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domingo, 24 de fevereiro de 2013

A senti-pensante Juliette Binoche e a infinitude dos afetos




















"A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça..." VLADIMIR JANKÉLÉVITCH (1903-1985), filósofo francês e Professor da Sorbonne (de 1951 a 1979) em seus Cursos de Filosofia Moral. Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 211.


Qual o segredo de Juliette Binoche? O que explica que ela seja uma atriz tão impressionante, uma autêntica gênia da atuação? Talvez uma parte da resposta esteja na coragem com que ela busca personagens desafiadores. Papéis fáceis não a interessam. É como se ela seguisse o conselho que Rilke oferece em suas Cartas a um Jovem Poeta: "Prefira sempre o difícil, e assim sua vida não cessará de expandir-se. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita..."

Ela parece ir à procura de personagens que a conduzam a limites, a abismos, a confrontações existenciais de uma radicalidade que o comum dos mortais não ousaria encarar. Mesmo na escolha dos diretores com quem trabalha, ela demonstra coragem e procura a companhia de artistas nada fáceis como Michael Haneke, Abel Ferrara, Bruno Dumont, Patrice Leconte, Abbas Kiarostami... Longe de querer aparecer na telona sempre sob uma luz favorável, ela aceita ser filmada em um estado emocional "estraçalhado", caótico, multi-facetado: como quando "encarna" uma mulher estilhaçada pelas dores do luto após perder o marido e a filha em um acidente de carro (em A Liberdade é Azul, de Kieslowki) ou vivendo na pele uma traumatizada e misteriosa artista-mendiga a vagar por Paris como uma Basquiat de saias (em Os Amantes da Ponte Neuf, de Leos Carax).

Antes de filmar seu filme mais recente, De Coração Aberto (de Marion Laine), Juliette Binoche, como contou em sua entrevista ao Estado de São Paulo, foi assistir a algumas cirurgias cardiológicas para sentir em carne viva o que significa estar diante de pacientes com o tórax literalmente escancarado. Foi lá e olhou para dentro de um peito humano que exibe suas entranhas, que está sendo operado pelo bisturi do cirurgião, por mais dura que fosse a experiência, por mais que a aflição e a angústia lhe empurrassem para longe daquele  desagradável confronto com a doença e a mortalidade. "Foi barra pesada", confessa. Mas ela só é uma atriz tão genial pois encara a barra pesada e aceita sentir nos extremos, entregar-se radicalmente mesmo aos afetos mais tenebrosos e terrificantes.

Sem ter uma prévia experiência vivenciada sobre um certo "estado afetivo" que ela deseja comunicar, sem esse confronto com a realidade concreta, Juliette Binoche não poderia atuar: se na tela ela impressiona tanto, nos faz sentir tanto, é pois há afeto autêntico correndo por trás, como uma seiva subterrânea. Os afetos são sua matéria-prima; seu rosto e seu corpo e sua voz são o palco deste carrossel variegado e múltiplo de afetos que se sucedem mas que portam sempre uma marca vigorosa de autenticidade.

Talvez não haja outra atriz viva que eu admire tanto, e com certeza a razão não está somente na beleza deslumbrante que ela tem em profusão e que o envelhecimento não pôde fazer fenecer: como Liz Taylor ou Nicole Kidman, Binoche dá a sensação de que o envelhecimento nada pode contra sua beleza, já que esta emana de outra fonte que não a mera quilometragem baixa do corpo... Emana, talvez, da radiância de uma existência vivida não somente sem medo dos afetos, mas muito mais numa entrega quase devocional a eles, num mergulho na multiplicidade do mundo afetivo que existem poucos atores na história do cinema que tenham feito de um modo tão genuíno e cheio de audácia.

Juliette Binoche expande a consciência da humanidade quanto às cores do arco-íris do afeto a ponto de jamais sermos capazes de acreditarmos que elas se reduzem a sete. São bem mais que sete (quiçá até bem mais que setenta!) as cores do arco-íris dos afetos: Juliette Binoche é alguém que surfa neste colorido, que sabe ir do mais sombrio negrume ao êxtase mais beatífico, que flui através das emoções mostrando que entre os pólos existe todo um oceano, e nele infindáveis ilhas... Juliette Binoche, se pedíssemos para que ela nos dissesse quantos são os afetos que existem, talvez nos respondesse: "Eu sempre perco a conta."

Depois de vermos esta mulher no cinema, qualquer leitura maniqueísta de mundo nos parece um logro, uma balela, uma mentira. Ela é a encarnação viva da multiplicidade. Não mais acreditamos ser possível compreender os atos humanos a partir de esquematismos simplificadores: 7 pecados capitais, 3 virtudes teologais, ou mesmo a infantil divisão em dois "Reinos", simplista e redutora, característica da cisão cristã entre o domínio do pecaminoso e do santo, do celestial e do diabólico.  Enfim: eis alguém que sabe que os afetos são bem mais numerosos do que suspeita a vã filosofia daqueles que querem julgar os homens como se a única rotulação possível para eles fosse "bons" ou "maus", "mocinhos" ou "vilões". Ela demole e faz ruir qualquer visão-de-mundo que queira sustentar que os homens ou estão com Deus, ou estão com o Capeta.

Capaz de atuações desprovidas de moralina, plenamente consciente da estreiteza simplista do maniqueísmo, Juliette Binoche parece acreditar na infinidade dos afetos assim como Van Gogh parecia acreditar na infinitude das cores - se perguntássemos a ele, "quantas cores existem?", ele talvez nos respondesse: "Nunca consegui contá-las, assim como são para mim incontáveis as estrelas que povoam a noite!"

O que talvez me faça empatizar tanto com ela, e gostar tão imensamente de tantos filmes dela (em especial A Viúva de Saint Pierre, Cópia Fiel, A Liberdade é Azul, Amantes do Ponte Neuf, Elles, A Insustentável Leveza do Ser...), seja este "leque" tão aberto de emoções que ela consegue "acessar" e comunicar. Ela vai à procura de vivenciar os estados afetivos, mesmo os mais dolorosos e angustiantes; não foge do medonho, do trágico, do destrutivo; vai à beira do abismo, às vezes flerta com a loucura; também sabe ser deprimida, estóica, epicurista, socrática; pode ser serena e irascível, ferida e invulnerável, caída-ao-chão e triunfante... Ela é o desespero de qualquer um que seja de mentalidade demasiado "classificante".

É através de tamanha multiplicidade de vivências e afetos, que ela desfila frente a nossos olhos através destas personagens sobre os quais ela infunde vida, que ela acaba nos impactando a sensibilidade a expandir-se para além de suas estreitezas costumeiras. Descobrimos que somos mais múltiplos e complexos do que pensávamos. Me parece até que uma das vocações do cinema francês, desde Godard, Truffaut, Rohmer, Resnais, têm sido um pouco esta: a de sublinhar a complexidade humana, sempre em protesto contra a vertente mais comercial do cinema, que apóia-se em estereótipos fáceis para a produção de suas mercadorias vendáveis e que apela tão comumente para a comodidade de um happy end moralista onde vilões sejam punidos e os bons recompensados com um "felizes para sempre...". Acossado, por exemplo, já trazia o gosto amargo mas tonificante das palavras de Faulkner: "entre o sofrimento e o nada, escolho o sofrimento." Não se trata de mentir sobre a vida, mas pintar um retrato o mais próximo possível de sua complexidade e riqueza cromática real.

 A lição de Faulkner, como a leio, é que entre a vida, necessariamente recheada de dores, e uma morte que nada nos deixa a sentir e que nos reduz à insensibilidade, os artistas genuínos, me parecem, dizem "sim!" à dolorenta realidade de sentir. Juliette Binoche é uma sábia do sentir e uma professora de expansão da sensibilidade; quando a assistimos e nos deixamos emocionar por ela, as capacidades empáticas que temos em nós são exercitadas, como se fôssemos a uma academia dos afetos para vê-los "malhados", isto é, forçados a retirarem da inação seus músculos. Esta artista brilhante escancara múltiplas portas em seu próprio peito e, de coração aberto, exibe diante de nós um leque tão amplo dos sentimentos que não podemos evitar: ampliam-se também os nossos.

E como não simpatizar com uma atuação que parece se confundir com uma autêntica vivência? Atuar = vivenciar, parece pensar Binoche. E sua atuação me assombra não só pela quantidade imensurável de beleza que emana dela, mas por abrir no horizonte a percepção do arco-íris de infinitude cromática que é Reino dos Afetos, os múltiplos e sempre moventes afetos! Por isso estou convicto de que esta artista magistral tem muito a ensinar à humanidade, ao chamado homo sapiens - que, longe de poder ser definido por sua universal sapiência (com quanta frequência somos tolos e insanos, irados e ciumentos, gananciosos e exagerados, descabidos e inconsequentes!), poderia ser muito melhor definido como uma criatura senti-pensante, como diria Eduardo Galeano.

Juliette Binoche nos convida a substituir a noção de homem racional pela de pessoa senti-pensante.  Em seu fundamento existencial mesmo, desde a raiz de nosso ser, somos criaturas que sentem e que não podem "guardar no armário" seus afetos para pensar "friamente" ou "com completa pureza".  A Razão Pura é só uma fantasia delirante de filósofo, e por trás dela encontram-se muitos afetos!  Engana-se o filósofo, o cientista ou o político que pensa poder alcançar a "neutralidade afetiva absoluta", esta quimera positivista. Além do mais, como Nietzsche denunciou tão eloquentemente em O Crepúsculo dos Ídolos, "todos os velhos monstros morais são unânimes na opinião de que il faut tuer les passions", isto é, "é preciso matar as paixões". Juliette Binoche, antípoda deste moralista denunciado por Nietzsche como monstruoso e que deseja um ser humano purgado de paixões, como se essas fossem impurezas, como se fossem sintomas de um mal d'alma ou de um pecado, é o mergulho  dado de bom grado no cosmos caótico, variegado e diverso dos afetos.

Binoche é uma força viva, em plena atividade, que milita contra o embrutecimento sensível daqueles que querem ser meramente racionais, calculistas e economicacamente eficientes. É a arte de gente como Juliette Binoche que nos garante que estamos, felizmente, bem providos de obras que nos ajudam a jamais deixar atrofiar  esta capacidade não só essencial à nossa sobrevivência, como também um dos charmes maiores do viver: a ampliação da consciência e da capacidade afetiva. "Aniquilar as paixões e os apetites", dirá Nietzsche, "nos parece hoje apenas uma forma aguda de estupidez. Não admiramos mais os dentistas que arrancam os dentes para que não doam mais... Arrancar as paixões pela raiz significa arrancar a vida pela raiz... Só se é fértil ao preço de ser rico em contradições; só se permanece jovem se a alma não sente preguiça, não anseia pela paz... A realidade nos mostra uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um pródigo jogo de formas..."

Juliette Binoche é, sobretudo, uma criatura capaz de despertar da letargia e do sono esta capacidade em nós de empatia ou simpatia que, como lembra Jankélévitch, muitos filósofos consideram como a raiz da piedade e o princípio da justiça - e sem a qual jamais experienciaríamos o que é amar.


Filmografia Recomendada:

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NÃO É PAZ, É MEDO! - Resenha crítica de "O Som ao Redor" (de Kleber Mendonça Filho, 2012)


NÃO É PAZ, É MEDO!

"O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (...) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." - HANNAH ARENDT em "A Condição Humana"

"Beirando a unanimidade, O Som ao Redor vem recebendo verdadeira consagração crítica", escreveu Eduardo Escorel na Piauí. Se Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que "toda unanimidade é burra", cabe-nos questionar se é justo todo esse oba-oba que vem entronando a estréia em longa metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Será que essa salva de palmas hiperbólica não é um tantinho exagerada? 

Caetano Veloso, por exemplo, sem medo da pagação-de-pau deslavada, incensou-o como "um dos melhores filmes brasileiros desde sempre". Na blogosfera, o influente "Filmes do Chico" elegeu-o como o melhor filme brazuca da última década (2002-2012), enxergando-o como "alegoria do coronelismo histórico nordestino". Já o estudioso da 7ª arte tupiniquim, Jean-Claude Bernardet, celebrou "a volta da luta de classe ao cinema brasileiro" (como se ela não estivesse presentíssima em numerosas produções recentes, como Tropa de Elite, Cidade de Deus, Salve Geral e em tudo que Sergio Bianchi faz... eis uma legítima "volta do que não foi"!). Já o Le Monde Diplomatique compreende o bairro retratado no filme como "síntese do Brasil" com suas "ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas".

Leituras válidas, é claro. Mas aqueles que, como eu, foram ao cinema depois de terem lido estas resenhas altamente elogiosas e criaram uma alta expectativa em relação ao filme, talvez se sintam tão decepcionados como me senti com a discrepância entre o esperado e o recebido. Saí de O Som Ao Redor em um estado de espírito bem "brochado" em comparação, por exemplo, com a excitação fervilhante que senti depois de Febre do Rato, do também pernambucano Cláudio Assis. 

Irandhir Santos
Tudo bem: talvez seja mera "questão de gosto", mas o filme de Assis me pareceu bem mais ousado em sua mescla de poesia e política, mais libertário em sua mensagem dionisíaca e desrepressora, mais impactante esteticamente, com uma fotografia mais bela e com um elenco de atuações bem mais vívidas do que o filme um tanto monocórdico e repetitivo de Kléber, que insiste em bater na mesma tecla e dizer a mesma coisa várias vezes. Além do mais, a história de amor entre o poeta febril e sua Eneida é imensamente mais interessante do que o enlace de João e Sofia em O Som ao Redor. Para não falar que o grande Irandhir Santos (que já merece um lugar de honra entre os atores mais talentosos desta geração!), realiza um trabalho que me parece muito mais magnífico em Febre do Rato e Tropa de Elite 2 do que como o segurança particular um tanto caricato que patrulha as ruas em O Som ao Redor


O Kleber Mendonça fez um filme demasiado "microcósmico" em relação à cosmolatria mística desbragada e com acentos trágicos do filme de Cláudio Assis. Com isso quero dizer que O Som ao Redor se limita ao "microcosmos" de uma pequena parcela da sociedade recifense, aquela classe média que ele talvez conheça melhor que qualquer outra classe pois pertence a ela. Cães-de-guarda que latem pelas madrugadas, guardas-noturnos de intenções suspeitas, guarda-costas que os endinheirados querem ter a seu lado para defesa de suas propriedades: estas são as figuras dominantes em O Som ao Redor. Aí está o retrato não de uma sociedade em sua multiplicidade, mas de uma classe em seu auto-enclausuramento - e isto não permite ao espectador uma compreensão mais ampla da realidade social como um todo, mas somente uma imersão no mundinho fechado daqueles que se defendem detrás de fortalezas.

É aí que reside o mérito do filme: na pintura dessa obsessão com a segurança que leva os habitantes a se encerrarem detrás de grades, vigiados por câmeras de vigilância, policiados por milícias privadas que recolhem a grana de porta-em-porta. O filme mostra uma sociedade cindida entre proprietários, que se encerram em seus bunkers privatizados, e alguns desvalidos em posições subalternas - e que o filme não quer nem perder tempo em retratar mais a fundo. 

Sim, é verdade que várias alfinetadas certeiras são dadas na classe média ali retratada: uma senhora, na reunião do condomínio de seu prédio, demanda a demissão do porteiro porque anda recebendo sua Veja fora do plástico. Outra senhora, ao visitar um apartamento acompanhada pelo corretor de imóveis, pede um desconto no preço pois ficou sabendo que uma pessoa se suicidou naquele prédio (tudo é justificativa para pechincha!). Duas moças se estapeiam, selvagens, pois uma descobre que comprou uma TV de 32 polegadas e a outra pôde bancar uma de 40. Escancara-se aí o ridículo da mediocridade consumidora  que vive para "concorrer" nas Olimpíadas do Supermercado e a estreiteza de pensamento dos que se informam sobre o mundo lendo este panfleto reacionário escroto que é a Veja. O Som Ao Redor, neste sentido, é um bom retrato de indivíduos atomizados, em concorrência uns com os outros na corrida estúpida do consumismo, que se encerram em seus apês cheios de eletro-domésticos para gozar com a tele-pornografia zapeável pelo controle remoto.

Kleber tece sua teia de ironias sutis em relação ao modo-de-vida de uma classe que aspira ao conforto, mas ao mesmo tempo se auto-enjaula na paranóia. No entanto, esta angústia urbana do sujeito que se encerra em seu mundinho fechado, por medo de uma realidade hostil (algo já explorado nos curtas do diretor, especialmente Enjaulado e Eletrodoméstica), não é exatamente uma temática extremamente original - é só lembrar que o hit do Rappa, "Minha Alma", que estourou Brasil afora, já disse algo de muito semelhante e de modo bem mais sintético: "As grades do condomínio são pra trazer proteção. Mas também trazem a dúvida se é você que 'tá nessa prisão..."



O que me incomoda no filme, por exemplo, é a maneira como a figura do "pobre" surge na tela em suas episódicas e velozes aparições: é o menino negro magricela que se esconde dos seguranças subindo numa árvore, e que depois é espancado por eles como se espanta uma mosca; como ladrão invisível do aparelho-de-som e quebrador de vidros de proteção; como vulto negro se esgueirando para fora da casa que está assaltando; como lavador de caranga importada que se vinga da perua endinheirada ao riscar a pintura do carro... Que ocorrências semelhantes aconteçam de fato nas nossas grandes cidades, não tenho dúvida. Mas O Som ao Redor faz algo além de re-utilizar a mesma imagem estereotipada que as classes proprietárias tem das classes "inferiores"? Onde está o hip hop e o grafite, a poesia marginal e os filhos do mangue beat? Onde está o retrato da vida real nas favelas, o esforço de enxergar a humanidade em cada uma das pessoas que vivem em barracos e não em condomínios fechados?  

Se alguns podem enxergar nesta microscopia um mérito do filme, eu enxergaria antes uma insuficiência: o filme de Kleber, ao centrar quase toda sua atenção no microcosmos da classe média, parece não ter muito a nos dizer sobre a humanidade e a complexidade destas classes despossuídas que suas lentes não se preocupam muito em focalizar de modo penetrante e que ele retrata através dos olhos da classe que os segrega e que os enxerga preconceituosamente como um bando de ladrões e depredadores. O contraste é gigante quando o comparamos com uma obra como Ônibus 174, de José Padilha, que realiza um retrato psicológico profundo e penetrante de seu personagem principal, que não acha desperdício de tempo consagrar duas horas à compreensão do destino pessoal de um menino-de-rua, sobrevivente do massacre da Candelária, e que acaba sendo uma obra-prima do documentário nacional justamente por mostrar toda a complexidade deste ser humano relegado à invisibilidade criada pela névoa do preconceito.

Em O Som ao Redor, "o condomínio fechado é mostrado como a versão contemporânea do feudalismo, em que empregadas e porteiros são objetificados", avalia Ismail Xavier, crítico de cinema e professor da USP. Respeito muito a grande perspicácia de um dos nossos maiores "pensadores do cinema", que enxerga em O Som ao Redor toda essa riqueza semântica que, muito provavelmente, "passa batido" pelo grande público. Mas me parece exagerado fazer do filme uma "síntese do Brasil", uma "alegoria do coronelismo" ou um retrato das sobrevivências do feudalismo. Em matéria de história do Brasil, o filme de Kléber está longe de ser educativo ou esclarecedor, ainda que o prelúdio do filme, que traz fotografias antigas dos engenhos canavieiros de Pernambuco, intentem estabelecer um link entre a realidade presente e o passado colonial. O filme, me parece, passa suas duas horas sem realizar grandes investigações históricas, nem se arrisca a falar sobre o futuro; concentra-se na crônica do presente de uma classe específica, sem a mínima pretensão de realizar uma grande síntese histórica como alguns intérpretes lhe atribuem. Estes são significados que os intérpretes retiram de um filme que, talvez sem ter sonhado com todo o hype que gerou, contenta-se em retratar um triste microcosmos de classe que está muito longe de dar conta de descrever a complexidade e a multiplicidade do Brasil.

Nosso olhar, por todo o filme, fica restrito ao mundo privado: tanto o mundo público quanto o mundo natural somem de vista. A maioria dos personagens, apesar de viverem em uma cidade litorânea como o Recife, a poucos metros do mar, não o enxergam: o concreto dos muros e dos arranha-céus obstaculiza a paisagem que poderia se abrir para a imensidão. As águas só são mostradas em poucas cenas, e uma placa avisa os banhistas sobre o perigo de ataque de tubarões. Tudo em O Som ao Redor retrata a clausura do medo daqueles que se encerram no privado e não enxergam o Mundo como o descreve Hannah Arendt: aquele que adentramos ao nascer e aquele que deixaremos ao morrer, aquele que engloba todas as classes e que contêm todas as grades e todas as jaulas, o mundo público cujo eclipse o filme pinta com insistência.

Mas pintar o medo não nos dá pistas sobre como superá-lo - e nem uma sombra de transformação social, muito menos de revolução, ousa levantar a cabeça por aqui. Até a vingança é privada num microcosmos onde tudo foi reduzido à estreiteza de uma privatização  excessiva e que acarreta a ceguiera à imensidão. O Som ao Redor retrata os vários sintomas do apagamento do mundo comum e de nossa faculdade de ação sobre ele: enjaulados em bunkers de alta-tecnologia, protegidos por guardas armados que o dinheiro compra, viciados num conforto que segrega até mesmo o conhecimento da miséria alheia, estes personagens se esqueceram de que "os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." (Hannah Arendt)



Alguns curtas do diretor: