representam a câmera e suas lentes. E onde fica Hitchcock em tudo isso? Ele é o homem por quem gostamos de nos saber odiados. 

 
in: TRUFFAUT, François.
Os Filmes da Minha Vida. Pg. 110-114.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

<<< Ainda Orangotangos, de G. Spolidoro >>>


TRI-LEGAL, TCHÊ!

Filme gaúcho, gravado em um só plano sequência, é um freak show bizarro e hilário que injeta criatividade e doidice no cinema nacional

Se você reparar bem, vai ter que concluir: no fundo ninguém é normal. E os loucos são maioria neste hospício a céu aberto que chamamos de mundo. Ainda Orangotangos, longa de estréia do gaúcho Gustavo Spolidoro, é uma frenética ode à excentricidade e à doidice humanas. Há anos o cinema brasileiro não produzia uma piração tão fina. Taí um filme que se parece com uma festa punk ou um circo de horrores, onde desfilam bizarrices e trashices das mais variadas, gerando algo que não tem paralelos na nossa filmografia fora o clássico Matou A Família e Foi Ao Cinema, do Julio Bressane.

Apesar do que possa sugerir o título, o filme não vem nem um pouco contaminado com misantropia. Ainda Orangotangos está longe soltar pelas ventas um fogo condenatório contra os vícios humanos e sociais, como tantas obras “de esquerda” que surgiram no rastro de Cronicamente Inviável. A ênfase aqui é no retrato surreal de um mundo que saiu dos trilhos, mas sem que se apontem culpados ou se sugiram soluções. Limpo de qualquer moralismo, o filme só nos pinta um quadro móvel e para lá de excêntrico de um mundo onde a sanidade humana está indo pro brejo.

Os primatas que o filme nos apresenta são impagáveis figuraças. É gente que dá porrada no Papai Noel (que é mó tarado...) no busão. Que toma porre de perfume, gargalha até quase estourar os pulmões e depois desmaia na banheira. Que ameaça explodir com granada um baile de debutantes evangélico. Que morre no vagão do trem sem que ninguém pareça notar e sem que a bandinha pare de tocar. Que vaga pelas ruas com manuscritos pornográficos “geniais” em busca de publicação. E muito mais. Uma galeria humana bizarra, e sempre piradaça.




Ainda Orangotangos monta um circo (nem tanto de horrores quanto de excentricidades) com uma atração tão forte pelo bizarro e pelo grotesco que merece o rótulo de fellinesco. Em certos momentos, vira um filme-pesadelo digno de Lynch. Em certas cenas, parece os momentos mais exaltados de chapação em John Cassavettes. Mas acaba mesmo é parecendo o filme que Emir Kusturica faria, doidão de ácido, se lhe dessem uma câmera digital, um orçamento apertado e a liberdade de perambular por uma cidade latino-americana para filmar um freak show.

A Nova Literatura Invade o Cinema

As adaptações para a telona de romances e contos de jovens talentos da literatura nacional está na moda, em especial de autores gaúchos como Clarah Averbuck (que teve sua obra filmada por Murilo Salles em Nome Próprio) e Daniel Galera (cujo romance Até O Dia Em Que O Cão Morreu virou o elogiado Cão Sem Dono, de Beto Brant). Ainda Orangotangos foi baseado na obra de Paulo Scott, outro nome forte desta cena literária efervescente. Originalmente lançado pela Livros do Mal, o livro acaba de ser reeditado pela Editora Record.

Em 81 minutos, sem nenhum corte, o filme de Spolidoro é o primeiro longa brasileiro rodado em um único plano-seqüência – tática de filmagem incomum, mas que já gerou obras célebres (como o Festim Diabólico, de Hitchcock) e cultuados (como o Arca Russa, de Sokurov). Mais de 180 pessoas, num perímetro urbano de 15km, foram mobilizadas em Porto Alegre para as filmagens. Os ensaios antes de se apertar o REC foram cuidadosos e exaustivos. Na hora do vamos-ver, foram feitos seis takes. A seqüência eleita foi a segunda, rodada no dia 08/12/2006.


Ainda Orangotangos parece apostar na tese de que a realidade é muito mais surreal do que qualquer delírio da imaginação, que uma grande cidade é bem mais lotada de bichos selvagens do que um zoológico e de que talvez a lei da evolução não seja uma verdade universal: não somos nós ainda uns gorilas irracionais e tresloucados?

Como cenário por onde vagam esses personagens, há sempre uma cidade vista através de uma perspectiva bem pessoal e idiossincrática – como são a Manhattan de Woody Allen, a Dublin de James Joyce ou a Paris de Victor Hugo. O governo estadual provavelmente não apostaria nisso, achando carolamente que o filme é quase um queima-filme da reputação primeiro-mundesca do sul brasileiro, mas Ainda Orangotangos pode ser uma ferramenta ótima para atrair turistas para o Rio Grande do Sul. Como não?! Nos festivais internacionais, certamente não vão faltar aqueles que, entusiasmados, vão ficar loucos de vontade de ir dar um rolê num canto do mundo tão lindamente endoidecido. Com uma trilha sonora e uma gangue de personagens altamente punk, Ainda Orangotangos é uma anárquica e hilária celebração do lado extremo e bizarro da vida, pintando um quadro dionisíaco de Porto Alegre como um verdadeiro lugar do caralho.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

<<< Medo e Delírio em Las Vegas (Tery Gilliam, 1998) >>>


FREAK KINGDOM!

ilustras: jason zuckerman


Uma trip gonzo-psicodélica alucinante. A narrativa é conduzida com o frenesi delirante de um Fellini ou Kusturica da era do ácido. O humor à la Monthy Phyton também marca presença. Gilliam fez um filme excessivo, verboso, grotesco, com uma estética caricaturista meio Assasssinos Por Natureza. É a ressaca moral da era hippie; ou pelo menos as ranzizices de Raoul Duke, gonzo jornalista, contra a falência do Ideal que tinha sido vendido por Timothy Leary...

Quase todas as viagens, aqui, são bad trips. E uma das "morais da história" não é nada florida: todo o sonho psicodélico tinha se baseado numa falsa expectativa das maravilhas que seriam causadas pela expansão da consciência. A época que o filme retrata - Guerra do Vietnã, Nixon capengando na presidência, truculência do FBI contra o "sinistro perigo dos entorpecentes", leis pesadíssimas nos Estados contra a posse de marijuana (20 anos de detenção; perpétua se você for pego vendendo)... - nada tem de comum com o sonho do comunitarismo hippie, amor livre, make love not war. O filme de Gilliam é mais herdeiro do "the dream is over" de Lennon, mas dito por alguém que nem por isso deixou de chapar. Fica por aí, head full of acid, provocando, quebrando a lei, experimentando todas as substâncias psico-ativas descobertas desde 400 antes de Cristo e escrevendo as reportagens mais impublicáveis de todos os tempos. E reclamando. Tanta mescalina para "abrir" os olhos, e tantas desoladoras e hostis realidades sociais! Quanto policial autoritário, quanto político corrupto, tanto sujeitinho fascitóide, quanta pilantragem, burguesice e péssima música pop! 

É o meio dos anos 70 e o American Dream, que pretende ter se instalado e estar prodigalizando seus benefícios, aparece aos olhos de Douke e Gonzo como um Infernal Pesadelo. A cultura de circo, de diversão compulsória, de entretenimento ruidoso por todos os lados, causa tamanha aversão no personagem de Johnny Depp que ele pontua: "isto é como o mundo ficaria se a Alemanha tivesse ganho a Segunda Guerra! Esta é a cara do novo Reich!" Acusações pesadas, que o filme não poupa, ainda que pareça, superficialmente, só a screwball-comedy do LSD...

Mas o buraco é mais em baixo: Fear and Loathing In Las Vegas têm pretensões contra-culturais. O texto é altamente beatnik, lembrando Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti e Bangs a toda hora. E era uma época ótima para a arte mergulhar na junkieland, que tinha achado em Irvine Welsh um tão intenso proseador contemporâneo. O filme de Gilliam não veio sozinho: fez-se acompanhar por Trainspotting, de Danny Boyle, e Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky.


A contra-cultura vai adiante fazendo a crítica de si mesma; ou melhor, passando sobre o crivo suas prévias encarnações. Medo e Delírio não é tão modesto quanto parece: não é uma "comédia maluquinha" qualquer, dessas que a Globo passaria sem pudor na Tela Quente. Pois Medo e Delírio pretende ser uma obra contra-cultural, de vanguarda, quase o novo Easy Rider. Pretende inclusive criticar a contra-cultura dos anos 60, mapeando suas ilusões, desfazendo suas quimeras, de modo ainda mais radical do que o clássico de Dennis Hopper. 

Mas o filme é decerto unilateral e peca por um retrato muito negativista dos efeitos das "viagens"; não há nenhuma discussão séria sobre a Experiência Psicodélica e seu potencial libertário como a encontramos em Aldous Huxley, Terence McKenna, Ken Kesey, no próprio Timothy Leary... Mas decerto que o filme escapa dos simplismos mais óbvios. Dificilmente pode ser acusado de fazer "apologia": as "nóias" e terrores e vômitos que as lentes de Gilliam nos fazem testemunhar são antes algo que cria aversão pela própria idéia de uma vida junkie. Também não se pode dizer, nem fudendo, que Gilliam que esteja se alinhando com os caretas, policialescos e militarzóides, que querem tratar "drogado" como lixo, lançar na cadeia, mandar pro campo de extermínio, criar uma Auschwitz for junkies


O filme é muito mais a crônica de um pretendente a escritor da contra-cultura: o próprio Thompson assumindo seu alter-ego quixotesco Raoul Douke, posto no meio do vórtex de uma cultura cheia de conflitos, contradições, quadradices, conservadorismos, pavores ao diferente, cegueiras brancas... Por isto há tanta eloquência na principal crítica que o filme faz à "ilusão hippie": a crença, à qual Hunter Thompson aparentemente não podia se afiliar, de que havia alguém --- alguma força, alguma inteligência, alguma providência... --- que segurava a tocha, lá no fim do túnel....

Houve aqueles que chegaram ao fim do túnel só para descobrir que não havia luz.


<<< Meliès >>>

 
BREVE EULEGIA
À MÈLIES, LE MAGIQUE!

 Algumas das mais reluzentes pérolas dos primórdios do cinema saíram da cachola de Meliès, Le Magique. A sétima arte ainda engatinhava. Era o despontar do século 20, seus primeiros passos. E já espalhava-se como fogo no rastilho a fascinação pelas possibilidades trazidas pelo cinematógrafo, aquela mágica caixa de animar fotografia... Mèlies foi um dos "magos" mais geniais desta aurora de uma nova arte, mostrando que somente captar a realidade, em pura verossimilhança, não era a única das potencialidades do cinema. Que, através dele, era possível criar "perceptos" ainda inexistentes. Que ele podia ser o veículo para uma magia alquímica. Com a nova invenção, um mágico como Mèlies pode fazer proezas dantes inimagináveis: faz os esqueletos dançarem, manda astrônomos para a Lua, desce às profundezas do oceano, faz todos os móveis de um quarto caberem dentro de uma mala, além de estar investido do poder de conceder a suas criaturas o dom da invisibilidade ou da desaparição súbita... O jeito brincalhão e lúdico deste grande precursor não cessaria de ecoar por décadas de cinema mudo, deixando sua marca em Chaplin, Keaton e tantos outros. Talvez não haja outro cineasta que tenha levado tão à sério, em sua jovial e jorrante criatividade de criança, a idéia de "brincar de Deus"...