Páginas

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Dawson - A Ilha Secreta de Pinochet (de Miguel Littin, Chile, 2011)



"Podrán cortar todas las flores, 
pero no podrán detener la primavera." 

PABLO NERUDA,
poeta chileno
(1904-1973)



"Quem não conhece a História está condenado a repeti-la", fala-se muito por aí. Encarar os horrores do passado, aprender com as feridas dos que nos precederam, é essencial para que a marcha dos negócios humanos, ao invés de estagnar na compulsiva repetição de antigos modelos, siga adiante por novas vias, quiçá menos enlameadas e sangrentas.

Mas o fato de um filme ser histórico não basta para que o consideremos repleto de edificantes ensinamentos: os ditadores e tiranos também escrevem suas versões da História. E, como bem sabe qualquer benjaminiano, a História Oficial é usualmente escrita pelos vencedores e não pelos oprimidos; pelos que conquistaram e retiveram o poder, e não por aqueles que foram esmagados debaixo dos sapatos e dos tanques dos opressores.

Apesar do esforço em narrar um capítulo inglório da História chilena a partir da perspectiva dos "vencidos", ou seja, os políticos pró-Allende que, após o Golpe de 11 de Setembro de 1973, são encarcerados na Ilha Dawson, o filme de Miguel Littin me parece insatisfatório em vários quesitos.

É verdade que retrata o levante militar como irrupção da força bruta que rasga sem dó o tecido das conquistas democráticas. Mas não se aprofunda nos bastidores do evento, sem frisar com mais força, p. ex., a participação yankee neste (e em tantos outros!) golpes latino-americanos. 

Leitores de Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Naomi Klein, Frei Betto e da revista Caros Amigos, entre outros, podem até estarem cansados de saber que os Estados Unidos apoiou grande parte das "revoluções" anti-democráticas (leia-se golpes de Estado militares) na América Latina, inclusive no Brasil e na Argentina. Mas repeti-lo nunca é demais, ainda mais quando consideramos que ainda estamos sob o jugo incômodo do Império norte-americano e seu séquito interminável de crimes - do Vietnã a Abu Ghraib, de Hiroxima & Nagasaki à Guantánamo Bay... - e que é bem importante que não o esqueçamos jamais: quem já financiou ditaduras uma vez deve virar alvo permanente de nossa saudável suspeita. Para que jamais repitam este gesto grotesco.

Apesar de descrever os militares como uns "caçadores de comunistas", engajados na tarefa de extirpar o "vírus" do marxismo, o filme não consegue inserir aquela Ilha num contexto mais amplo e mais global, que incluísse as tensões da Guerra Fria - de um lado, o imperialismo capitalista que matava a rodo na Indochina; de outro, os destroços da Utopia Comunista depois da revelação de todos os horrores do stalinismo. Em 1973, não é fácil escolher entre EUA e URSS, considerando-se o Vietnã e as gulags, Nixon e a herança maldita de Stalin...

Outro elemento que me desgostou no filme é que os ministros e outros aliados de Allende, encarcerados no campo de concentração da Ilha Dawson, em momento algum esboçam um gesto sequer de revolta, de insubmissão, de tentativa de virada-de-mesa. Assisti-lo é tão desanimador justamente por um certo fatalismo quietista que parece ser retratado nestes presos que jamais lançam um olhar mais desafiador contra a botina do tirano, que jamais bolam um plano de fuga mais audacioso, que nem mesmo são retratados como homens em busca de uma solidariedade de compañeros em meio ao horror que lhes é infligido. Terá sido fiel aos fatos históricos ao mostrar prisioneiros tão obedientes aos odiados rottweillers de Pinochet?

"A man can't ride your back unless it's bent", dizia Martin Luther King Jr. Mas é bem verdade que não é fácil ser rebelde sob a mira de uma espingarda. Quando o poderio militar mostra seus dentes, quando a força não se envergonha de se manifestar em toda sua truculência, a rebeldia às vezes se intimida pois sabe que seus arroubos são passíveis de uma punição fatal. "Rebele-se e irás direto para o pelotão de fuzilamento!" "Ouse desobedecer, e faremos com que este seja o seu derradeiro ato de desobediência e que torne-se absolutamente impossível a desobediência para o cadáver em que te transformaremos!"

Ainda assim, a História registra notáveis situações de Insurreição desesperada, em que o levante é levado a cabo por homens que tem plena noção da remotíssima possibilidade de sucesso e da probabilidade imensa de uma morte brutal, e ainda assim... se erguem em revolta. Alguns preferem morrer uma morte violenta em arroubos de indignação guerreira a quedar quietinhos como ovelhas de rebanho que aguardam ser salvas por poderes divinos. É o caso do Gueto de Varsóvia, na Polônia, que levanta-se em 1943 contra o extermínio ordenado pelo III Reich, como relatado no excelente livro de Tzvetan Todorov, Em Face do Extremo. 

Há algo de suspeito na resignação demasiado estóica destes presos chilenos a seu destino pra lá de inglório. Este estoicismo exagerado talvez se explique pelo seguinte: ali estavam encarcerados homens importantes na política chilena nos tempos de Allende, que ocupavam cargos de muita importância em vários Ministérios do presidente assassinado; estão longe de serem pés-rapados. Por isso, a violência que é infligida a eles é comparativamente suave em relação às torturas e surras impostas a militantes políticos menos establishment, por assim dizer, como tantos guerrilheiros e ativistas mais de rua, da passeata e da barricada, do confronto com a tropa de choque e dos hematomas causados por cassetetes. Na Ilha Dawson está a elite do Estado deposto - e não é tão fácil para a Ditadura Pinochet assassinar políticos quanto é matar ("desaparecer") aqueles que são costumeiramente tratados pelos próprios políticos como ralé.

O filme pode até descrever com um grau bastante convincente de verossimilhança todas as táticas de despersonalização impostas aos prisioneiros e que ecoam procedimentos das Auschwitz e Büchenwalds do passado. Aliás, este é um dos poucos filmes chilenos cujo visual é tão desolador e gélido, e a severidade do clima descrita tão rigorosamente, que ficamos com a impressão de que poderia ter sido filmado na Polônia ou na Sibéria.  Homens perdem seus nomes e tornam-se números; perdem o direito à expressão artística e política: desenhos são apreendidos, lápis são confiscados; a correspondência é limitadíssima e sofre censura, e por vezes é queimada, sem a mínima consideração por seu valor afetivo; enfim: dúzias de formas de violência emocional, psíquica, física procuram reduzir homens a objetos, humilhados e vergados.

Exigir que o filme possuísse uma quantidade maior de violência explícita pode parecer um desejo um tanto sádico de espectadores que, acostumados à escola de Tarantino, Chan-Wook Park e Gaspar Noé, querem o sangue jorrando nas câmeras a fim de que se deleitem em estranhas orgias de piedade, indignação e gozo... Não: não acho que o defeito de Dawson seja violência em escassez ou uma representação insuficiente dos horrores infligidos pelos militares. Seria de fato mais reconfortante para o espectador se o filme tivesse apostado numa maniqueização simplista do problema, mostrando os pinochetitas como diabólicos, malévolos e sem-coração e os "allendistas" como as pobres vítimas da tirania. Mas o filme se recusa a este simplismo de confortar esquerdista dogmático: nem todo militar é um demônio encarnado e muitos deles são capazes de oferecer uma laranja ao esfomeado, dividir uns grãos com os que precisam, compartilhar uma risada com uma boa piada.

No debate posterior à sessão, com a presença do prefeito de Goiânia Paulo Garcia, um rapaz comentou que era "um erro do filme tentar representar a humanidade daqueles facínoras". Mas me pergunto se realmente ganharíamos muito se fossem demonizados diante de nossos olhos os tais dos "facínoras": se acho suspeitas e frequentemente mentirosas as idealizações que distorcem pra cima, também não gosto das que distorcem pra baixo. O céu e o inferno foram inventados juntos, e ninguém depende mais do Inferno que as religiões que o inventaram. Céu e Inferno são invenções que conduzem as pessoas a racharem a realidade em apenas dois princípios antagônicos, acarretando assim uma radical depreciação da complexidade do Real - e creio que ainda estamos longe de estar curados desta ancestral mania de procurar compreender o mundo sempre dividindo-o entre mocinhos e vilões, Jesus e Satanás, o Lado Negro da Força e o Lado "Luke Skywalker"... Simplismo de criaturas que querem se sentir "do lado do Bem", mas cuja procura desta identidade de narcísica auto-satisfação costuma passar sempre pela diabolização do que é diferente: se sou "bom", o que difere de mim não tem opção a não ser... do Mal!

O mais preocupante é perceber o quanto este fenômeno é atual: ainda ecoa em nossas orelhas vermelhas a retórica do ex-presidente americano George W. Bush, que em nome de Deus e da Liberdade empreendeu sua célebre Guerra ao Terror, invadindo Afeganistão e Iraque no intuito de aniquilar os regimes tidos como demoníacos dos adoradores de Alá.

Estas empreitadas estadunidenses no Oriente Médio decerto têm um componente econômico importantíssimo - o interesse americano no petróleo abundante da região e a elefantíase da indústria bélica sendo fatores explicativos cruciais - mas na base das "justificações morais" utilizados pelo Império está um discurso profundamente maniqueísta, eivado de fundamentalismo, dogmático ao extremo. Em resumo, Bush e seus asseclas se auto-canonizam como "os Bons e os Justos", os seguidores do deus certo, em louvável cruzada contra estes "selvagens" que crêem em divindades ridículas. Trata-se da velha conversinha furada: o meu deus é fantástico, maravilhoso, divino, genial; já o seu deusinho é um canalha, um falso ídolo, um demônio travestido com o véu de Maia de uma pseudo-divindade. A minha fé é a verdadeira religião; a fé do outro é idolatria e superstição. Quantos massacres não emergiram deste maniqueísmo grotesco! Razão suficiente para que tenhamos o máximo de precaução contra estas reduções simplistas a um combate entre criaturas angelicais e chifrudos luciferinos.

Mesmo com todos os seus defeitos e insuficiências, o filme de Miguel Littín vale a pena ser assistido, discutido e disseminado: é um retrato de um dos regimes políticos mais sanguinários que chegaram ao poder na América Latina da época das ditaduras, quase todas elas financiadas pela CIA e favoráveis aos programas neoliberais de Milton Friedman e da Escola de Chicago - como foi tão bem escancarado pelo Doutrina do Choque de Naomi Klein. Dawson - A Ilha de Pinochet, é mais um salutar lembrete de que o capitalismo em sua faceta mais recente, neoliberal e tecnocrática, adora mancomunar-se com regimes ditatoriais que fazem uso de táticas totalitárias e fascitóides - incluindo censura, tortura e genocídio - com o fim de consolidar as maravilhas radiosas do livre mercado. Dawson é o retrato desolador da tirania militar de Pinochet triunfando sobre a resistência com toda a truculência selvagem de um mamute inescrupuloso; é, por isso, um filme que deprime e traz pra baixo. O triunfo sobre estes horrores será retratado em outra película: "No", de Pablo Terraín, o candidato chileno ao Oscar de 2013, filme vibrante e cheio de ardor que descreve o modo como o Chile enfim varreu do mapa, no Plebiscito de 1988, a ditadura que matou e torturou à rodo (e com muita grana de Washington!) desde o 11 de Setembro de 1973. 

Dawson mostra o governo Pinochet estraçalhando todas as rosas. No grita em resposta, em uníssono com Neruda, que os tiranos jamais hão de deter a primavera.

Nenhum comentário:

Postar um comentário