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sábado, 20 de junho de 2015

American Psycho: Psicopata Americano (Mary Harron)


GREED AND DISGUST

"I feel lethal on the verge of frenzy. 
I think my mask of sanity is about to slip."
PATRICK BATEMAN

Enquanto o circo pega fogo nos protestos mundiais contra o Caos Financeiro em que vivemos imersos, nós que vivemos sob sistemas econômicos anarco-capitalistas sempre em eminência de catástrofe, é bom retornar a filmes como American Psycho para entender contra o quê se luta nos Occupies-Wall-Street da vida. Talvez todos nós sejamos obrigados a passar, em nosso tempo de vida, por algo equivalente à Crise de 1929 e à Grande Depressão. Pois o capitalismo parece uma mocinha histérica: entra em crise sistemática e recorrente. Dá tilt e entra em pane com frequência aporrinhante feito uma máquina de pinball velha.

E é bem possível que as próximas crises, conforme o petróleo for escasseando e a biosfera da judiada bolota Terra for entrando em desequilíbrio cada vez mais profundo, incapaz de sustentar os fardos que lhe põe no lombo (e nos ares) os humanos, sejam piores do que aquelas que até hoje conhecemos. Será que seremos tão estúpidos a ponto de cortar todas as árvores, sujar de imundícies todos os rios, lotar a atmosfera de gases tóxicos, nesta desenfreada luta por índices de produção faraônicos, para no fim descobrir... que dinheiro não se come? Dinheiro também não compra um planeta novo. O planeta que fudermos por cegueiras gananciosas e egoísmos econômicos sem-freios não é um planeta substituível. 

 Dos romances de Lolita Pille ao Clube da Luta de David Fincher, muitas obras recentes escancaram o que há de obsceno, grotesco e escroto na tal Sociedade de Consumo. Trabalhamos e consumimos, nós os 99%, para que os 1% lá no topo possam ter o maior conforto e luxo imaginável em seu palácio-fortaleza no topo da pirâmide...

Em American Psycho, thriller brilhante de Mary Harron, Patrick Bateman (Christian Bale) vive naquilo que Robert Crumb chamaria de "AmériKKKa". Em outros tempos, ele seria da Klu Klux Klan. Hoje... bem, trabalha em Wall Street e mata mendigos por esporte. Extirpa tudo o que ostente diferença. Quer um mundo "sem impurezas", tal qual o III Reich queria construir com seu sonho eugenista uma "raça ariana superior". Mas nada na "máscara" ou na fachada deste serial killer dá a entender as psicoses que se escondem em seu íntimo: Bateman é diplomado em economia pela prestigiadíssima Harvard Business School, sempre vestindo ternos e gravatas do mais fino linho, todo tratado com cremes para a pele, after-shaves, sessões de ginástica e massagens (cujo preço somado deve dar o equivalente ao PIB da Etiópia ou do Sri Lanka...). É compulsivamente competitivo: comparar cortes-de-cabelo e designs de cartão-de-visitas como se eles fossem as mais cruciais das questões.

Em sua casa, na parede que ele mira todo dia enquanto mija, possui um quadro inspirado em Os Miseráveis, de Victor Hugo. Patrick Bateman mija todos os dias olhando para o rostinho infantil de Cosette, a filha adotiva de Jean Valjean no clássico épico francês de Hugo. Mas Bateman é a completa dissociação entre discurso e ação: fala uma coisa e faz outra. Da boca pra fora, é a favor de acabar com todas as misérias e apartheids que há no mundo, mas obviamente na prática nada faz em prol dessas tarefas que louva. Na prática, a teoria é outra. Toda ação de Bateman é extremamente auto-centrada: egocêntrico ao ponto da demência, considera seu interesse próprio, suas vontades caprichosas, como lei suprema. O mundo deve curvar-se à supremacia dos desejos de Patrick Bateman. A matéria deve curvar-se, cair de joelhos para servi-lo!

Seu apartamento é meticulosamente asseado, higiênico. Ele só gosta de música comercial (grande admirador de Phil Collins....): jamais ousaria expor seus ouvidinhos tão puros a qualquer tipo de lixo independente. Só aquilo que tem os investimentos de uma grande multinacional é algo de "valor reconhecido". "Hip to Be Square", que traduz-se por algo semelhante a "Sou Cool Pois sou Careta", é uma de suas músicas prediletas: ele fala demoradamente sobre Huey & the News enquanto prepara-se para assassinar com uma machadinha. Bateman é um refém cerebral da Matrix chamada Mainstream. Assiste filmes de pornografia enquanto fala com a namorada, todo embirradinho com um desencontro pois considera que sua pica deve reinar sobre o mundo das mulheres com o autoritarismo de um tirano. No restaurante, ele impõe à sua acompanhante-de-saia a escolha do prato: não interessa se a moça queira scargot e coelho, ele irá citar os cadernos gastronômicos dos jornais para exigir dela que se curve e engula um frango quando está com fome de boi.

 Está rodeado por pessoas que usam e abusam das "benesses" que a indústria farmacêutica lhes dá: o Xanax, o lithium, o Prozac... Sua turma é de junkies de farmácia. E de farmácias geridas como negócios, que têm por finalidade não a saúde mas o dinheiro, e que adoram "enganchar" novos clientes em  vícios deliciosamente lucrativos... Uma cultura saturada por remédios Tarja Preta está a um passo da tragédia: lembremos de Réquiem Para Um Sonho, quando retrata o triste destino de Sarah Goldfarb, a velhinha que vicia na anfetamina ao fazer a dieta que lhe permitirá ser Estrela por um Dia na TV. Uma das mais brilhantes "sacadas" de Aronofsky naquele clássico noventista foi escancarar o potencial alucinatório do Tele-Tubo. Seguiu, nesta senda, ao Cronenberg de Videodrome e ao Thomas Pynchon de Vineland. Nas baladas tecno de luxo que frequentam os ricaços de American Psycho, com banheirões repletos de carreiras de pó, disponível para todas as narinas, enchem o côco de cocaína e saem trocando impropérios - se xingam, se esganam, se estapeam, às vezes se matam... 

Uma das razões que fez de O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight), do Christopher Nolan, um dos melhores filmes deste nosso jovem século, foi a encarnação de Bruce Wayne por Christian Bale: com as lições preciosas que ele aprendeu em American Psycho, soube emprestar ao ricaço dono do Corporação Wayne, um dos homens mais cheios da bufunfa em Gotham City, uma certa psicopatologia, uma certa psicose: há mais laços unindo o Coringa e o Batman do que sonha nossa vã filosofia maniqueísta! Nolan soube explodir em mil pedaços qualquer divisão simplista e binária entre Vilão e Mocinho, complexificou a questão de modo a fazer emergirem questões sociológicas, políticas e jurídicass, sem sacrificar o vigor impressionante de sua narrativa. De certo modo, o Batman é outra espécie de American Psycho, muito aparentado ao próprio Joker de Heath Ledger, um personagem destinado a talvez se tornar tão cult quanto o próprio Homem-Morcego. 

Bateman é uma espécie de Raskolnikov da era do Capitalismo Financeiro, retirando de sua arrogante pressuposição de Superioridade que mesmo o assassinato-em-série é justificado. O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, é muito mais simpático, capaz de despertar nossa empatia, pois é um estudante com amplas ambições artísticas e que sofre da mais profunda pobreza em Moscou. Além disso, na segunda parte do romance, passa por um infindos martírios de remorso e consciência de culpa, não conseguindo conviver com seu ato, tornando-se cada vez mais paranóico enquanto as forças policiais fecham o cerco e a Sibéria se aproxima... Já Bateman não tem o álibi da pobreza: seus crimes não são emanados da miséria. Da própria opulência desenfreada brotam estas flores malditas.Um espancador de prostitutas, um assassino de mendigos, um "homem de finanças" que adora lidar com a rivalidade na base da extinção do partido oposto com a força bruta da violência.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Reflexões sobre a CRUZ a partir de SPARTACUS, de Stanley KUBRICK (1960)


S P A R T A C U S

 de STANLEY KUBRICK (1960)


Da obra de HOWARD FAST (compre o livro por R$19,90). Faça o download do filme completo em torrent (1,76 GB) ou compre o DVD (R$22,90)

Um dos méritos maiores de Spartacus, a história de um homem que lutou pelo fim da escravidão 2.000 anos antes dela ser abolida de fato, está na capacidade do filme de imergir o espectador em um período histórico anterior ao surgimento do Cristianismo, dando-nos vislumbres dos horrores vigentes na realidade sócio-política desta época. 

No século que antecedeu o nascimento de um certo profeta hebreu de Nazaré, o Império Romano possuía na crucificação seu principal instrumento de pena capital: Jesus, longe de ser uma exceção, padeceu na cruz um destino semelhante ao de milhares de pessoas assassinadas através deste método horrendo pelas elites romanas. Donde a perplexidade que muitos manifestam diante da idolatria católica da cruz, que vista sob uma perspectiva histórica, sem adornos mitológicos, não passa de um instrumento sinistro de tortura e assassinato. 

É o que Richard Dawkins nota ao sugerir uma comparação insólita: ostentar um crucifixo equivale a andar por aí com uma cadeira-elétrica em miniatura dependurada no corpo. Símbolo sinistro de uma religião fundada no martírio de seu profera, e que não cessou de idolatrar, história afora, um instrumento do suplício, como se convidasse os devotos a imitarem a tortura crística, pregando-se em vida numa cruz ou trotando pela Terra com um fardo auto-imposto sobre o lombo - como aqueles camelos sobrecarregados e miseráveis de que fala Zaratustra...

Na época que o filme de Kubrick retrata, onde ainda não havia sido inventado o calendário que rachou a História em um antes e um depois de Cristo, testemunhamos uma luta de classes das mais encarniçadas: de um lado, a aristocracia imperial romana, que tem como divertimento predileto a sanguinolência dos espetáculos de gladiadores, onde dois escravos são obrigados a lutar até que um deles assassine o outro; de outro, uma massa imensa de despossuídos e explorados, coagidos pela força militar e policial do Império ao trabalho extenuante, e alguns deles obrigados a servir de bonecos-de-carne nas grotescas cerimônias digladiantes. 

Quando Walter Benjamin afirma que "todo monumento da civilização é um monumento da barbárie", provavelmente se refere a esta vergonhosa realidade do mundo greco-romano: todas as elevadíssimas e grandiosas conquistas culturais, todas as estátuas lindamente esculpidas e edifícios belamente arquitetados, tinham como base um sistema econômico escravista, defendido desavergonhadamente pelas elites, inclusive pelos filósofos, poetas e literatos da gloriosa Grécia. O próprio Platão era dono de escravos e Aristóteles, preceptor de Alexandre, já inicia seu livro dedicado à Política em um tom escravocrata (e machista) explícito capaz de enojar o leitor contemporâneo...

"Alguns seres, ao nascer, se veem destinados a obedecer; outros, a mandar. (...) O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. (...) Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens no qual o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer. (...) A utilidade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos: ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades cotidianas. (...) O escravo é completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem, mas fraca; a do filho é incompleta..." (ARISTÓTELES, Política, Trad. Nestor Silveira Chaves. Ed. Saraiva de Bolso, Livro I, Capítulo 2 e 4, pgs. 26, 27 e 42).

Esta defesa aristotélica da escravidão, que soa tão nauseante a nossos ouvidos, só torna ainda mais significativa a atitude de Spartacus - ele que, se pudesse, decerto cuspiria no rosto do filósofo e lançaria seus livros ao fogo. O levante de escravos, liderado por Spartacus, é uma tentativa desesperada de romper radicalmente com estes grilhões da servidão imposta de cima pela força bruta dos senhores. Após uma rebelião penitenciária, Spartacus e seus asseclas libertam-se da escola de gladiadores onde haviam sido encerrados e partem pelo território italiano, libertando pelo caminho todos os escravos que encontram e pilhando as riquezas dos senhores. Tudo o que querem é atravessar o território da Itália até o mar e fugir para longe da degradante e tenebrosa condição de escravidão. 

Em uma das cenas mais belas do filme, Spartacus e sua amada Varínia saboreiam com deleite as sensações, para eles frescas e inéditas, da liberdade. Celebram o fato de que agora não estão acorrentados e que ninguém pode comprá-los ou vendê-los. Spartacus estoura numa gargalhada gostosa ao ouvir o relato da fuga de Varínia, que saiu correndo de seu senhor ao notar que ele era pançudinho demais para poder alcançá-la...

Deitados na relva, à luz do luar, discutem seus desejos para o futuro, e Spartacus, homem capaz de se enternecer com a poesia e de declarar seus amores com arroubos sentimentais, revela seu intenso desejo de conhecimento. Pois a escravidão é algo que segrega o sujeito de tudo, de todos os direitos, inclusive o privando de acesso ao mundo da cultura, fazendo da possibilidade de educar-se um privilégio das elites. Spartacus, analfabeto cheio de uma sabedoria que não se aprende nos livros, inculto mas sequioso de sapiência, manifesta seu desprezo pela sina de lutador e diz desejar "saber tudo":
"Who wants to fight? And animal can learn to fight! But to sing beautiful things, and make people believe them.... Hmmm! I'm free. But what do I know? I don't even know how to read. I know nothing. Nothing! I wanna know. I wanna know everything. Why a star falls and a bird doesn't. Where the Sun goes at night. Why the Moon changes shape. I wanna know where the wind comes from..."

Mas o filme de Kubrick, baseado no livro de Howard Fast e fiel aos fatos históricos, está longe de ser otimista. A força militar das legiões a serviço do Império Romano é brutalmente superior ao exército improvisado que Spartacus lidera. Roma reina pela força, não pelo direito. Roma não conhece o diálogo democrático, a negociação diplomática. Roma não cede em sua posição de senhora absoluta sobre as vidas daqueles que ela se dá o direito de tratar como coisas. O preço que irão pagar aqueles que se insurgiram contra a águia imperial será altíssimo - e o espectador que testemunha a carnificina sai do filme levando uma memória indelével de uma pilha de cadáveres que preenche o campo de batalha...

Em sua instigante análise na Genealogia da Moral, Nietzsche avança a tese de que o cristianismo representa um "levante de escravos na moral". Parece-me bem interessante refletir sobre isso à luz do destino de Spartacus e seus asseclas. Estes, longe de tentarem um levante restrito ao domínio da moralidade, insurgem-se de modo muito mais literal e concreto: querem romper as grades de ferro que os encerram como animais na jaula. Que um elemento de indignação moral se mescle a este intento inssurrecional, não duvido: Spartacus e seus companheiros sentem na pele o quão indigno é a sina que lhes é imposta, o quão horrível é ser tratado como mercadoria, o quão insuportável é trabalhar debaixo do chicote, em jornadas estafantes, para gerar riquezas que serão gozadas pelos outros. 

O filme de Kubrick é notavelmente materialista, sem nenhuma intervenção divina ou interpretação mitológica: estamos diante de uma luta de classes e as questões de moralidade estão necessariamente conectadas com a realidade econômica e política desta sociedade escravocrata. O cristianismo, na leitura nietzschiana, não é um levante de escravos deste tipo spartacusiano, mas sim um momento na história em que "o ressentimento torna-se criador de valores". Em outras palavras: as populações que estavam sendo pisoteadas e oprimidas pelo poderio do Império Romano, em sua impotência para reagir e revolucionar a realidade concreta, inverteram a valoração característica da nobreza romana. Esta transvaloração dos valores realizada pela moral judaico-cristã equivale a uma consolação que se oferece aos fracos e oprimidos.

Mas notem bem: o cristianismo, ao contrário de Spartacus, não prega que os escravos peguem em armas e se levantem para guerrear contra seus senhores; o cristianismo é uma doutrina que fabrica a noção de Reino dos Céus e promete para um futuro post-mortem uma inversão da hierarquia terrestre.  Aqueles que são hoje pisoteados, explorados, feridos, mutilados, depois de morrerem serão recompensados por uma divindade benfazeja. Spartacus, ao invés de se inebriar com a esperança de ser salvo por potências superiores em um futuro distante, toma o seu destino nas próprias mãos no presente - seu levante é concreto. O cristianismo, ao contrário, religião da fé e da esperança, prega a resignação e o fatalismo - carregar a cruz rezando pais-nossos e aves-marias - e adia o dia da redenção para uma suposta transcendência. Ora, para Nietzsche, e decerto que também para Marx, esta transcendência é um embuste, esta recompensa post-mortem uma ilusão e esta fé apenas um ópio. 

É o que torna o cristianismo uma religião escrava do Imaginário e incapaz de revolucionar a realidade terráquea. Ao invés de quebrar todas as correntes que aprisionam o homem, o cristianismo permite que o homem permaneça acorrentado, ao mesmo tempo que promete para depois a libertação. É o que torna o cristianismo uma religião que idolatra a morte e o que explica seu caráter tão fúnebre e soturno:  aqueles que enxergam na morte uma porta que se abre para uma existência venturosa acabam se apaixonando por Tânatos. O desejo passa a se exilar da realidade terrestre e voejar pelos domínios imaginários do "Paraíso", do "Juízo Final", da "Redenção", conceitos que Nietzsche afirma no Anticristo "não terem nenhum ponto de contato com a realidade". 

Spartacus explicita que a cruz, na história, é instrumento de tortura e assassinato: por que idolatrar este horror? Se os cristãos puderam transformar este tenebroso instrumento de supliciamento em objeto de culto, talvez isto se deva somente à fé que têm na Ressurreição de Jesus. Eis uma religião que diz a todos os crucificados que, um dia, no além-túmulo, serão recompensados por seus sofrimentos. 

O que vale a pena questionar, como vêm fazendo por milênios um número infindável de ateus, agnósticos, céticos e livres-pensadores, é se esta dimensão transcendente, este além-túmulo redentor, é de fato uma realidade ou não passa de uma ilusão. É possível que a morte seja uma porta que se fecha, e não um portal que se abre para a glória celeste. É possível que não haja nenhum "fantasminha" imortal chamado "alma" que vá voejar para fora do cadáver que apodrece e subir aos céus. É possível que o cristianismo inteiro esteja construído sobre uma esperança falsa e que, como diz Nietzsche, que "o próprio Deus se revele como a nossa mais longa mentira." (A Gaia Ciência) 

O cristianismo, aliás, como sabemos, não soube, não quis ou não pôde abolir a escravidão. Nós, latino-americanos, o sabemos muito bem! Depois de 1.500 anos de cristianismo, nosso continente foi invadido pelos conquistadores da Espanha e de Portugal, monarquias católicas que não tiveram pudores em escravizar milhões de índios e negros, com a desculpa de que não eram gente mas bestas-sem-alma. Em As Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano relembra-nos no que se transformou a cruz nesta época:

"O ano de 1492 não foi apenas o do descobrimento da América, o novo mundo nascido daquele equívoco de grandiosas consequências (Colombo morreu convencido de que havia alcançado a Ásia pelas costas). Foi também o ano da recuperação de Granada, o último reduto da religião muçulmana em solo espanhol. Esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é casual, de resto, que no mesmo ano de 1492, 150 mil judeus declarados tenham sido expulsos do país. A Espanha adquiria realidade como nação erguendo espadas cujas empunhaduras traziam o signo da cruz. 
A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não poderia se explicar sem a tradição militar da guerra das cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para atribuir caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra. Três anos após o descobrimento, Colombo, pessoalmente, comandou uma campanha militar contra os indígenas da Dominicana. Os espanhóis dizimaram os índios. Mais de 500 deles, enviados para a Espanha, foram vendidos como escravos…" (Pg. 30-31)
A cruz, que antes de Cristo matou milhares e milhares de pessoas como um instrumento do Império Romano para a pena capital, depois de Cristo vai parar nas empunhaduras das espadas que lutaram nas  carnificinas das Cruzadas e que subjugaram o continente que os conquistadores batizariam - em homenagem a um europeu! - de "América". Encontrando por aqui nativos que nada sabiam sobre o cristianismo, que jamais haviam lido a Bíblia e nunca tinham ouvido falar em Jesus Cristo, os católicos europeus, a partir de 1492, se auto-proclamaram aqueles que estavam destinados por missão divina a livrar estas terras do paganismo e da idolatria, ilustrando os "selvagens" na "verdadeira fé". Galeano, novamente: 
"A América era uma vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo. (...) Entre 1503 e 1660, desembarcaram no porto de Sevilha 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata levada para a Espanha em pouco mais de um século e meio excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas cifras não incluem o contrabando. Com base em dados fornecidos por Alexander von Humboldt, estimou-se em 5 bilhões de dólares atuais a magnitude do excedente econômico evadido do México entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das exportações de prata e ouro. Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode dizer que o tornaram possível… formidável contribuição da América para o progresso alheio. No primeiro tomo de O Capital, Karl Marx escreve: ‘o descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, a conversão do continente africano em campo de caça aos escravos negros: são todos fatos que assinalam a alvorada da era da produção capitalista.’ O saque foi o meio mais importante de acumulação primitiva de capitais. (…) Essa gigantesca massa de capitais deu um grande impulso à revolução industrial…” (pg. 51)

Logo nas primeiras cenas de Spartacus, o narrador nos informa que este escravo rebelde sonhou com o fim da escravidão 2.000 anos antes dela acabar de fato. Seu fracasso não faz com que seu exemplo seja menos comovente, mas sublinha o quão cruel e tenebrosa pode ser a História humana. O cristianismo, surgido no Oriente Médio sob jugo romano algumas décadas depois da crucificação em massa dos escravos spartacusianos em levante, não revolucionou a realidade, mas somente disseminou esperanças de uma transcendência onde os sofrimentos seriam recompensados e onde os cruéis senhores arderiam no Inferno. 

Esta solução meramente imaginária mostrou toda a sua ineficácia: a escravidão sobreviveu até o século XIX e XX, e muitas vezes praticada pelos próprios cristãos! O que justifica este sentimento visceral de náusea e desgosto que sinto diante de toda e qualquer idolatria da cruz, esta horrenda máquina da morte que, através da História, não foi senão instrumento de genocídio e opressão. Nós, latino-americanos, que por milênios tivemos a sorte de não conhecermos a Cruz e seus idólatras, enfim tivemos a infelicidade de, a partir de 1492, sermos invadidos por estes vândalos europeus, loucos por ouro e famintos por conversões, e que foram capazes de alguns dos crimes mais imensos de que se tem notícia em todo o desenrolar da aventura humana:
"A violenta maré de cobiça, horror e bravura não se abateu sobre essas comarcas senão ao preço do genocídio nativo: atribui-se ao México pré-colombiano uma população entre 25 e 30 milhões, e se calcula que havia uma número parecido de índios na região andina; na América Central e nas Antilhas, entre 10 e 13 milhões de habitantes. Os índios das Américas somavam não menos do que 70 milhões, ou talvez mais, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois, estavam reduzidos tão só a 3,5 milhões.” (GALEANO: pg. 64)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A senti-pensante Juliette Binoche e a infinitude dos afetos




















"A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça..." VLADIMIR JANKÉLÉVITCH (1903-1985), filósofo francês e Professor da Sorbonne (de 1951 a 1979) em seus Cursos de Filosofia Moral. Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 211.


Qual o segredo de Juliette Binoche? O que explica que ela seja uma atriz tão impressionante, uma autêntica gênia da atuação? Talvez uma parte da resposta esteja na coragem com que ela busca personagens desafiadores. Papéis fáceis não a interessam. É como se ela seguisse o conselho que Rilke oferece em suas Cartas a um Jovem Poeta: "Prefira sempre o difícil, e assim sua vida não cessará de expandir-se. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita..."

Ela parece ir à procura de personagens que a conduzam a limites, a abismos, a confrontações existenciais de uma radicalidade que o comum dos mortais não ousaria encarar. Mesmo na escolha dos diretores com quem trabalha, ela demonstra coragem e procura a companhia de artistas nada fáceis como Michael Haneke, Abel Ferrara, Bruno Dumont, Patrice Leconte, Abbas Kiarostami... Longe de querer aparecer na telona sempre sob uma luz favorável, ela aceita ser filmada em um estado emocional "estraçalhado", caótico, multi-facetado: como quando "encarna" uma mulher estilhaçada pelas dores do luto após perder o marido e a filha em um acidente de carro (em A Liberdade é Azul, de Kieslowki) ou vivendo na pele uma traumatizada e misteriosa artista-mendiga a vagar por Paris como uma Basquiat de saias (em Os Amantes da Ponte Neuf, de Leos Carax).

Antes de filmar seu filme mais recente, De Coração Aberto (de Marion Laine), Juliette Binoche, como contou em sua entrevista ao Estado de São Paulo, foi assistir a algumas cirurgias cardiológicas para sentir em carne viva o que significa estar diante de pacientes com o tórax literalmente escancarado. Foi lá e olhou para dentro de um peito humano que exibe suas entranhas, que está sendo operado pelo bisturi do cirurgião, por mais dura que fosse a experiência, por mais que a aflição e a angústia lhe empurrassem para longe daquele  desagradável confronto com a doença e a mortalidade. "Foi barra pesada", confessa. Mas ela só é uma atriz tão genial pois encara a barra pesada e aceita sentir nos extremos, entregar-se radicalmente mesmo aos afetos mais tenebrosos e terrificantes.

Sem ter uma prévia experiência vivenciada sobre um certo "estado afetivo" que ela deseja comunicar, sem esse confronto com a realidade concreta, Juliette Binoche não poderia atuar: se na tela ela impressiona tanto, nos faz sentir tanto, é pois há afeto autêntico correndo por trás, como uma seiva subterrânea. Os afetos são sua matéria-prima; seu rosto e seu corpo e sua voz são o palco deste carrossel variegado e múltiplo de afetos que se sucedem mas que portam sempre uma marca vigorosa de autenticidade.

Talvez não haja outra atriz viva que eu admire tanto, e com certeza a razão não está somente na beleza deslumbrante que ela tem em profusão e que o envelhecimento não pôde fazer fenecer: como Liz Taylor ou Nicole Kidman, Binoche dá a sensação de que o envelhecimento nada pode contra sua beleza, já que esta emana de outra fonte que não a mera quilometragem baixa do corpo... Emana, talvez, da radiância de uma existência vivida não somente sem medo dos afetos, mas muito mais numa entrega quase devocional a eles, num mergulho na multiplicidade do mundo afetivo que existem poucos atores na história do cinema que tenham feito de um modo tão genuíno e cheio de audácia.

Juliette Binoche expande a consciência da humanidade quanto às cores do arco-íris do afeto a ponto de jamais sermos capazes de acreditarmos que elas se reduzem a sete. São bem mais que sete (quiçá até bem mais que setenta!) as cores do arco-íris dos afetos: Juliette Binoche é alguém que surfa neste colorido, que sabe ir do mais sombrio negrume ao êxtase mais beatífico, que flui através das emoções mostrando que entre os pólos existe todo um oceano, e nele infindáveis ilhas... Juliette Binoche, se pedíssemos para que ela nos dissesse quantos são os afetos que existem, talvez nos respondesse: "Eu sempre perco a conta."

Depois de vermos esta mulher no cinema, qualquer leitura maniqueísta de mundo nos parece um logro, uma balela, uma mentira. Ela é a encarnação viva da multiplicidade. Não mais acreditamos ser possível compreender os atos humanos a partir de esquematismos simplificadores: 7 pecados capitais, 3 virtudes teologais, ou mesmo a infantil divisão em dois "Reinos", simplista e redutora, característica da cisão cristã entre o domínio do pecaminoso e do santo, do celestial e do diabólico.  Enfim: eis alguém que sabe que os afetos são bem mais numerosos do que suspeita a vã filosofia daqueles que querem julgar os homens como se a única rotulação possível para eles fosse "bons" ou "maus", "mocinhos" ou "vilões". Ela demole e faz ruir qualquer visão-de-mundo que queira sustentar que os homens ou estão com Deus, ou estão com o Capeta.

Capaz de atuações desprovidas de moralina, plenamente consciente da estreiteza simplista do maniqueísmo, Juliette Binoche parece acreditar na infinidade dos afetos assim como Van Gogh parecia acreditar na infinitude das cores - se perguntássemos a ele, "quantas cores existem?", ele talvez nos respondesse: "Nunca consegui contá-las, assim como são para mim incontáveis as estrelas que povoam a noite!"

O que talvez me faça empatizar tanto com ela, e gostar tão imensamente de tantos filmes dela (em especial A Viúva de Saint Pierre, Cópia Fiel, A Liberdade é Azul, Amantes do Ponte Neuf, Elles, A Insustentável Leveza do Ser...), seja este "leque" tão aberto de emoções que ela consegue "acessar" e comunicar. Ela vai à procura de vivenciar os estados afetivos, mesmo os mais dolorosos e angustiantes; não foge do medonho, do trágico, do destrutivo; vai à beira do abismo, às vezes flerta com a loucura; também sabe ser deprimida, estóica, epicurista, socrática; pode ser serena e irascível, ferida e invulnerável, caída-ao-chão e triunfante... Ela é o desespero de qualquer um que seja de mentalidade demasiado "classificante".

É através de tamanha multiplicidade de vivências e afetos, que ela desfila frente a nossos olhos através destas personagens sobre os quais ela infunde vida, que ela acaba nos impactando a sensibilidade a expandir-se para além de suas estreitezas costumeiras. Descobrimos que somos mais múltiplos e complexos do que pensávamos. Me parece até que uma das vocações do cinema francês, desde Godard, Truffaut, Rohmer, Resnais, têm sido um pouco esta: a de sublinhar a complexidade humana, sempre em protesto contra a vertente mais comercial do cinema, que apóia-se em estereótipos fáceis para a produção de suas mercadorias vendáveis e que apela tão comumente para a comodidade de um happy end moralista onde vilões sejam punidos e os bons recompensados com um "felizes para sempre...". Acossado, por exemplo, já trazia o gosto amargo mas tonificante das palavras de Faulkner: "entre o sofrimento e o nada, escolho o sofrimento." Não se trata de mentir sobre a vida, mas pintar um retrato o mais próximo possível de sua complexidade e riqueza cromática real.

 A lição de Faulkner, como a leio, é que entre a vida, necessariamente recheada de dores, e uma morte que nada nos deixa a sentir e que nos reduz à insensibilidade, os artistas genuínos, me parecem, dizem "sim!" à dolorenta realidade de sentir. Juliette Binoche é uma sábia do sentir e uma professora de expansão da sensibilidade; quando a assistimos e nos deixamos emocionar por ela, as capacidades empáticas que temos em nós são exercitadas, como se fôssemos a uma academia dos afetos para vê-los "malhados", isto é, forçados a retirarem da inação seus músculos. Esta artista brilhante escancara múltiplas portas em seu próprio peito e, de coração aberto, exibe diante de nós um leque tão amplo dos sentimentos que não podemos evitar: ampliam-se também os nossos.

E como não simpatizar com uma atuação que parece se confundir com uma autêntica vivência? Atuar = vivenciar, parece pensar Binoche. E sua atuação me assombra não só pela quantidade imensurável de beleza que emana dela, mas por abrir no horizonte a percepção do arco-íris de infinitude cromática que é Reino dos Afetos, os múltiplos e sempre moventes afetos! Por isso estou convicto de que esta artista magistral tem muito a ensinar à humanidade, ao chamado homo sapiens - que, longe de poder ser definido por sua universal sapiência (com quanta frequência somos tolos e insanos, irados e ciumentos, gananciosos e exagerados, descabidos e inconsequentes!), poderia ser muito melhor definido como uma criatura senti-pensante, como diria Eduardo Galeano.

Juliette Binoche nos convida a substituir a noção de homem racional pela de pessoa senti-pensante.  Em seu fundamento existencial mesmo, desde a raiz de nosso ser, somos criaturas que sentem e que não podem "guardar no armário" seus afetos para pensar "friamente" ou "com completa pureza".  A Razão Pura é só uma fantasia delirante de filósofo, e por trás dela encontram-se muitos afetos!  Engana-se o filósofo, o cientista ou o político que pensa poder alcançar a "neutralidade afetiva absoluta", esta quimera positivista. Além do mais, como Nietzsche denunciou tão eloquentemente em O Crepúsculo dos Ídolos, "todos os velhos monstros morais são unânimes na opinião de que il faut tuer les passions", isto é, "é preciso matar as paixões". Juliette Binoche, antípoda deste moralista denunciado por Nietzsche como monstruoso e que deseja um ser humano purgado de paixões, como se essas fossem impurezas, como se fossem sintomas de um mal d'alma ou de um pecado, é o mergulho  dado de bom grado no cosmos caótico, variegado e diverso dos afetos.

Binoche é uma força viva, em plena atividade, que milita contra o embrutecimento sensível daqueles que querem ser meramente racionais, calculistas e economicacamente eficientes. É a arte de gente como Juliette Binoche que nos garante que estamos, felizmente, bem providos de obras que nos ajudam a jamais deixar atrofiar  esta capacidade não só essencial à nossa sobrevivência, como também um dos charmes maiores do viver: a ampliação da consciência e da capacidade afetiva. "Aniquilar as paixões e os apetites", dirá Nietzsche, "nos parece hoje apenas uma forma aguda de estupidez. Não admiramos mais os dentistas que arrancam os dentes para que não doam mais... Arrancar as paixões pela raiz significa arrancar a vida pela raiz... Só se é fértil ao preço de ser rico em contradições; só se permanece jovem se a alma não sente preguiça, não anseia pela paz... A realidade nos mostra uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um pródigo jogo de formas..."

Juliette Binoche é, sobretudo, uma criatura capaz de despertar da letargia e do sono esta capacidade em nós de empatia ou simpatia que, como lembra Jankélévitch, muitos filósofos consideram como a raiz da piedade e o princípio da justiça - e sem a qual jamais experienciaríamos o que é amar.


Filmografia Recomendada:

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NÃO É PAZ, É MEDO! - Resenha crítica de "O Som ao Redor" (de Kleber Mendonça Filho, 2012)


NÃO É PAZ, É MEDO!

"O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (...) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." - HANNAH ARENDT em "A Condição Humana"

"Beirando a unanimidade, O Som ao Redor vem recebendo verdadeira consagração crítica", escreveu Eduardo Escorel na Piauí. Se Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que "toda unanimidade é burra", cabe-nos questionar se é justo todo esse oba-oba que vem entronando a estréia em longa metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Será que essa salva de palmas hiperbólica não é um tantinho exagerada? 

Caetano Veloso, por exemplo, sem medo da pagação-de-pau deslavada, incensou-o como "um dos melhores filmes brasileiros desde sempre". Na blogosfera, o influente "Filmes do Chico" elegeu-o como o melhor filme brazuca da última década (2002-2012), enxergando-o como "alegoria do coronelismo histórico nordestino". Já o estudioso da 7ª arte tupiniquim, Jean-Claude Bernardet, celebrou "a volta da luta de classe ao cinema brasileiro" (como se ela não estivesse presentíssima em numerosas produções recentes, como Tropa de Elite, Cidade de Deus, Salve Geral e em tudo que Sergio Bianchi faz... eis uma legítima "volta do que não foi"!). Já o Le Monde Diplomatique compreende o bairro retratado no filme como "síntese do Brasil" com suas "ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas".

Leituras válidas, é claro. Mas aqueles que, como eu, foram ao cinema depois de terem lido estas resenhas altamente elogiosas e criaram uma alta expectativa em relação ao filme, talvez se sintam tão decepcionados como me senti com a discrepância entre o esperado e o recebido. Saí de O Som Ao Redor em um estado de espírito bem "brochado" em comparação, por exemplo, com a excitação fervilhante que senti depois de Febre do Rato, do também pernambucano Cláudio Assis. 

Irandhir Santos
Tudo bem: talvez seja mera "questão de gosto", mas o filme de Assis me pareceu bem mais ousado em sua mescla de poesia e política, mais libertário em sua mensagem dionisíaca e desrepressora, mais impactante esteticamente, com uma fotografia mais bela e com um elenco de atuações bem mais vívidas do que o filme um tanto monocórdico e repetitivo de Kléber, que insiste em bater na mesma tecla e dizer a mesma coisa várias vezes. Além do mais, a história de amor entre o poeta febril e sua Eneida é imensamente mais interessante do que o enlace de João e Sofia em O Som ao Redor. Para não falar que o grande Irandhir Santos (que já merece um lugar de honra entre os atores mais talentosos desta geração!), realiza um trabalho que me parece muito mais magnífico em Febre do Rato e Tropa de Elite 2 do que como o segurança particular um tanto caricato que patrulha as ruas em O Som ao Redor


O Kleber Mendonça fez um filme demasiado "microcósmico" em relação à cosmolatria mística desbragada e com acentos trágicos do filme de Cláudio Assis. Com isso quero dizer que O Som ao Redor se limita ao "microcosmos" de uma pequena parcela da sociedade recifense, aquela classe média que ele talvez conheça melhor que qualquer outra classe pois pertence a ela. Cães-de-guarda que latem pelas madrugadas, guardas-noturnos de intenções suspeitas, guarda-costas que os endinheirados querem ter a seu lado para defesa de suas propriedades: estas são as figuras dominantes em O Som ao Redor. Aí está o retrato não de uma sociedade em sua multiplicidade, mas de uma classe em seu auto-enclausuramento - e isto não permite ao espectador uma compreensão mais ampla da realidade social como um todo, mas somente uma imersão no mundinho fechado daqueles que se defendem detrás de fortalezas.

É aí que reside o mérito do filme: na pintura dessa obsessão com a segurança que leva os habitantes a se encerrarem detrás de grades, vigiados por câmeras de vigilância, policiados por milícias privadas que recolhem a grana de porta-em-porta. O filme mostra uma sociedade cindida entre proprietários, que se encerram em seus bunkers privatizados, e alguns desvalidos em posições subalternas - e que o filme não quer nem perder tempo em retratar mais a fundo. 

Sim, é verdade que várias alfinetadas certeiras são dadas na classe média ali retratada: uma senhora, na reunião do condomínio de seu prédio, demanda a demissão do porteiro porque anda recebendo sua Veja fora do plástico. Outra senhora, ao visitar um apartamento acompanhada pelo corretor de imóveis, pede um desconto no preço pois ficou sabendo que uma pessoa se suicidou naquele prédio (tudo é justificativa para pechincha!). Duas moças se estapeiam, selvagens, pois uma descobre que comprou uma TV de 32 polegadas e a outra pôde bancar uma de 40. Escancara-se aí o ridículo da mediocridade consumidora  que vive para "concorrer" nas Olimpíadas do Supermercado e a estreiteza de pensamento dos que se informam sobre o mundo lendo este panfleto reacionário escroto que é a Veja. O Som Ao Redor, neste sentido, é um bom retrato de indivíduos atomizados, em concorrência uns com os outros na corrida estúpida do consumismo, que se encerram em seus apês cheios de eletro-domésticos para gozar com a tele-pornografia zapeável pelo controle remoto.

Kleber tece sua teia de ironias sutis em relação ao modo-de-vida de uma classe que aspira ao conforto, mas ao mesmo tempo se auto-enjaula na paranóia. No entanto, esta angústia urbana do sujeito que se encerra em seu mundinho fechado, por medo de uma realidade hostil (algo já explorado nos curtas do diretor, especialmente Enjaulado e Eletrodoméstica), não é exatamente uma temática extremamente original - é só lembrar que o hit do Rappa, "Minha Alma", que estourou Brasil afora, já disse algo de muito semelhante e de modo bem mais sintético: "As grades do condomínio são pra trazer proteção. Mas também trazem a dúvida se é você que 'tá nessa prisão..."



O que me incomoda no filme, por exemplo, é a maneira como a figura do "pobre" surge na tela em suas episódicas e velozes aparições: é o menino negro magricela que se esconde dos seguranças subindo numa árvore, e que depois é espancado por eles como se espanta uma mosca; como ladrão invisível do aparelho-de-som e quebrador de vidros de proteção; como vulto negro se esgueirando para fora da casa que está assaltando; como lavador de caranga importada que se vinga da perua endinheirada ao riscar a pintura do carro... Que ocorrências semelhantes aconteçam de fato nas nossas grandes cidades, não tenho dúvida. Mas O Som ao Redor faz algo além de re-utilizar a mesma imagem estereotipada que as classes proprietárias tem das classes "inferiores"? Onde está o hip hop e o grafite, a poesia marginal e os filhos do mangue beat? Onde está o retrato da vida real nas favelas, o esforço de enxergar a humanidade em cada uma das pessoas que vivem em barracos e não em condomínios fechados?  

Se alguns podem enxergar nesta microscopia um mérito do filme, eu enxergaria antes uma insuficiência: o filme de Kleber, ao centrar quase toda sua atenção no microcosmos da classe média, parece não ter muito a nos dizer sobre a humanidade e a complexidade destas classes despossuídas que suas lentes não se preocupam muito em focalizar de modo penetrante e que ele retrata através dos olhos da classe que os segrega e que os enxerga preconceituosamente como um bando de ladrões e depredadores. O contraste é gigante quando o comparamos com uma obra como Ônibus 174, de José Padilha, que realiza um retrato psicológico profundo e penetrante de seu personagem principal, que não acha desperdício de tempo consagrar duas horas à compreensão do destino pessoal de um menino-de-rua, sobrevivente do massacre da Candelária, e que acaba sendo uma obra-prima do documentário nacional justamente por mostrar toda a complexidade deste ser humano relegado à invisibilidade criada pela névoa do preconceito.

Em O Som ao Redor, "o condomínio fechado é mostrado como a versão contemporânea do feudalismo, em que empregadas e porteiros são objetificados", avalia Ismail Xavier, crítico de cinema e professor da USP. Respeito muito a grande perspicácia de um dos nossos maiores "pensadores do cinema", que enxerga em O Som ao Redor toda essa riqueza semântica que, muito provavelmente, "passa batido" pelo grande público. Mas me parece exagerado fazer do filme uma "síntese do Brasil", uma "alegoria do coronelismo" ou um retrato das sobrevivências do feudalismo. Em matéria de história do Brasil, o filme de Kléber está longe de ser educativo ou esclarecedor, ainda que o prelúdio do filme, que traz fotografias antigas dos engenhos canavieiros de Pernambuco, intentem estabelecer um link entre a realidade presente e o passado colonial. O filme, me parece, passa suas duas horas sem realizar grandes investigações históricas, nem se arrisca a falar sobre o futuro; concentra-se na crônica do presente de uma classe específica, sem a mínima pretensão de realizar uma grande síntese histórica como alguns intérpretes lhe atribuem. Estes são significados que os intérpretes retiram de um filme que, talvez sem ter sonhado com todo o hype que gerou, contenta-se em retratar um triste microcosmos de classe que está muito longe de dar conta de descrever a complexidade e a multiplicidade do Brasil.

Nosso olhar, por todo o filme, fica restrito ao mundo privado: tanto o mundo público quanto o mundo natural somem de vista. A maioria dos personagens, apesar de viverem em uma cidade litorânea como o Recife, a poucos metros do mar, não o enxergam: o concreto dos muros e dos arranha-céus obstaculiza a paisagem que poderia se abrir para a imensidão. As águas só são mostradas em poucas cenas, e uma placa avisa os banhistas sobre o perigo de ataque de tubarões. Tudo em O Som ao Redor retrata a clausura do medo daqueles que se encerram no privado e não enxergam o Mundo como o descreve Hannah Arendt: aquele que adentramos ao nascer e aquele que deixaremos ao morrer, aquele que engloba todas as classes e que contêm todas as grades e todas as jaulas, o mundo público cujo eclipse o filme pinta com insistência.

Mas pintar o medo não nos dá pistas sobre como superá-lo - e nem uma sombra de transformação social, muito menos de revolução, ousa levantar a cabeça por aqui. Até a vingança é privada num microcosmos onde tudo foi reduzido à estreiteza de uma privatização  excessiva e que acarreta a ceguiera à imensidão. O Som ao Redor retrata os vários sintomas do apagamento do mundo comum e de nossa faculdade de ação sobre ele: enjaulados em bunkers de alta-tecnologia, protegidos por guardas armados que o dinheiro compra, viciados num conforto que segrega até mesmo o conhecimento da miséria alheia, estes personagens se esqueceram de que "os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." (Hannah Arendt)



Alguns curtas do diretor:

domingo, 27 de janeiro de 2013

"A Batalha do Chile" (de Patricio Guzmán); "A Doutrina do Choque" (de Michael Winterbottom, da obra de Naomi Klein); Ken Loach em curta sobre o 11 de Setembro...




“In order to stablish conditions for free-market,
 and in order to sustain free-market,
you need quite a lot of violence.”

("Para estabelecer condições de livre-mercado,
e com o fim de sustentar o livre-mercado,
é preciso um bom bocado de violência.") 


SLAVOJ ZIZEK
On Violence


O neoliberalismo, antes de ser implantado nos países capitalistas avançados, capitaneado  por Tatcher no Reino Unido, Reagan nos EUA e Deng Xiaoping na China - como exposto em minúcia no livro Neoliberalismo de David Harvey (2008) - utilizou o Chile como seu “laboratório” experimental. Salvador Allende, desde sua eleição à presidência em 1970, havia realizado transformações amplas na sociedade chilena, pavimentando o caminho para uma sociedade socialista. Suas ações iam na direção oposta ao que recomendam os cânones neoliberais: ao invés de privatizações e desregulamentações favoráveis ao livre-mercado, o governo Allende trabalhou em prol da nacionalização de empresas, minas e terras: Allende expropriou, por exemplo, 15 milhões de hectares de terras que estavam concentradas nas mãos de latifundiários e as redistribuiu [vide nota 01, no fim do texto]. Estatizou todos os bancos e retornou o controle de quase todas as fábricas ao comando dos próprios operários.

Como os cubanos, acossados pelo bloqueio yankee desde o triunfo dos revolucionários de Sierra Maestra, os chilenos também sentiram na garganta as garras do Império. Allende defendeu com punho-de-ferro a autonomia do Chile diante dos exploradores estrangeiros, em especial os EUA, que viam com muita desconfiança estas “iniciativas marxistas” que tanto se assemelhavam a muitas instauradas em Cuba após a Revolução de 1959. Os militares, o partido Democrata-Cristão e os yankees fizeram tudo para boicotar e desestabilizar o regime de Allende, que resistiu por mais de 3 anos, respaldado por um apoio popular intenso e imenso: com frequência massas que superavam 100 mil pessoas tomavam as ruas bradando a uma só voz... “Allende, Allende, el pueblo te defiende!” ou “Allende, tranquilo, o povo está contigo!”

Salvador Allende & Fidel Castro

Allende junto do poeta chileno Pablo Neruda

O Chile havia vivido 41 anos de regime democrático quando, no fatídico 11 de Setembro de 1973, o presidente democraticamente eleito Allende é assassinado, o palácio de La Moneda em Santiago é bombardeado e um golpe militar instaura a ditadura Pinochet. Como nos lembra Naomi Klein, foi determinante neste evento histórico a ação nos bastidores de Milton Friedman, “considerado o economista mais influente do último meio século” (KLEIN: 2007, p. 15), um dos papas da doutrina neoliberal:
"Milton Friedman aprendeu a explorar os choques e as crises de grande porte em meados da década de 1970, quando atuou como conselheiro do ditador chileno, o general Augusto Pinochet. Enquanto os chilenos se encontravam em estado de choque logo após o violento golpe de Estado, o país sofria o trauma de uma severa hiperinflação. Friedman aconselhou Pinochet a impor uma reforma econômica bastante rápida – corte de impostos, livre-comércio, serviços privatizados, corte nos gastos sociais e desregulamentação. (…) Ficou conhecida como 'a revolução da Escola de Chicago', pelo fato de que muitos economistas de Pinochet tinham estudado sob a orientação de Friedman na Universidade de Chicago. (…) Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque [the shock doctrine] tem sido o seu método preferido." (KLEIN, A Doutrina do Choque, p. 17)
Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, apologista da privatização, desregulação e aniquilação de sindicatos, teve participação ativa no golpe militar de 1973, como revelado por Naomi Klein em A Doutrina do Choque

Quanto mais detalhes são revelados sobre a História das ditaduras militares na América Latina, mais evidente e inegável se torna o quão ampla foi a participação dos EUA, em aliança com as elites oligárquicas nacionais, na instauração de regimes autoritários e fascistas que serviam aos interesses comerciais e financeiros da “metrópole”. No Chile, como documenta a obra de Guzmán, as Forças Armadas receberam um auxílio de 45 milhões de dólares do Pentágono, o que equivale a mais de um 1/3 de todo o capital “emprestado” pelos EUA desde a subida ao poder de Allende. Além disso, mais de 4 mil oficiais do Exército chileno foram treinados pelos Estados Unidos e este mantia mais de 40 agentes da CIA infiltrados no movimento de oposição à Allende.
           
Tal experiência de neo-liberalismo, imposto por um golpe militar dos mais brutais e violentos já perpetrados no continente, foi altamente traumática para o povo chileno e prossegue sendo uma das veias abertas da América Latina (para remeter ao clássico estudo de Eduardo Galeano). O Chile ainda se recupera da terapia de choque que lhe foi infligida por 17 anos pela ditadura Pinochet, que governou “tocando o terror” na população através das
"celas de tortura do regime, infligindo choques aos corpos retorcidos daqueles que foram considerados obstáculos à transformação capitalista. Na América Latina, muitos enxergaram uma conexão entre os choques econômicos que empobreceram milhões e a epidemia de tortura que flagelou centenas de milhares de pessoas que acreditavam num tipo diferente de sociedade". (KLEIN: 2007, p. 17).

Apoiado e financiado pela CIA e guiado pelas doutrinas econômicas de Friedman, Hayek e o resto da Escola de Chicago, a ditadura militar de Pinochet criaria campos de concentração para opositores ao regime[2], torturaria e assassinaria a torto e a direito, desencadearia encarceramentos em massa (100.000 pessoas são presas em 3 anos...), em “expurgos” e massacres destinados a varrer a esquerda do mapa.

Por 17 anos este regime responsável pelos crimes mais hediondos reinaria sobre o Chile. No entanto, longe de ser uma exceção, a situação do Chile em 1973 carrega muitas semelhanças com outras ocorrências em outros países latino-americanos, como o Brasil (o governo João Goulart é derrubado pelo golpe militar de 1964), e a Argentina, que também é sublevada por um coup d'état em 1976:
“Algumas das violações mais infames dos direitos humanos de nossa era, que tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocrátcios, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público, ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a introdução das 'reformas' radicais de livre mercado. Na Argentina da década de 70, o 'desaparecimento' de 30 mil pessoas sob o governo da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, fez parte da imposição ao país das políticas da Escola de Chicago.” (KLEIN: 2007, p. 19)

O neoliberalismo chega ao Chile sem ser convidado, arrombando a porta e instaurando o sistema de livre-mercado sem consulta à população. Rasga-se a democracia: é o fim de uma era onde o povo estava acostumado a ter sua voz ouvida, sua opinião respeitada, sua vontade concretizada, como era tão comum e constante no governo Allende, quando ocorriam “plebiscitos” frequentes. O golpe militar que instala no poder a ditadura Pinochet semeia o assassinato e a tortura ao seu redor, mantendo o povo aterrorizado com a violência: como diz Eduardo Galeano: “como essa desigualdade pode ser mantida, senão por descargas de choque elétrico?” (GALEANO: Dias e noites de amor e guerra. Porto Alegre: L&PM, 2005)

O que se escancara sobre o neo-liberalismo quando visto através de uma perspectiva latino-americana, pois, é o quão “gringo” ele é – e chilenos e cubanos o sabem melhor que ninguém.  Mas também o sabem, visceralmente, os venezuelanos que elegeram Chávez e os bolivianos que puderam pela primeira vez ser representados por um presidente de origem indígena, Evo Morales - dentre outros povos do continente que prosseguem aguerridos em sua oposição aos ditames imperialistas (vide South of the Border, de Oliver Stone).

Na Bolívia: protestos contra a privatização da água

O exemplo da Bolívia também é eloquente: em 1992, por ocasião dos 500 anos do início da Conquista da América, iria acontecer em La Paz uma “suntuosa festa de aniversário” organizada pelas autoridades branquelas. Emergindo dos indígenas, que constituem mais de metade da população do país, nasceu um protesto colossal: “várias centenas de milhares de aimarás, quíchuas, moxos e guaranís (…) vaiaram Cristóvão Colombo, derrubaram as tribunas de honra e ocuparam a capital durante quatro dias” (ZIEGLER: 2011, p. 207).

Mais de uma década depois, em 2003, o presidente Lozada, um milionário que passou boa parte de sua vida em Miami, depois de ter privatizado tudo o que tinha direito, chegou ao cúmulo de pôr em marcha a privatização da água potável. Empresas multinacionais européias como a Suez e a International Water Limited ganharam, a preço de babana, as concessões. Em sequência, “aumentaram massivamente o preço da água potável e centenas de milhares de famílias viram-se na impossibilidade de pagar a conta. Elas tiveram que se abastecer nos riachos poluídos, nos poços envenenados pelo arsênico. As mortes infantis pela 'diarreia sangrenta' aumentaram potencialmente. Manifestações públicas começaram a explodir.” (ZIEGLER: Ódio ao Ocidente, 2011, p. 208)

Confrontos com a polícia deixam dezenas de mortos, centenas de feridos. “Mas os bolivianos não se dobraram. O movimento se espalhou por todo o país. No dia 17 de outubro de 2003, cercados no palácio Quemado por uma multidão enfurecida de mais de 200 mil manifestantes, o presidente Lozada e seus comparsas mais próximos decidiram fugir do país. Destino: Miami.” (idem). Não surpreende, pois, que a Bolívia tenha se insurgido contra os políticos que são chamados de “Vende-pátria” ao elegerem Evo Morales em 2006.

A cruz em que muitos países ditos “subdesenvolvidos” estão pregados, desde que lhes foi imposto o regime neoliberal, chama-se “dívida externa” - e seus credores, instituições como o FMI e o Banco Mundial, não passam de representantes dos poderes colossais das mega-empresas e dos grandes acionistas das potências ocidentais. A Argentina sob o governo Menem, que sofreu uma das piores quebradeiras econômicas de sua história, como tão bem escancarado por Memoria Del Saqueo, documentário de Fernando Solanas, é um exemplo do que ocorre a países que acatam ordens para neo-liberalizar sua economia. A Islândia e a Grécia são outros. Provas dramáticas desta soma de corrupção política e ganância corporativa que tanto lucro retira do rastro de autoritarismo que seu sapato deixa sobre tudo aquilo que pisoteia.

Longe de fazer dueto harmônico com a democracia, pois, o neoliberalismo não raro soa como uma voz autoritária que destoa do coro legitimamente democrático que alguns povos intentam cantar. O Chile de 1973, o Iraque após a Invasão dos EUA em 2004 e New Orleans após o Furacão Katrina são, na opinião de Naomi Klein, demonstrações históricas da maneira como por vezes o neoliberalismo é imposto “por meio dos mecanismos coercitivos mais descarados: sob ocupação militar estrangeira depois da invasão, ou imediatamente após a ocorrência de um cataclismo natural devastador.” (KLEIN: p. 19)



(1) Os dados provêm da série de três documentários A Batalha do Chile, de Patricio Gúzman.
(2) O encarceramento, tortura e “desaparecimento” sistemáticos de opositores do regime recebeu registro cinematográfico eloquente em filmes como Dawson – A Ilha de Pinochet, Rua Santa Fé e Nostalgia Pela Luz.


SIGA VIAGEM...



Curta-metragem de KEN LOACH sobre o 11 de Setembro chileno:


* * * * *

A BATALHA DO CHILE
3 Documentários Completos de PATRICIO GÚZMAN... CLÁSSICOS!
Todos legendados em português.

I. A INSURREIÇÃO DA BURGUESIA



II. O GOLPE DE ESTADO


III. O PODER POPULAR


* * * * *

A DOUTRINA DO CHOQUE
Documentário de Michael Winterbottom
Baseado na obra de Naomi Klein
Completo e legendado


sábado, 26 de janeiro de 2013

CÃO SEM DONO (de Beto Brant) - Da obra de Daniel Galera, "Até o Dia em que o Cão Morreu" [download]


CÃO SEM DONO
(2007). Dirigido por Beto Brant. Roteiro por Marçal Aquino e Renato Ciasca. Da obra de Daniel Galera, "Até o Dia em que o Cão Morreu". Estrelado por Júlio Andrade (Ciro) e Tainá Müller (Marcela). Faça o download do filme completo [em torrent]: http://migre.me/cWRgm. Valeu, Filmes Brazukas!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Galeano, Ziegler e Mafalda em... "Irresponsáveis Trabalhando!"



Eduardo GALEANO e Jean ZIEGLER em...
"A ORDEM CRIMINOSA DO MUNDO"

"No estado atual da agricultura mundial, nós poderíamos alimentar 12 bilhões de pessoas sem dificuldade. Dito de outro modo: todas as crianças que morrem atualmente de fome são, na realidade, assassinadas." - JEAN ZIEGLER
  • Sinopse @ Docverdade: "Documentário exibido pela TVE espanhola, que aborda a visão de dois grandes humanistas contemporâneos sobre o mundo atual: Eduardo Galeano e Jean Ziegler. (...) A Ordem Criminal do Mundo: o cinismo assassino que a cada dia enriquece uma pequena oligarquia mundial em detrimento da miséria de cada vez mais pessoas pelo mundo. O poder se concentrando cada vez mais nas mãos de poucos, os direitos das pessoas cada vez mais restritos. As corporações controlando os governos de quase todo o planeta, dispondo também de instituições como FMI, OMC e Banco Mundial para defender seus interesses. Hoje 500 empresas detém mais de 50% do PIB Mundial, muitas delas pertencentes a um mesmo grupo." 
  • " Vivimos en un orden caníbal del mundo: cada cinco segundos muere un niño de menos de 6 años; 37.000 personas fallecen de hambre cada día y más de mil millones (casi una sexta parte de la humanidad) sufre malnutrición permanente. Y mientras tanto, las 500 mayores multinacionales controlaron el año pasado el 53% del PIB mundial. Esta oligarquía del capital financiero organizado tiene un poder como jamás lo tuvo un papa, un rey o un emperador." - Ziegler

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles [2005]

[ download (torrent) ]

"Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral."  
JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em "O Paradoxo da Moral" (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

I.

O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle... Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia... que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância...”, p. 21). E “as montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal... só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)?

O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).




É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência...” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Fernando Meirelles

II.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador - e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este "ponto de vista de Terceiro Mundo" que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante - e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental... E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar... Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população...), que escondem interesses e atos repugnantes. A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem... o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. "Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito", ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas - cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas! - na eventualidade de uma grande epidemia global. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, que uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem com as políticas das empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres... Que formidável ferramenta de "limpeza étnica" não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo, só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica... É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn't be so sure. Gosto que "O Jardineiro Fiel"  seja uma "escola da suspeita" e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won't get fooled...

* * * * *

III.

Há razões bem mais "pessoais" que explicam porque este filme de Meirelles me é tão querido. Ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia. Um filme que ousaria chamar até mesmo de "sábio", por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Pois leio nele, latentes, estas mensagens: que um excesso de prudência não nos impeça de ter coragem. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades - armadas até os dentes! - que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados... Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, daindignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência! É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, formigas bradando contra elefantes, pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” ["Não há refúgio contra a mudança no universo"], diz Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto… Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas...


Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não o tenham sequer percebido. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa... e que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto, implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de um herói sem deus! Um herói que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade... Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair na estrada da alteridade como ela, ousar este mergulho na realidade? Inclusive na mais dura, na mais amarga, da mais letal das realidades.

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme. Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: e tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante... Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neo-liberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, outro nome para o velho capitalismo selvagem, ele que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações trans-nacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis... são criminosos

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou ou porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com tudo o que faz com que o nosso planeta tanto padeça e que tanta mortes e tantas dores desnecessárias ainda nele imperem?...