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domingo, 27 de janeiro de 2013

"A Batalha do Chile" (de Patricio Guzmán); "A Doutrina do Choque" (de Michael Winterbottom, da obra de Naomi Klein); Ken Loach em curta sobre o 11 de Setembro...




“In order to stablish conditions for free-market,
 and in order to sustain free-market,
you need quite a lot of violence.”

("Para estabelecer condições de livre-mercado,
e com o fim de sustentar o livre-mercado,
é preciso um bom bocado de violência.") 


SLAVOJ ZIZEK
On Violence


O neoliberalismo, antes de ser implantado nos países capitalistas avançados, capitaneado  por Tatcher no Reino Unido, Reagan nos EUA e Deng Xiaoping na China - como exposto em minúcia no livro Neoliberalismo de David Harvey (2008) - utilizou o Chile como seu “laboratório” experimental. Salvador Allende, desde sua eleição à presidência em 1970, havia realizado transformações amplas na sociedade chilena, pavimentando o caminho para uma sociedade socialista. Suas ações iam na direção oposta ao que recomendam os cânones neoliberais: ao invés de privatizações e desregulamentações favoráveis ao livre-mercado, o governo Allende trabalhou em prol da nacionalização de empresas, minas e terras: Allende expropriou, por exemplo, 15 milhões de hectares de terras que estavam concentradas nas mãos de latifundiários e as redistribuiu [vide nota 01, no fim do texto]. Estatizou todos os bancos e retornou o controle de quase todas as fábricas ao comando dos próprios operários.

Como os cubanos, acossados pelo bloqueio yankee desde o triunfo dos revolucionários de Sierra Maestra, os chilenos também sentiram na garganta as garras do Império. Allende defendeu com punho-de-ferro a autonomia do Chile diante dos exploradores estrangeiros, em especial os EUA, que viam com muita desconfiança estas “iniciativas marxistas” que tanto se assemelhavam a muitas instauradas em Cuba após a Revolução de 1959. Os militares, o partido Democrata-Cristão e os yankees fizeram tudo para boicotar e desestabilizar o regime de Allende, que resistiu por mais de 3 anos, respaldado por um apoio popular intenso e imenso: com frequência massas que superavam 100 mil pessoas tomavam as ruas bradando a uma só voz... “Allende, Allende, el pueblo te defiende!” ou “Allende, tranquilo, o povo está contigo!”

Salvador Allende & Fidel Castro

Allende junto do poeta chileno Pablo Neruda

O Chile havia vivido 41 anos de regime democrático quando, no fatídico 11 de Setembro de 1973, o presidente democraticamente eleito Allende é assassinado, o palácio de La Moneda em Santiago é bombardeado e um golpe militar instaura a ditadura Pinochet. Como nos lembra Naomi Klein, foi determinante neste evento histórico a ação nos bastidores de Milton Friedman, “considerado o economista mais influente do último meio século” (KLEIN: 2007, p. 15), um dos papas da doutrina neoliberal:
"Milton Friedman aprendeu a explorar os choques e as crises de grande porte em meados da década de 1970, quando atuou como conselheiro do ditador chileno, o general Augusto Pinochet. Enquanto os chilenos se encontravam em estado de choque logo após o violento golpe de Estado, o país sofria o trauma de uma severa hiperinflação. Friedman aconselhou Pinochet a impor uma reforma econômica bastante rápida – corte de impostos, livre-comércio, serviços privatizados, corte nos gastos sociais e desregulamentação. (…) Ficou conhecida como 'a revolução da Escola de Chicago', pelo fato de que muitos economistas de Pinochet tinham estudado sob a orientação de Friedman na Universidade de Chicago. (…) Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque [the shock doctrine] tem sido o seu método preferido." (KLEIN, A Doutrina do Choque, p. 17)
Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, apologista da privatização, desregulação e aniquilação de sindicatos, teve participação ativa no golpe militar de 1973, como revelado por Naomi Klein em A Doutrina do Choque

Quanto mais detalhes são revelados sobre a História das ditaduras militares na América Latina, mais evidente e inegável se torna o quão ampla foi a participação dos EUA, em aliança com as elites oligárquicas nacionais, na instauração de regimes autoritários e fascistas que serviam aos interesses comerciais e financeiros da “metrópole”. No Chile, como documenta a obra de Guzmán, as Forças Armadas receberam um auxílio de 45 milhões de dólares do Pentágono, o que equivale a mais de um 1/3 de todo o capital “emprestado” pelos EUA desde a subida ao poder de Allende. Além disso, mais de 4 mil oficiais do Exército chileno foram treinados pelos Estados Unidos e este mantia mais de 40 agentes da CIA infiltrados no movimento de oposição à Allende.
           
Tal experiência de neo-liberalismo, imposto por um golpe militar dos mais brutais e violentos já perpetrados no continente, foi altamente traumática para o povo chileno e prossegue sendo uma das veias abertas da América Latina (para remeter ao clássico estudo de Eduardo Galeano). O Chile ainda se recupera da terapia de choque que lhe foi infligida por 17 anos pela ditadura Pinochet, que governou “tocando o terror” na população através das
"celas de tortura do regime, infligindo choques aos corpos retorcidos daqueles que foram considerados obstáculos à transformação capitalista. Na América Latina, muitos enxergaram uma conexão entre os choques econômicos que empobreceram milhões e a epidemia de tortura que flagelou centenas de milhares de pessoas que acreditavam num tipo diferente de sociedade". (KLEIN: 2007, p. 17).

Apoiado e financiado pela CIA e guiado pelas doutrinas econômicas de Friedman, Hayek e o resto da Escola de Chicago, a ditadura militar de Pinochet criaria campos de concentração para opositores ao regime[2], torturaria e assassinaria a torto e a direito, desencadearia encarceramentos em massa (100.000 pessoas são presas em 3 anos...), em “expurgos” e massacres destinados a varrer a esquerda do mapa.

Por 17 anos este regime responsável pelos crimes mais hediondos reinaria sobre o Chile. No entanto, longe de ser uma exceção, a situação do Chile em 1973 carrega muitas semelhanças com outras ocorrências em outros países latino-americanos, como o Brasil (o governo João Goulart é derrubado pelo golpe militar de 1964), e a Argentina, que também é sublevada por um coup d'état em 1976:
“Algumas das violações mais infames dos direitos humanos de nossa era, que tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocrátcios, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público, ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a introdução das 'reformas' radicais de livre mercado. Na Argentina da década de 70, o 'desaparecimento' de 30 mil pessoas sob o governo da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, fez parte da imposição ao país das políticas da Escola de Chicago.” (KLEIN: 2007, p. 19)

O neoliberalismo chega ao Chile sem ser convidado, arrombando a porta e instaurando o sistema de livre-mercado sem consulta à população. Rasga-se a democracia: é o fim de uma era onde o povo estava acostumado a ter sua voz ouvida, sua opinião respeitada, sua vontade concretizada, como era tão comum e constante no governo Allende, quando ocorriam “plebiscitos” frequentes. O golpe militar que instala no poder a ditadura Pinochet semeia o assassinato e a tortura ao seu redor, mantendo o povo aterrorizado com a violência: como diz Eduardo Galeano: “como essa desigualdade pode ser mantida, senão por descargas de choque elétrico?” (GALEANO: Dias e noites de amor e guerra. Porto Alegre: L&PM, 2005)

O que se escancara sobre o neo-liberalismo quando visto através de uma perspectiva latino-americana, pois, é o quão “gringo” ele é – e chilenos e cubanos o sabem melhor que ninguém.  Mas também o sabem, visceralmente, os venezuelanos que elegeram Chávez e os bolivianos que puderam pela primeira vez ser representados por um presidente de origem indígena, Evo Morales - dentre outros povos do continente que prosseguem aguerridos em sua oposição aos ditames imperialistas (vide South of the Border, de Oliver Stone).

Na Bolívia: protestos contra a privatização da água

O exemplo da Bolívia também é eloquente: em 1992, por ocasião dos 500 anos do início da Conquista da América, iria acontecer em La Paz uma “suntuosa festa de aniversário” organizada pelas autoridades branquelas. Emergindo dos indígenas, que constituem mais de metade da população do país, nasceu um protesto colossal: “várias centenas de milhares de aimarás, quíchuas, moxos e guaranís (…) vaiaram Cristóvão Colombo, derrubaram as tribunas de honra e ocuparam a capital durante quatro dias” (ZIEGLER: 2011, p. 207).

Mais de uma década depois, em 2003, o presidente Lozada, um milionário que passou boa parte de sua vida em Miami, depois de ter privatizado tudo o que tinha direito, chegou ao cúmulo de pôr em marcha a privatização da água potável. Empresas multinacionais européias como a Suez e a International Water Limited ganharam, a preço de babana, as concessões. Em sequência, “aumentaram massivamente o preço da água potável e centenas de milhares de famílias viram-se na impossibilidade de pagar a conta. Elas tiveram que se abastecer nos riachos poluídos, nos poços envenenados pelo arsênico. As mortes infantis pela 'diarreia sangrenta' aumentaram potencialmente. Manifestações públicas começaram a explodir.” (ZIEGLER: Ódio ao Ocidente, 2011, p. 208)

Confrontos com a polícia deixam dezenas de mortos, centenas de feridos. “Mas os bolivianos não se dobraram. O movimento se espalhou por todo o país. No dia 17 de outubro de 2003, cercados no palácio Quemado por uma multidão enfurecida de mais de 200 mil manifestantes, o presidente Lozada e seus comparsas mais próximos decidiram fugir do país. Destino: Miami.” (idem). Não surpreende, pois, que a Bolívia tenha se insurgido contra os políticos que são chamados de “Vende-pátria” ao elegerem Evo Morales em 2006.

A cruz em que muitos países ditos “subdesenvolvidos” estão pregados, desde que lhes foi imposto o regime neoliberal, chama-se “dívida externa” - e seus credores, instituições como o FMI e o Banco Mundial, não passam de representantes dos poderes colossais das mega-empresas e dos grandes acionistas das potências ocidentais. A Argentina sob o governo Menem, que sofreu uma das piores quebradeiras econômicas de sua história, como tão bem escancarado por Memoria Del Saqueo, documentário de Fernando Solanas, é um exemplo do que ocorre a países que acatam ordens para neo-liberalizar sua economia. A Islândia e a Grécia são outros. Provas dramáticas desta soma de corrupção política e ganância corporativa que tanto lucro retira do rastro de autoritarismo que seu sapato deixa sobre tudo aquilo que pisoteia.

Longe de fazer dueto harmônico com a democracia, pois, o neoliberalismo não raro soa como uma voz autoritária que destoa do coro legitimamente democrático que alguns povos intentam cantar. O Chile de 1973, o Iraque após a Invasão dos EUA em 2004 e New Orleans após o Furacão Katrina são, na opinião de Naomi Klein, demonstrações históricas da maneira como por vezes o neoliberalismo é imposto “por meio dos mecanismos coercitivos mais descarados: sob ocupação militar estrangeira depois da invasão, ou imediatamente após a ocorrência de um cataclismo natural devastador.” (KLEIN: p. 19)



(1) Os dados provêm da série de três documentários A Batalha do Chile, de Patricio Gúzman.
(2) O encarceramento, tortura e “desaparecimento” sistemáticos de opositores do regime recebeu registro cinematográfico eloquente em filmes como Dawson – A Ilha de Pinochet, Rua Santa Fé e Nostalgia Pela Luz.


SIGA VIAGEM...



Curta-metragem de KEN LOACH sobre o 11 de Setembro chileno:


* * * * *

A BATALHA DO CHILE
3 Documentários Completos de PATRICIO GÚZMAN... CLÁSSICOS!
Todos legendados em português.

I. A INSURREIÇÃO DA BURGUESIA



II. O GOLPE DE ESTADO


III. O PODER POPULAR


* * * * *

A DOUTRINA DO CHOQUE
Documentário de Michael Winterbottom
Baseado na obra de Naomi Klein
Completo e legendado


sábado, 26 de janeiro de 2013

CÃO SEM DONO (de Beto Brant) - Da obra de Daniel Galera, "Até o Dia em que o Cão Morreu" [download]


CÃO SEM DONO
(2007). Dirigido por Beto Brant. Roteiro por Marçal Aquino e Renato Ciasca. Da obra de Daniel Galera, "Até o Dia em que o Cão Morreu". Estrelado por Júlio Andrade (Ciro) e Tainá Müller (Marcela). Faça o download do filme completo [em torrent]: http://migre.me/cWRgm. Valeu, Filmes Brazukas!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Galeano, Ziegler e Mafalda em... "Irresponsáveis Trabalhando!"



Eduardo GALEANO e Jean ZIEGLER em...
"A ORDEM CRIMINOSA DO MUNDO"

"No estado atual da agricultura mundial, nós poderíamos alimentar 12 bilhões de pessoas sem dificuldade. Dito de outro modo: todas as crianças que morrem atualmente de fome são, na realidade, assassinadas." - JEAN ZIEGLER
  • Sinopse @ Docverdade: "Documentário exibido pela TVE espanhola, que aborda a visão de dois grandes humanistas contemporâneos sobre o mundo atual: Eduardo Galeano e Jean Ziegler. (...) A Ordem Criminal do Mundo: o cinismo assassino que a cada dia enriquece uma pequena oligarquia mundial em detrimento da miséria de cada vez mais pessoas pelo mundo. O poder se concentrando cada vez mais nas mãos de poucos, os direitos das pessoas cada vez mais restritos. As corporações controlando os governos de quase todo o planeta, dispondo também de instituições como FMI, OMC e Banco Mundial para defender seus interesses. Hoje 500 empresas detém mais de 50% do PIB Mundial, muitas delas pertencentes a um mesmo grupo." 
  • " Vivimos en un orden caníbal del mundo: cada cinco segundos muere un niño de menos de 6 años; 37.000 personas fallecen de hambre cada día y más de mil millones (casi una sexta parte de la humanidad) sufre malnutrición permanente. Y mientras tanto, las 500 mayores multinacionales controlaron el año pasado el 53% del PIB mundial. Esta oligarquía del capital financiero organizado tiene un poder como jamás lo tuvo un papa, un rey o un emperador." - Ziegler

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles [2005]

[ download (torrent) ]

"Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral."  
JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em "O Paradoxo da Moral" (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

I.

O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle... Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia... que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância...”, p. 21). E “as montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal... só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)?

O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).




É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência...” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Fernando Meirelles

II.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador - e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este "ponto de vista de Terceiro Mundo" que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante - e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental... E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar... Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população...), que escondem interesses e atos repugnantes. A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem... o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. "Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito", ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas - cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas! - na eventualidade de uma grande epidemia global. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, que uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem com as políticas das empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres... Que formidável ferramenta de "limpeza étnica" não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo, só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica... É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn't be so sure. Gosto que "O Jardineiro Fiel"  seja uma "escola da suspeita" e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won't get fooled...

* * * * *

III.

Há razões bem mais "pessoais" que explicam porque este filme de Meirelles me é tão querido. Ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia. Um filme que ousaria chamar até mesmo de "sábio", por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Pois leio nele, latentes, estas mensagens: que um excesso de prudência não nos impeça de ter coragem. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades - armadas até os dentes! - que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados... Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, daindignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência! É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, formigas bradando contra elefantes, pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” ["Não há refúgio contra a mudança no universo"], diz Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto… Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas...


Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não o tenham sequer percebido. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa... e que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto, implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de um herói sem deus! Um herói que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade... Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair na estrada da alteridade como ela, ousar este mergulho na realidade? Inclusive na mais dura, na mais amarga, da mais letal das realidades.

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme. Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: e tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante... Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neo-liberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, outro nome para o velho capitalismo selvagem, ele que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações trans-nacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis... são criminosos

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou ou porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com tudo o que faz com que o nosso planeta tanto padeça e que tanta mortes e tantas dores desnecessárias ainda nele imperem?...

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Tropicália (de Marcelo Machado, 2012, 89min)



"O Tropicalismo foi um movimento de ruptura que sacudiu o ambiente da música popular e da cultura brasileira entre 1967 e 1968. Seus participantes formaram um grande coletivo, cujos destaques foram os cantores-compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, além das participações da cantora Gal Costa e do cantor-compositor Tom Zé, da banda Mutantes, e do maestro Rogério Duprat. A cantora Nara Leão e os letristas José Carlos Capinan e Torquato Neto completaram o grupo, que teve também o artista gráfico, compositor e poeta Rogério Duarte como um de seus principais mentores intelectuais. 
Os tropicalistas deram um histórico passo à frente no meio musical brasileiro. A música brasileira pós-Bossa Nova e a definição da “qualidade musical” no País estavam cada vez mais dominadas pelas posições tradicionais ou nacionalistas de movimentos ligados à esquerda. Contra essas tendências, o grupo baiano e seus colaboradores procuram universalizar a linguagem da MPB, incorporando elementos da cultura jovem mundial, como o rock, a psicodelia e a guitarra elétrica. 
Ao mesmo tempo, sintonizaram a eletricidade com as informações da vanguarda erudita por meio dos inovadores arranjos de maestros como Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela. Ao unir o popular, o pop e o experimentalismo estético, as idéias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música, mas da própria cultura nacional. 
Clássico estudo de Favaretto
Seguindo a melhor das tradições dos grandes compositores da Bossa Nova e incorporando novas informações e referências de seu tempo, o Tropicalismo renovou radicalmente a letra de música. Letristas e poetas, Torquato Neto e Capinan compuseram com Gilberto Gil e Caetano Veloso trabalhos cuja complexidade e qualidade foram marcantes para diferentes gerações. Os diálogos com obras literárias como as de Oswald de Andrade ou dos poetas concretistas elevaram algumas composições tropicalistas ao status de poesia. Suas canções compunham um quadro crítico e complexo do País – uma conjunção do Brasil arcaico e suas tradições, do Brasil moderno e sua cultura de massa e até de um Brasil futurista, com astronautas e discos voadores. Elas sofisticaram o repertório de nossa música popular, instaurando em discos comerciais procedimentos e questões até então associados apenas ao campo das vanguardas conceituais. 
Sincrético e inovador, aberto e incorporador, o Tropicalismo misturou rock mais bossa nova, mais samba, mais rumba, mais bolero, mais baião. Sua atuação quebrou as rígidas barreiras que permaneciam no País. Pop x folclore. Alta cultura x cultura de massas. Tradição x vanguarda. Essa ruptura estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que assumiu atitudes experimentais para a época. 
Discos antológicos foram produzidos, como a obra coletiva Tropicália ou Panis et Circensis e os primeiros discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Enquanto Caetano entra em estúdio ao lado dos maestros Júlio Medaglia e Damiano Cozzela, Gil grava seu disco com os arranjos de Rogério Duprat e da banda os Mutantes. Nesses discos, se registrariam vários clássicos, como as canções-manifesto “Tropicália” (Caetano) e “Geléia Geral” (Gil e Torquato). A televisão foi outro meio fundamental de atuação do grupo – principalmente os festivais de música popular da época. A eclosão do movimento deu-se com as ruidosas apresentações, em arranjos eletrificados, da marcha “Alegria, alegria”, de Caetano, e da cantiga de capoeira “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, no III Festival de MPB da TV Record, em 1967. 
Irreverente, a Tropicália transformou os critérios de gosto vigentes, não só quanto à música e à política, mas também à moral e ao comportamento, ao corpo, ao sexo e ao vestuário. A contracultura hippie foi assimilada, com a adoção da moda dos cabelos longos encaracolados e das roupas escandalosamente coloridas. 
O movimento, libertário por excelência, durou pouco mais de um ano e acabou reprimido pelo governo militar. Seu fim começou com a prisão de Gil e Caetano, em dezembro de 1968. A cultura do País, porém, já estava marcada para sempre pela descoberta da modernidade e dos trópicos." (Via Tropicalia.com.br)

Febre do Rato (de Cláudio Assis, 2012)

FEBRE DO RATO 
de Cláudio Assis

Download do filme completo:

Crítica por Marcelo Hessel @ Omelete

O Mangue Bit (ou Mangue Beat) faz 20 anos em 2012, se tomarmos o manifesto “Caranguejos com Cérebro” como seu ponto de partida, e não é só a trilha sonora de Jorge Du Peixe, líder da Nação Zumbi, que faz lembrar do movimento quando se assiste a Febre do Rato. Um dos versos mais conhecidos de Chico Science ecoa ao longo do filme de Cláudio Assis: “Que eu me organizando posso desorganizar”.

Recife é um mundo em desarranjo, sugere a narração em off inicial, e temos que aceitar isso como fato consumado para entrar no filme: estamos sobre um barco no meio do Rio Capibaribe e tudo o que nos é dado a ver da cidade são as palafitas na margem, os edifícios a média distância e o trânsito sobre as pontes. Não há pessoas, só fantasmas de uma ordem mal estabelecida, como os rostos num outdoor reutilizado como parede de barraco.

Dá pra antever, então, antes mesmo do primeiro nu frontal em cena, que Febre do Rato parte dos corpos para propor uma nova organização. Irandhir Santos (o deputado de Tropa de Elite 2) transita sem camisa e com calça a meio mastro por galpões, jardins e bares no papel de Zizo, um poeta que edita e imprime em casa o jornal-manifesto “Febre do Rato”. Quando não está discursando contra a desigualdade, Zizo escreve poemas para os amigos e come as mulheres de idade da vizinhança, tudo pelo social.

Descobrimos que Zizo não é só um tipo de xavecos e fodas solidárias quando ele se apaixona por Eneida (Nanda Costa), menina de bons estudos que resiste aos avanços do poeta. Assim como Eneias, o troiano do épico Eneida de Virgílio, que parte ao mar depois da destruição de Troia para procurar um lugar onde possa construir uma nova cidade, a perdição de Zizo, a destruição de seu orgulho, o motiva a construir uma nova ordem, acometida pela febre do rato, que tem o corpo como unidade de medida.

Cláudio Assis filma as transas e os movimentos dos corpos nus por cima, como se estivesse com Febre do Rato elaborando um guia de ruas - é a política dos corpos como uma questão de cartografia. Quando troca essa perspectiva radicalmente vertical pela horizontalidade, as relações “subversivas” do filme (o homem e o travesti, o homem e a velha, o homem e a estudante) acontecem diante da paisagem aberta, como se fosse uma sobreposição de camadas, o espaço público tornado íntimo. A cena da mijada é um ótimo exemplo disso: Zizo e Eneida no barco parecem alheios à festa junina rolando no plano do fundo, mas na sobreposição de camadas tudo se torna uma coisa só.

A provocação, a suruba, o pixo na parede, o corpo dividido em pedaços de xerox, tudo isso desorganiza para reorganizar. Obviamente, há uma ordem estabelecida que não se deixa substituir sem reagir. Até aqui, Febre do Rato se desenrolou no paralelo, numa espécie de paracidade (os barracos, os butecos, a praia, o rio sob a ponte), e é no clímax do filme que a Cidade se revela pela primeira vez, sua brutalidade sintetizada pela parada militar de 7 de Setembro pelas ruas do Recife Antigo. Não vou contar aqui o que acontece depois.

A questão é que não importa se o cenário é Recife, ou São Paulo, ou Porto Alegre. Há um estado de coisas inviável nas nossas metrópoles, pedindo para se reorganizar, e quem acha que nudez no cinema brasileiro é sinônimo de baixaria infelizmente não vai perceber que Febre do Rato toma uma posição política atual em nome da coletividade.

O cartaz de Amarelo Manga, o primeiro longa de Cláudio Assis, dizia em tom sensacionalista que “o ser humano é estômago e sexo”. Em Febre do Rato, o terceiro e melhor filme do diretor, o ser humano é estômago, sexo e algo mais.




Agradecimentos ao blog

Matéria + Entrevista @ Revista CULT:

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Dawson - A Ilha Secreta de Pinochet (de Miguel Littin, Chile, 2011)



"Podrán cortar todas las flores, 
pero no podrán detener la primavera." 

PABLO NERUDA,
poeta chileno
(1904-1973)



"Quem não conhece a História está condenado a repeti-la", fala-se muito por aí. Encarar os horrores do passado, aprender com as feridas dos que nos precederam, é essencial para que a marcha dos negócios humanos, ao invés de estagnar na compulsiva repetição de antigos modelos, siga adiante por novas vias, quiçá menos enlameadas e sangrentas.

Mas o fato de um filme ser histórico não basta para que o consideremos repleto de edificantes ensinamentos: os ditadores e tiranos também escrevem suas versões da História. E, como bem sabe qualquer benjaminiano, a História Oficial é usualmente escrita pelos vencedores e não pelos oprimidos; pelos que conquistaram e retiveram o poder, e não por aqueles que foram esmagados debaixo dos sapatos e dos tanques dos opressores.

Apesar do esforço em narrar um capítulo inglório da História chilena a partir da perspectiva dos "vencidos", ou seja, os políticos pró-Allende que, após o Golpe de 11 de Setembro de 1973, são encarcerados na Ilha Dawson, o filme de Miguel Littin me parece insatisfatório em vários quesitos.

É verdade que retrata o levante militar como irrupção da força bruta que rasga sem dó o tecido das conquistas democráticas. Mas não se aprofunda nos bastidores do evento, sem frisar com mais força, p. ex., a participação yankee neste (e em tantos outros!) golpes latino-americanos. 

Leitores de Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Naomi Klein, Frei Betto e da revista Caros Amigos, entre outros, podem até estarem cansados de saber que os Estados Unidos apoiou grande parte das "revoluções" anti-democráticas (leia-se golpes de Estado militares) na América Latina, inclusive no Brasil e na Argentina. Mas repeti-lo nunca é demais, ainda mais quando consideramos que ainda estamos sob o jugo incômodo do Império norte-americano e seu séquito interminável de crimes - do Vietnã a Abu Ghraib, de Hiroxima & Nagasaki à Guantánamo Bay... - e que é bem importante que não o esqueçamos jamais: quem já financiou ditaduras uma vez deve virar alvo permanente de nossa saudável suspeita. Para que jamais repitam este gesto grotesco.

Apesar de descrever os militares como uns "caçadores de comunistas", engajados na tarefa de extirpar o "vírus" do marxismo, o filme não consegue inserir aquela Ilha num contexto mais amplo e mais global, que incluísse as tensões da Guerra Fria - de um lado, o imperialismo capitalista que matava a rodo na Indochina; de outro, os destroços da Utopia Comunista depois da revelação de todos os horrores do stalinismo. Em 1973, não é fácil escolher entre EUA e URSS, considerando-se o Vietnã e as gulags, Nixon e a herança maldita de Stalin...

Outro elemento que me desgostou no filme é que os ministros e outros aliados de Allende, encarcerados no campo de concentração da Ilha Dawson, em momento algum esboçam um gesto sequer de revolta, de insubmissão, de tentativa de virada-de-mesa. Assisti-lo é tão desanimador justamente por um certo fatalismo quietista que parece ser retratado nestes presos que jamais lançam um olhar mais desafiador contra a botina do tirano, que jamais bolam um plano de fuga mais audacioso, que nem mesmo são retratados como homens em busca de uma solidariedade de compañeros em meio ao horror que lhes é infligido. Terá sido fiel aos fatos históricos ao mostrar prisioneiros tão obedientes aos odiados rottweillers de Pinochet?

"A man can't ride your back unless it's bent", dizia Martin Luther King Jr. Mas é bem verdade que não é fácil ser rebelde sob a mira de uma espingarda. Quando o poderio militar mostra seus dentes, quando a força não se envergonha de se manifestar em toda sua truculência, a rebeldia às vezes se intimida pois sabe que seus arroubos são passíveis de uma punição fatal. "Rebele-se e irás direto para o pelotão de fuzilamento!" "Ouse desobedecer, e faremos com que este seja o seu derradeiro ato de desobediência e que torne-se absolutamente impossível a desobediência para o cadáver em que te transformaremos!"

Ainda assim, a História registra notáveis situações de Insurreição desesperada, em que o levante é levado a cabo por homens que tem plena noção da remotíssima possibilidade de sucesso e da probabilidade imensa de uma morte brutal, e ainda assim... se erguem em revolta. Alguns preferem morrer uma morte violenta em arroubos de indignação guerreira a quedar quietinhos como ovelhas de rebanho que aguardam ser salvas por poderes divinos. É o caso do Gueto de Varsóvia, na Polônia, que levanta-se em 1943 contra o extermínio ordenado pelo III Reich, como relatado no excelente livro de Tzvetan Todorov, Em Face do Extremo. 

Há algo de suspeito na resignação demasiado estóica destes presos chilenos a seu destino pra lá de inglório. Este estoicismo exagerado talvez se explique pelo seguinte: ali estavam encarcerados homens importantes na política chilena nos tempos de Allende, que ocupavam cargos de muita importância em vários Ministérios do presidente assassinado; estão longe de serem pés-rapados. Por isso, a violência que é infligida a eles é comparativamente suave em relação às torturas e surras impostas a militantes políticos menos establishment, por assim dizer, como tantos guerrilheiros e ativistas mais de rua, da passeata e da barricada, do confronto com a tropa de choque e dos hematomas causados por cassetetes. Na Ilha Dawson está a elite do Estado deposto - e não é tão fácil para a Ditadura Pinochet assassinar políticos quanto é matar ("desaparecer") aqueles que são costumeiramente tratados pelos próprios políticos como ralé.

O filme pode até descrever com um grau bastante convincente de verossimilhança todas as táticas de despersonalização impostas aos prisioneiros e que ecoam procedimentos das Auschwitz e Büchenwalds do passado. Aliás, este é um dos poucos filmes chilenos cujo visual é tão desolador e gélido, e a severidade do clima descrita tão rigorosamente, que ficamos com a impressão de que poderia ter sido filmado na Polônia ou na Sibéria.  Homens perdem seus nomes e tornam-se números; perdem o direito à expressão artística e política: desenhos são apreendidos, lápis são confiscados; a correspondência é limitadíssima e sofre censura, e por vezes é queimada, sem a mínima consideração por seu valor afetivo; enfim: dúzias de formas de violência emocional, psíquica, física procuram reduzir homens a objetos, humilhados e vergados.

Exigir que o filme possuísse uma quantidade maior de violência explícita pode parecer um desejo um tanto sádico de espectadores que, acostumados à escola de Tarantino, Chan-Wook Park e Gaspar Noé, querem o sangue jorrando nas câmeras a fim de que se deleitem em estranhas orgias de piedade, indignação e gozo... Não: não acho que o defeito de Dawson seja violência em escassez ou uma representação insuficiente dos horrores infligidos pelos militares. Seria de fato mais reconfortante para o espectador se o filme tivesse apostado numa maniqueização simplista do problema, mostrando os pinochetitas como diabólicos, malévolos e sem-coração e os "allendistas" como as pobres vítimas da tirania. Mas o filme se recusa a este simplismo de confortar esquerdista dogmático: nem todo militar é um demônio encarnado e muitos deles são capazes de oferecer uma laranja ao esfomeado, dividir uns grãos com os que precisam, compartilhar uma risada com uma boa piada.

No debate posterior à sessão, com a presença do prefeito de Goiânia Paulo Garcia, um rapaz comentou que era "um erro do filme tentar representar a humanidade daqueles facínoras". Mas me pergunto se realmente ganharíamos muito se fossem demonizados diante de nossos olhos os tais dos "facínoras": se acho suspeitas e frequentemente mentirosas as idealizações que distorcem pra cima, também não gosto das que distorcem pra baixo. O céu e o inferno foram inventados juntos, e ninguém depende mais do Inferno que as religiões que o inventaram. Céu e Inferno são invenções que conduzem as pessoas a racharem a realidade em apenas dois princípios antagônicos, acarretando assim uma radical depreciação da complexidade do Real - e creio que ainda estamos longe de estar curados desta ancestral mania de procurar compreender o mundo sempre dividindo-o entre mocinhos e vilões, Jesus e Satanás, o Lado Negro da Força e o Lado "Luke Skywalker"... Simplismo de criaturas que querem se sentir "do lado do Bem", mas cuja procura desta identidade de narcísica auto-satisfação costuma passar sempre pela diabolização do que é diferente: se sou "bom", o que difere de mim não tem opção a não ser... do Mal!

O mais preocupante é perceber o quanto este fenômeno é atual: ainda ecoa em nossas orelhas vermelhas a retórica do ex-presidente americano George W. Bush, que em nome de Deus e da Liberdade empreendeu sua célebre Guerra ao Terror, invadindo Afeganistão e Iraque no intuito de aniquilar os regimes tidos como demoníacos dos adoradores de Alá.

Estas empreitadas estadunidenses no Oriente Médio decerto têm um componente econômico importantíssimo - o interesse americano no petróleo abundante da região e a elefantíase da indústria bélica sendo fatores explicativos cruciais - mas na base das "justificações morais" utilizados pelo Império está um discurso profundamente maniqueísta, eivado de fundamentalismo, dogmático ao extremo. Em resumo, Bush e seus asseclas se auto-canonizam como "os Bons e os Justos", os seguidores do deus certo, em louvável cruzada contra estes "selvagens" que crêem em divindades ridículas. Trata-se da velha conversinha furada: o meu deus é fantástico, maravilhoso, divino, genial; já o seu deusinho é um canalha, um falso ídolo, um demônio travestido com o véu de Maia de uma pseudo-divindade. A minha fé é a verdadeira religião; a fé do outro é idolatria e superstição. Quantos massacres não emergiram deste maniqueísmo grotesco! Razão suficiente para que tenhamos o máximo de precaução contra estas reduções simplistas a um combate entre criaturas angelicais e chifrudos luciferinos.

Mesmo com todos os seus defeitos e insuficiências, o filme de Miguel Littín vale a pena ser assistido, discutido e disseminado: é um retrato de um dos regimes políticos mais sanguinários que chegaram ao poder na América Latina da época das ditaduras, quase todas elas financiadas pela CIA e favoráveis aos programas neoliberais de Milton Friedman e da Escola de Chicago - como foi tão bem escancarado pelo Doutrina do Choque de Naomi Klein. Dawson - A Ilha de Pinochet, é mais um salutar lembrete de que o capitalismo em sua faceta mais recente, neoliberal e tecnocrática, adora mancomunar-se com regimes ditatoriais que fazem uso de táticas totalitárias e fascitóides - incluindo censura, tortura e genocídio - com o fim de consolidar as maravilhas radiosas do livre mercado. Dawson é o retrato desolador da tirania militar de Pinochet triunfando sobre a resistência com toda a truculência selvagem de um mamute inescrupuloso; é, por isso, um filme que deprime e traz pra baixo. O triunfo sobre estes horrores será retratado em outra película: "No", de Pablo Terraín, o candidato chileno ao Oscar de 2013, filme vibrante e cheio de ardor que descreve o modo como o Chile enfim varreu do mapa, no Plebiscito de 1988, a ditadura que matou e torturou à rodo (e com muita grana de Washington!) desde o 11 de Setembro de 1973. 

Dawson mostra o governo Pinochet estraçalhando todas as rosas. No grita em resposta, em uníssono com Neruda, que os tiranos jamais hão de deter a primavera.