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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

:: O Encouraçado Potemkin ::


:: O ENCOURAÇADO POTEMKIN ::
de Sergei Eisenstein (URSS, 1925)

por
Paulo Emílio Sales Gomes (*)


O público do Festival de Cinema Russo e Soviético preferiu francamente o Encouraçado Potemkin a Outubro. Não é fenômeno local e novo. Há mais de 30 anos que isso acontece em toda parte. Não pretendo insinuar que durante todo esse tempo a valorização de Potemkin tenha ido além de seus méritos. Sua glória é merecida, ninguém se eleva contra o enorme destaque dado ao filme nos inquéritos e referenduns para a escolha das maiores obras cinematográficas de todos os tempos.

O que torna Potemkin invencível é a facilidade de sua comunicação com qualquer público, de 1926 a nossos dias. Eisenstein o definiu certa vez como cartaz e Potemkin possui realmente a virtude de contato imediato e brilhante alcançado pela linguagem gráfica da propaganda em seus momentos mais altos. É concentrado, uno, cuida de uma coisa só, as idéias são poucas, simples, nítidas e apresentadas linearmente.

Não é preciso iniciação para o espectador se sentir envolvido ou estimulado pelo ritmo da homenagem ao marinheiro morto ou do massacre na escadaria de Odessa. Moussinac tinha razão: ainda hoje Potemkin nos atinge como um grito. Não faz meditar ou imaginar: mobiliza nosso espírito através da emoção elementar da solidariedade. É um jato que possui a limpidez e ordem de um clássico. Obra revolucionária calcada num momento histórico definido, a natureza de sua Revolução é tão genérica que se torna válida universalmente.


Não é preciso ser comunista, socialista ou anarquista para se apreciar Potemkin. Também é desnecessário conhecer o episódio da rebelião na Marinha russa durante os acontecimentos revolucionários de 1905. Basta ao espectador a mediana e generalizada capacidade de se insurgir contra a injustiça. Em suma, a cultura não é condição indispensável para se gostar do filme. A não ser as de Chaplin, não conheço outra grande obra de arte cinematográfica que, como Potemkin, exija tão pouco do espectador e ao mesmo tempo lhe dê tanto.

O Potemkin e Outubro sugerem uma reflexão que talvez possa ser generalizada com proveito. A natureza das relações que se estabelecem entre o espectador e o filme pertence ao domínio da exigência e varia o sentido da operação entre os termos em presença. No intercâmbio entre espectador e filme, nas comunicações que se tecem para permitir a eclosão do prazer da emoção da alegria, o foco da exigência está ora num ora noutro. É provável que se possam dividir os filmes em duas categorias: os que nos fazem solicitações e os que se prestam às nossas exigências.

De qualquer forma, as duas fitas de Eisenstein que nos ocupam se enquadram rigorosamente nesse esquema. Em Potemkin o foco de exigência é o espectador; em Outubro é a fita. Potemkin responde facilmente, Outubro faz perguntas difíceis. Os espectadores escolhem Potemkin; Outubro seleciona os seus. O chamado espectador exigente está perdido com Outubro; a fita precisa dos exigidos. Potemkin é o amor à primeira vista, fácil, que se prolonga numa felicidade calorosa que independe do progresso; mas o amor difícil de Outubro é certamente mais recompensador para o espírito moderno. Potemkin é Baudelaire; Outubro, Mallarmé.

Rever Potemkin é retornar a exaltações e prazeres conhecidos, é reler The Hollow Men ou a autobiografia de Trotsky, é ouvir de novo a Sagração da Primavera ou revisitar Fra Angélico --- em suma, é a volta a pontos que se tornaram pacíficos. A Outubro não se volta propriamente; enfrenta-se de novo com lealdade, temor, humildade, esperança, como fazemos com Pound ou Andréa del Castagno, como lemos a meditação de Trostsky envelhecido a respeito do massacre do tzarevitch ou procuramos ouvir de novo a música que nos recusa segurança. A tensão de Potemkin está pronta, acabada, tornou-se, com o tempo, pré-fabricada. A de Outubro está permanentemente em construção. O primeiro é um passado objetivado, o outro um futuro subjetivante.

(*) Este artigo de Paulo Emílio, "Potemkin e Outubro", foi originalmente publicado no Suplemento Literário do Estadão, em 20 de Janeiro de 1962. Descolei na biblioteca da FFLCH-USP e digitei-o pra vocês, turistas do Depredando o Cinema, pra compartilhar um clássico da crítica de cinema nacional...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

:: Outubro ::

:: OUTUBRO ::
de Sergei Eisenstein
(URSS, 1928)

por Paulo Emílio Sales Gomes

Como abordar Outubro? Através das 3 coisas de que trata: a Revolução Russa, Eisenstein e o espectador. Desta feita, porém, o último ficará afastado, pelo menos provisoriamente.

Outubro não é a crônica cinematográfica da Revolução Russa. Essa tarefa foi executada admiravelmente por Esther Shub com A Queda da Dinastia dos Romanov e O Grande Caminho, filmes de longa-metragem compostos de fragmentos de atualidades e documentários, o primeiro ilustrando a vida russa de 1912 a 1917 e o segundo cobrindo os dez primeiros anos de vida soviética. Também não se trata, na fita de Eisenstein, da reconstituição acurada dos acontecimentos naqueles meses decisivos que vão de fevereiro a outubro de 1917. Essa foi a missão de Barnet com Moscou em Outubro, filme, aliás, medíocre. Seria então um filme de ficção da natureza mais corrente, cuja ação estaria estruturalmente ligada aos grandes acontecimentos revolucionários descritos de forma bastante ampla e pormenorizada? Esse filme existe mas não é o de Eisenstein; trata-se de O Fim de São Peterburgo, um dos três melhores filmes de Pudovkin, juntamente com A Mãe e Tempestade Sobre a Ásia (O Heredeiro de Gengis-Khan).

Outubro tem algo de crônica e de reconstituição histórica, estando porém isento de ficção. Aquilo que às vezes se aparenta a esta última é ensaio de interpretação histórica ou meditação pessoal do autor. O jovem Eisenstein vivera em Petrogrado os acontecimentos revolucionários de 1917 iniciados com o movimento popular que derrubou NIcolau II e que culminaram nove meses mais tarde com a tomada do poder pelos bolchevistas. Naquele período, porém, não se interessava ele pelos problemas políticos e sociais. Se procurava observar o que se passava era sobretudo para imitar o comportamento de Da Vinci na Florença dos Medici por ocasião de alguns conflitos de rua.

Quando mais tarde Eisenstein recebeu a incumbência de realizar um dos filmes comemorativos do décimo aniversário da Revolução, há muito se tornara um comunista convicto, embora extrapartidário. O cineasta certamente utilizou as impressões, e eventualmente algumas notas ou croquis, recolhidos durante os acontecimentos pelo estudante da Universidade de Petrogrado e admirador de Leonardo. De uma maneira geral, porém, os diversos episódios da Revolução haviam se tornado extremamente familiares à imaginação coletiva, sobretudo nos grandes centros urbanos. As reportagens de John Reed haviam adquirido imensa celebridade e muito participante direto da Revolução insensivelmente recordava a experiência vivida através de Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo.

Outubro
é crônica sobretudo quando se inspira diretamente no texto do jornalista americano, não só quando descreve o comportamento atemorizado e desconfiado dos menchevistas conciliadores diante do movimento de armas na sede do Soviete, mas quando focaliza o pormenor de um delegado ao conselho dos operários e soldados que diante da reprovação unânime não ousa votar contra uma resolução.

A reconstituição de alguns episódios é às vezes praticamente documental. Uma tomada da repressão de julho foi inspirada tão de perto por uma fotografia da época, que em livros de história a imagem do filme é usada como se fosse o documento original --- e não é o único caso. Todos os textos relativos à Revolução de Outubro descrevem a cena em que Lênin, disfarçado, é reconhecido no Instituto Smolny por dois líderes conciliadores, Dan e Skobelev. A filmagem eisensteiniana acompanhou tão meticulosamente os depoimentos históricos que não choca a presença de um fotograma ao lado de fotos documentais num volume de divulgação histórica. Tem-se a convicção íntima de que se o fato real tivesse sido filmado, o resultado seria muito próximo do que vemos em Outubro. O que contribuiu decididamente para a impressão de verdade que nos dá o lado de crônica e documento de Outubro é o cuidado e a inteligência com que Eisenstein e seus colaboradores estudaram os filmes de montagem de Esther Shub.

Outubro, entretanto, não é um curso de história. O filme a exprime e interpreta muito mais do que relata. Na maior parte do tempo estamos mergulhados na história e em sua principal personagem: a massa. Mas frequentemente de uma maneira condensada, ou por símbolos e alusões. Os fatos, os episódios fílmicos que tomaram como ponto de apoio inicial as ocorrências da realidade, podem exigir um agenciamento fora da cronologia, a fim de que saibamos vislumbrar, pelo jogo das associações, seus mais profundos significados. É provável que que as pontes sobre o Neva não hajam sido levantadas em julho quando o governo provisório de Kerenski abriu fogo contra as massas conduzidas pelos bolchevistas, mas elas o haviam sido em fevereiro, quando o tzarismo em estertor atirou contra o povo.

Em Outubro a ponte única que é levantada, em julho, para separar o centro da cidade do bairro de Viborg, o mais revolucionário de todos, engloba não só as outras pontes que ligam o coração político de Petrogrado às periferias proletárias, mas sobretudo significa que os combates contra o feudalismo dos Romanov e o capitalismo do Governo Provisório de Kerenskisão momentos de uma luta que permanece a mesma. Mas isso seria apenas um prelúdio à análise da sequência da ponte. As transmutações não se limitam a servir o mecanismo de transformação de ocorrência em significado. O tempo fílmico do levantar da ponte independe não só da dimensão temporal da realidade mas igualmente da temporalidade habitual de Outubro em seu conjunto.

É literalmente um momento de suspensão de meditação dramática que palpita nos cabelos soltos de uma mulher assassinada, num cavalo morto que tarda cruelmente em tombar no rio, momento também de grave e insondável contemplação arquitetônica, perpassada por insinuações egípcias, pois os cavalarianos da reação tzarista eram chamados faraós. Estamos, porém, em julho de 1917 e a imagem culminante é a de um jovem operário assassinado pela burguesia triunfante e enfurecida de Kerenski. Se acrescentarmos que essas reflexões estão longe de satisfazer as inúmeras e sempre renascentes solicitações que faz ao espectador o episódio da ponte e completarmos o parágrafo com uma alusão pasma à prodigiosa beleza intrínseca da sequência tomada globalmente, teremos dado uma idéia dos altíssimos e complexos momentos de vida interior que Outubro é capaz de suscitar em seus espectadores.


Outro momento em que Eisenstein modela o tempo com a maior desenvoltura é o da aparição de Kerenski. Ele não acaba nunca de subir as escadarias internas do Palácio de Inverno em Petrogrado. Ele galga continuamente os degraus mas há momentos em que temos a sensação de que continua no mesmo lugar. Essa distensão do tempo fílmico significa na realidade uma condensação extrema do tempo histórico. Kerenski na escada resume de fato meses túmidos de história, desde a sua aparição na vida política como ministro até a sua tentativa de afirmação como ditador, passando pelos momentos em que reunia em suas mãos as pastas militares ou assumia a presidência do Governo Provisório a carreira ao mesmo tempo fulgurante e lamentável da principal expressão política do intervalo entre a queda do tzarismo e a insurreição proletária.

(...) Desse fundo de revolução e história que constitui a estrutura de Outubro emanam as reflexões mais íntimas e pessoais de Eisenstein, que eventualmente se prolongam e desenvolvem até alcançarem um nível onde as motivações objetivas iniciais se perder de vista, sendo substituídas pela mais franca subjetividade. Não há depoimento ou ensaio histórico a respeito das jornadas de julho de 1917 em Petrogrado que não faça referência ao linchamento de operários revolucionários indefesos por burgueses e oficiais enfurecidos. As senhoras de Petrogrado não tiveram, que eu saiba, participação de primeiro plano nessas agressões selvagens, mas em Outubro é isso que ocorre. É sabido que entre as últimas forças que se conservaram fiéis ao regime de Kerenski contava-se um batalhão feminino. É nele que Eisenstein concentra seu interesse, nas figuras desgraciosas que o compõem, no lancinante sentimento de frustração amorosa e materna que exprimem as mulheres impiedosamente expostas. As damas, assassinas de julho ou as mulheres-soldados de outubro, ou não existiram ou tiveram uma significação apenas episódica nos acontecimentos revolucionários russos. Se em Outubro adquirem tal preeminência é porque exprimem a visão conflitiva e persecutória que Eisenstein tinha da mulher.

Eisenstein poderia repetir o verso de Maiakóvski em seu poema Deus Expurgado: "Toda gente sabe que entre eu e Deus há muito motivo de briga". O problema da divindade em suas implicações íntimas ou nas manifestações rituais exteriores da religião organizada não cessou nunca de preocupar Eisenstein. Outubro alude ao fato histórico de que o golpe militar fracassado de Kornilov foi bafejado pelo incenso da religião como fora o Governo Provisório de Kerenski ou o tzarismo de Nicolau. O general contra-revolucionário fala e age em nome de muitas coisas, inclusive de Deus. Eisenstein parte daí para a sua fantástica montagem de divindades que se inicia no esplendor de um Cristo barroco para culminar na barbárie fetichista. O humanismo plebeu revolucionário enfrenta o primitivsmo cossaco a serviço da reação. É sabido que os operários russos conseguiram dissuadir os soldados de Kornilov de sua missão fatídica e no filme a conclusão feliz é expressa pela dança. Os espectadores do Festival Russo e Soviético já se acostumaram a encontrar em momentos de dança vários dos momentos culminates da arte cinematográfica soviética.

Outubro é, certamente, o filme mais rico e complexo que já se fez. Seria também o mais belo filme russo se não existisse A Terra, de Dovjenko.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

:: Milk (Gus Van Sant) ::


:: MILK - A VOZ DA IGUALDADE ::
de Gus Van Sant (2008)

É pra lá de comum que, para efeitos de classificação, a gente divida os filmes em dois grandes “universos” antagônicos e incomunicáveis: de um lado, o “Cinema Autoral de Arte”; de outro, o “Cinema de Entretenimento de Massas”. Esta divisão, um tanto simplória, é o que alguns diretores brilhantes conseguem problematizar, bagunçando os limiares, rejeitando os dogmas de cada “partido” e unindo, numa mesma obra, elementos de ambos os “domínios” (até que esta própria dicotomia seja explodida e pareça de um reducionismo crasso...).

Gus Van Sant, por exemplo, é um destes versáteis cineastas que passeiam com desenvoltura por estes extremos do espectro. Às vezes solta obras tipicamente "róliudianas", adoradas pelas multidões e arroz-de-festa nas grandes premiações – é o caso de obras como Gênio Indomável e Encontrando Forrester. Outras vezes, soa como um artista independente e descompromissado com o comercialismo, que dedica-se a experimentos vanguardísticos extremos (como fez nos longos planos-sequência de Elefante ou na narrativa arrastada e desoladora de Last Days - Os Últimos Dias de Kurt Cobain).

Van Sant parece ser um dos poucos autores do cinema de hoje capaz de marcar presença, ainda que de modo intercalado, tanto nos “festejos hype” como o Oscar (Milk, por exemplo, foi indicado a 8 prêmios em 2008, inclusive melhor filme, diretor e ator), quanto no ambiente bem mais “cult” de Cannes (como ocorreu com a Palma de Ouro vencida por Elefante). Seu novo filme, Milk, novamente traz essa frutífera mescla entre um cinema autoral e um espetáculo fílmico orquestrado para a emoção e edificação das multidões.

Milk representa mais um pit-stop que faz Gus Van Sant na análise de uma alma excêntrica e fora-do-comum: Harvey Milk, um dos primeiros homens confessamente homossexuais a atingir cargos de importância na política americana --- na libertária São Francisco dos anos 70. A vida deste homem incomum já havia rendido o documentário The Times Of Harvey Milk (1984), de Rob Espstein, que levou o Oscar de sua categoria em 1985. Nele, a intenção, mais do que meramente biografar Milk e averiguar as circunstâncias que levaram a seu homicídio, é inseri-lo num contexto sócio-político-cultural. É esta, também, a aposta de Van Sant nesta sua transposição para a ficção do "destino" de Harvey Milk: seu filme, ao invés de descrever em excessivas minúcias a vida privada de seu herói, como é comum em tantas cine-biografias de homens célebres, faz a escolha por uma ambição maior: a de ser um vasto "Panorama Cultural".

Mais do que a própria vida de Harvey Milk, o que parece importar para Van Sant é todo o “Quadro Cultural” que o circunda nesta Frisco pós-hippie que colhe os frutos de Woodstock e da Revolução Sexual: um ambiente de libertação progressiva que Milk protagoniza como um líder, um guia e um mártir dos homossexuais militantes. O grande destaques do filme vai para a organização política em busca de reconhecimento social e direitos igualitários – e é nisso que a narrativa centra fogo: bastidores partidários, panfletagem e propaganda, passeatas de protesto, discursos ao megafone, combates com a polícia, batalhas jurídicas contra leis discriminatórias. Enfim: toda a difícil esgrima política necessária para a obtenção de direitos civis democráticos.


Nada de cenas de erotismo excessivo, já que este certamente não é um filme voltado para o público gay, mas sim dirigido à “educação histórica” de um público de massa que, em sua maioria, desconhece esta notável história de batalha por direitos civis. Milk enxerga a sexualidade à la Foucault: como uma questão tão política quanto pessoal, que diz respeito ao coletivo tanto quanto ao indivíduo, e que causa muitos conflitos e desencontros na arena pública (tendo estado, desde sempre, em todo o caminhar da humanidade, envolta em polêmica e repressão, tanto como ação quanto como discurso).

Milk é mais um sintoma claro do que hoje temos como óbvio, até mesmo subestimando o imenso valor desta conquista: o fato de que depois da "revolução sexual" dos anos 1960 a sexualidade tornou-se algo discutido de modo cada vez mais aberto, franco e menos moralista. E Gus Van Sant, cineasta homossexual assumido, prefere o retrato ao julgamento e atinge com serenidade uma narrativa que, ao menos num primeiro olhar, parece completamente desinteressado em dar “lições de moral” ou distinguir o “certo” do “errado”. Porém o espectador atento fica inevitavelmente com a impressão de que a intenção fundamental por trás de Milk era esta: a geração de um herói. Missão cumprida. Pois, pelo esforço conjunto de Van Sant e da atuação muito convincente de Sean Penn, Harvey Milk é descrito como um ícone tão digno de admiração quanto foram, por exemplo, um Martin Luther King ou um Malcolm X para a causa negra ou uma Camille Paglia ou Maya Angelou para a causa feminista.

Mais uma vez, Van Sant demonstra ter verdadeira paixão pelo retrato de admiráveis outsiders, desajustados e excêntricos. Todos aqueles que fogem do comportamento convencional atraem a atenção e as lentes do diretor. E seu valor maior está em que seus retratos quase sempre aparecem limpos de qualquer moralismo, procurando instigar mais a empatia do espectador pelos seus inúmeros anti-heróis, anjos caídos e jovens confusos do que pôr lenha na fogueira da incompreensão e da condenação. Essa atitude sempre misericordiosa parece perpassar toda a filmografia dele: seja quando trata de uma juventude transviada de junkies (em Drugstore Cowboy) ou de assassinos colegiais (em Elefante ou Paranoid Park), seja mostrando deprimidos roqueiros agonizantes (em Last Days) ou as desventuras de artistas (Gênio Indomável e Encontrando Forrester), Van Sant é sempre alguém que humaniza os personagens e impede uma condenação superficial e afoita de seus comportamentos desviantes. Pois o que garante que o caminho escolhido pela maioria é necessariamente o melhor? E por que os que desviam não poderiam, nesta escolha de não seguir o rebanho, encontrar uma verdade mais alta que aquela que atingem as ovelhinhas que andam ordeiramente em linha indiana?

O verdadeiro Harvey Milk:

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

:: Too Much Monkey Business ::

:: O INVENTOR DA MOCIDADE ::
(Monkey Business)

de Howard Hawks (1952)


"We dream of youth. We remember it as a time of nightingales and valentines, but what are the facts? Mal-adjustment, near-idiocy and a series of low-comedy disasters, that's what youth is. I don't see how anyone survives it." --- DR. BARNABY FULTON

"...it is the most unfortunate of illusions which Hawks rather cruelly attacks: the notion of adolescence and childhood as barbarous states from which we are rescued by education. The child is scarcely distinguishable from the savage he imitates in his games: and a most distinguished old man, after he has drunk the precious fluid, takes delight in imitating a chimp. One can find in this a classical conception of man as a creature whose only path to greatness lies through experience and maturity; at the end of his journey, it is his old age which will be his judge." --- JACQUES RIVETTE, "The Genius Of Howard Hawks" (Cahiers Du Cinema #53, Maio de 1953)


A morte é incontornável, mas a humanidade sempre teima em tentar dribá-la. Sejamos crentes ou ateus, "primitivos" ou "civilizados", da cor e da classe que formos, fugimos da Grande Foice como o diabo da cruz. E a "negação da morte", como dizia Ernest Becker, é uma força psicológica de imenso poder a agir nas profundezas de nossas psiques temerosas e angustiadas. Pedimos auxílio à ciência, investindo milhões em pesquisa destinada a prolongar a longevidade do corpo humano, enquanto imploramos para que os médicos tornem-no cada vez menos atacável pelas pragas e doenças. Sem falar que, por séculos, quando a ciência não era ainda tão idolatrada como é hoje, inventamos mil-e-um contos-de-fada que foram instituídos em religiões e que nos contavam a lorotinha de que a morte não existe e que a eternidade será uma grande festa... O passado, o presente e o futuro de nossa pobre raça, a única consciente de sua condenação à mortalidade em todo o reino animal, está marcada, como a testa de Caim, por este fardo. Desde as pirâmides do Egito até o sonho futurista de uma Era da Criogenia, tudo aponta a persistência no tempo de um sonho imemorial porque irrealizável...


O que se procura com tanto afã em O Inventor da Mocidade é a fórmula de uma droga capaz de rejuvesner magicamente seu consumidor --- o equivalente da Fonte da Juventude na Era da Farmacopéia Industrial. E o Dr Barnaby Fulton (Cary Grant), encarnando com muita graça a figura do "cientista amalucado" e genial, é um excêntrico pesquisador de uma grande corporação farmacêutica que está doidinha para fazer fortuna com a Substância Mágica Que Vai Superar o Envelhecimento. Nos laboratórios repletos de macacos-cobaia, Fulton e seu time procuram inventar um remédio que deixaria o Viagra e o Prozac no chinelo. A panacéia sonhada já foi até pré-batizada de B-4 (leia-se "Before") e trará estampada em sua embalagem a mítica imagem do Fênix, prometendo aos consumidores que eles ressurgirão das cinzas da idade, voando rumo ao céu inexplorado de uma nova mocidade!

Mas este, não sendo um filme de Bergman ou Kieslowski, não tem como intenção se aprofundar nos meandros existenciais do processo de envelhecimento humano, descrevendo o terror e a angústia de seres que vão irremediavelmente fenecendo e enrugando --- withering and dying away -- sem o terem merecido e sem nada poderem contra o rolo compressor impiedoso da morte em marcha. O Inventor da Mocidade não tem nada de Sonata de Outono. A poção mágica, aqui, é mero pretexto para um desfilar de gags, piadinhas e cenas de extrema absurdidade no melhor estilo das screwball-comedy da fase clássica de Hollywood.

No fundo, acaba soando como se fosse um filme sobre as loucuras que as pessoas cometem quando tomam um homérico porre. Mas como não é politicamente correto (e pegaria mal pra Warner Brothers!) que o filme fosse sobre bebuns, inventou-se a tal da bebidinha rejuvenescedora --- que deixa a obra de Hawks com um agradável sabor de sci-fi em atmosfera de chacota. Mas, no fundo, a criação farmacêutica de Barnaby tem o mesmo efeito que teriam umas 5 doses de vodka: dá uma marteladinha no super-ego, chuta pra escanteio as inibições e nos deixa seu usuário alegremente retardado.
Quando Cary Grant, por engano, toma sua primeira dose do Elixir da Juventude, transforma-se de um velhote circunspecto e amante da ciência num molecão levado-da-breca e sem freios morais. Sai por aí como se fosse um colegial: faz um corte de cabelo moderninho, compra um terno alegre e um conversível turbinado, e não resiste a passear pela cidade exibindo seus dotes viris para uma deslumbrante Marilyn Monroe -- que interpreta, é claro, a secretária gostosa (e burrinha) do patrão. É claro que quando o maridão volta pra casa cheio de marcas de lipstick, e confessa que sua fonte é a loiraça, sua patroa não gosta nada. Está armado o circo. Que é tão mais caótico porque a beberagem foi acidentalmente despejada no filtro de água do laboratório --- de modo que a chapação será geral e a infantilidade virará epidemia.


Já é um "charme em si" ver juntos Cary Grant, em um de seus papéis mais cômicos, e Marilyn Monroe, em sua fase áurea. Este é mais um dos filmes que sedimenta tanto o irrestível glamour de miss Monroe, a maior sex symbol do século, quanto aprofunda sua reputação de "loira burra". Ela, aqui, é tapadinha como uma toupeira, incompetente até para a datilografia e só tem um emprego firmeza, é claro, por causa de sua formosura. Prova disso é aquela cena em que o chefe lhe entrega uma folha e lhe diz: "Ache alguém para digitar isso. Qualquer um sabe digitar!"



Pode-se dizer que o filme sublinha o fato de que muitas descobertas científicas se devem ao acaso --- como aquela célebre maçã que, despencando no quengo do Newton, fez com que o cérebro dele, pegando no tranco, gritasse o "eureka!" que gerou a teoria da gravitação universal. Mas eu diria que o paralelo mais certeiro é com outro magistral achado da ciência que também se deveu a uma mãozinha do acaso: o causo de Albert Hoffman (1906-2008), o cientista suíço que trampava com ácido lisérgico e acabou acidentalmente sintetizando o LSD e sendo sua primeira cobaia. Deste feliz acidente, que o cientista pôde experimentar em sua própria consciência, em primeira mão, nasceria a substância mais louvada pela juventude sessentista, parteira de pérolas como Sgt. Peppers, Pet Sounds, The Piper At The Gates Of Dawn, Timothy Leary como guru cultural e o caraio-a-quatro.

O Doutor Barnaby de Grant, aliás, descreve os efeitos de sua beberagem como se estivesse embriagado com alguma substância redentora, que aguça seus sentidos, aumenta sua força física, replenifica suas energias e lhe traz uma "imensa sensação de bem-estar". Não muito diferente do que conta-se que ocorreu com Hoffman, retornando para casa naquele glorioso dia para a humanidade em que consumiu por acidente uma dosinha de LSD e experimentou um passeio de bicicleta que imagino ter sido mais repleto de magia do que aquele do menininho do E.T. que decola rumo à Lua... =)


Monkey Business, apesar da graciosidade com que descreve as atitudes humanas sob o efeito da bebida que rejuvenesce, também metralha sem dó o mito ilusório da juventude feliz. Como naquele espirituoso trecho em que o personagem de Grant destaca o quanto a mocidade é superestimada: "Nós sonhamos com a juventude. A imaginamos com uma época de rouxinóis e namoricos, mas quais são os fatos? Desajuste, semi-idiotia e uma série de desastres de comédias baratas -- é isto a juventude. Não entendo como as pessoas sobrevivem a ela" (vide epígrafe -- tradução minha).

O que me lembra de Nelson Rodrigues que, quando instado a oferecer palavras de conselho aos mais novos, soltou a pérola: "Jovens, envelheçam!" Frase engraçada, claro, mas que talvez soe meio impregnada da arrogância de um tiozão que se acha muito melhor que a molecada. Kurt Vonnegut Jr., quando lhe pediram que fizesse o mesmo, chamou a atenção para a babaquice e a barbárie de sua própria geração e transmitiu o seguinte como síntese da sabedoria a que se alçaram os mais velhos: "Please accept our apollogies" (Por favor aceitem nossas desculpas). E nem vou citar William Burroughs e suas Words Of Advice For Young People por respeito aos mais sensíveis...

Jacques Rivette, que escreveu para a Cahiers du Cinema, em 1953, um memorável artigo sobre "O Gênio de Howard Hawks", sugere que aquilo que está sendo "cruelmente atacado" pelo filme é a "tentação do infantilismo" e da "bestialidade". Ele sublinha ainda que o filme lida com a "fascinação" que exerce sobre nós a "degradação" e a "decadência" --- como se sentíssemos saudade do tempo em que podíamos ser maus, agir em completa entrega aos instintos, como que uma nostalgia do paraíso perdido do tempo pré-super-ego, onde a perversidade não encontrava muitos freios.

A noção da criança como um anjinho de bondade com auréola dourada sobre a cabecinha é totalmente escamoteada --- como na cena em que, brincando de índio, os guris (dignos de O Senhor das Moscas) concebem que antes de escalpelar alguém é preciso fazer a Dança da Morte, e na sequência cantam e urram como pequenos selvagens. Longe de idealizar a infância e a adolescência, O Inventor da Mocidade parece sugerir que o mito de que estas são idades idílicas da vida é invenção de velhotes nostálgicos; é a saudade deles que imagina que foi doce aquilo que, quando vivido, foi bem mais amargo do que se admite.

A "droga" que inventa-se em Monkey Business oferece ao consumidor a posse provisória de algumas características juvenis invejáveis, sim: espontaneidade, urgência, imprudência, senso de humor aguçado. Mas ao mesmo tempo que traz à tona muita perversidade, estupidez e primitivismo comportamental. Vale notar que o casamento dos Fulton (Grant e Ginger Rogers) sai ameaçado de ir pras cucuias justamente quando ambos tomam a bebida, tornando-se infantis, brigando por ninharias e tendo crises de ciúme. A poção da juventude faz o casal quase se destruir devido à infantilidade que insere num relacionamento que até ali parecia ser feliz e maduro --- feliz porque maduro!

O que, na utopia tecno-científica seria uma panacéia e um imenso bem, acaba se mostrando, na realidade, como uma desgracenta substância que põe fogo no circo, desestabiliza todas as relações sociais e instaura a anarquia na família e na empresa. Isto não é necessariamente mal, se pensarmos no quanto a família e a empresa podem ser instituições perversas e sanguessugas, mas o filme, apesar de não trazer uma "moral da história" claramente exposta, parece sugerir mesmo que "o homem é uma criatura cujo único caminho para a grandeza se encontra na experiência e na maturidade", na bela expressão de Rivette. Seria moralismo? Ou somente um modo de provar, através da comédia, o quanto somos ridículos quando, homens feitos, agimos como criancinhas idióticas?

* * * * *

Vale lembrar, para finalizar, que este era um dos filmes prediletos de Sérgio Buarque de Hollanda --- como revelam seus filhos no documentário Raízes do Brasil (de Joaquim Pedro de Andrade). Não é difícil entender porquê: como o Antonio Candido comenta, o pai de Chico Buarque foi um intelectual que conseguia unir uma intensa dedicação ao estudo e à vida acadêmica com um gosto notável por uma baguncinha. Não surpreende, pois, que tenha se identificado tanto com a história do cientista maluco encarnado por Cary Grant neste Negócio de Macaco que Howard Hawks tirou da cartola em 1952. Como o Dr. Barnaby, dedicadíssimo à ciência mas capaz de muita molecagem, Sérgio Buarque de Hollanda foi também exemplo desta união tão frutífera entre a erudição cheia de dedicação e a efervescência da alegria. Passo a palavra a seu ilustre amigo e companheiro de FFLCH:

"Sérgio era um conjunto muito complexo em que uma coisa negava a outra: era um erudito extraordinário, mas muito inclinado à molecagem; era um camarada de uma seriedade intelectual fora do comum e um gozador de marca maior. (...) Apesar de muito consciente do dever do intelectual no ângulo da seriedade, assimilou todas as características dos modernistas de 1922. Foi formado na atmosfera da Semana de Arte Moderna e por isso guardou sempre a molecagem, a gozação, a brincadeira. Pois os modernistas ensinaram à literatura brasileira que a pessoa, pra ser séria, não precisa ser trombuda. (...) Nele havia a combinação do imenso erudito com a criatura alegre, inconformada e não-convencional. (...) Ele tinha a capacidade de fazer loucuras, e sem a capacidade de fazer loucuras não existe paixão." --- ANTÔNIO CÂNDIDO


sábado, 13 de fevereiro de 2010

:: Amor Sem Escalas ::


:: CARRASCO ENGRAVATADO ::
(Up In The Air)
de Jason Reitman


:: IT'S A DIRTY JOB (BUT SOMEONE'S GOTTA DO IT) ::

"Não somos cisnes. Somos tubarões." É uma confissão legítima. Pois este engravatado encarnado por George Clooney, com seus ternos engomadinhos e mais milhas voadas do que a distância entre a Terra e a Lua, está trabalhando para os tubarões. Seu serviço é tacar homens para fora do barco corporativo, em altíssimo mar, para que sirvam de comida para os predadores submarinos.

O trabalho de Bingham é o equivalente ao de um assassino de aluguel, pau-mandado das grandes corporações, mas o que ele fulmina não são vidas, mas empregos. O que por vezes dá no mesmo. A mando das grandes empresas, ele dedica-se a rasgar os vínculos empregatícios com a máxima agilidade e limpeza possível, sem choro nem vela, mandando pro olho-da-rua os empregados que lhe mandam dispensar. A especialização chegou a tais extremos que há um homem que só faz isso na vida: despede os outros. É uma espécie de Pierrepoint do capitalismo --- e que quebra bem mais pescoços do que fez o carrasco francês que Timothy Spall tão bem encarnou em Lavador de Almas.

É um empreguinho dos diabos, por mais bem-pago que seja. Pois quando você é um despedidor-profissional, um chutador-de-bundas-porta-afora, você é um homem perdidamente odiado. Você é o homem que traz as más notícias, às dúzias, para distribuir pela América. Você é aquele que encara o trampo de encarar centenas de homens e mulheres e dizer-lhes: “O senhor está despedido”; “Seus serviços não são mais necessários”; “Trata de limpar sua mesa até o fim-do-dia”. E que depois tem que suportar o choro, a revolta, os ataques histéricos, a gritaria, as ameaças de suicídio, os xingos e todas os outros pitís e chiliques que acometem um despedido.

Em seu primeiro filme, Obrigado Por Fumar, Jason Reitman já fez fina comédia com outro trabalho sujo: seu protagonista, Nick Naylor, era o porta-voz das grandes corporações tabagistas – ou melhor: o advogado sem escrúpulos que tenta defender um conglomerado de empresas vendedoras de cigarro que matam 12 mil pessoas ao dia. Em seu terceiro longa, sucessor de Juno, Reitman volta a tematizar sobre as consequências éticas da execução cotidiana de um emprego “sujo” --- como é o de Bingham, personagem de Clooney.

O emprego que deveria torná-lo mais sensível aos problemas sociais, ao fazê-lo se defrontar com o pesadelo econômico em que uma demissão lança as pessoas, que deveria fazê-lo mais cônscio do quanto podem ser selvagens os mecanismos do mercado de trabalho, só o torna mais frio e invulnerável. Você olha pra este homem e sabe: ele não é mais capaz de se comover com nada. Que chorem, que esperneiem, que quebrem vidros ou ameaçem se matar na frente dele, e a expressão dele permanecerá na mesma calma. Pois ele teve que desenvolver uma carapaça de insensibilidade que lhe permitisse lançar homens e mulheres no pesadelo do desemprego sem se afligir com isso. Dorme em paz todas as noites ainda que as pessoas que despede ameacem pular de pontes ou chorem prevendo que será impossível alimentar os filhos. Paira acima da tempestade das paixões em virtude de sua glacial indiferença.

A razão é um tanto óbvia: ele sempre despede um completo desconhecido. Ele desce do avião, despede o infeliz e volta a decolar. Como perceber de modo concreto a desgraça humana do outro à sua frente se não há tempo para conhecê-lo, se o "relacionamento" brutal que estabelecem é de apenas 15 minutos e jamais se vêem outra vez?


:: UMA ILHA QUE VOA

Este trabalho de Bingham tem seus ecos em sua vida emocional, é claro. São tantas pontes-aéreas, afinal, que não sobra tempo para as pontes humanas. Ele é uma ilha que voa.

Um homem que viaja tanto não se pode dar ao luxo de ter vínculos afetivos. Ele não quer esposa e filhos, amigos ou família: pois não pode carregar pessoas em sua bagagem. He likes to travel light. E sua paixão pela leveza de sua compacta suitcase fez com que nada na sua vida pesasse. O curioso neste homem não é o fato dele ter reduzido ao mínimo o peso de seus pertences, para que coubessem numa mala que passasse rápido pelo check-in dos cento e poucos aeroportos que conhece por ano. O curioso é que ele tenha feito com as pessoas o mesmo que fez com seus pertences. Ele as reduziu ao mínimo. Ele as reduziu a nada.

Desta vez, trata-se de não se apegar a nada não para fugir do capitalismo, mas para melhor servi-lo, com a devoção de um perfeito workaholic que não deixa nenhum sentimento humanístico atrapalhar sua eficiência. Se o protagonista do Clube da Luta realiza literalmente o "programa" que o protagonista de Up In The Air apregoa a seus ouvintes nas palestras motivacionais (ou seja, põe tudo o que possui numa mochila e bota fogo nela), é pela percepção de seu alter-ego Tyler Durden de que "as coisas que você possui acabam possuindo você". É um gesto de rebeldia e de nojo, um grito feroz que dá alguém que se sente muito desconfortável na sociedade de consumo. Já o personagem de Clooney, ao contrário, é um perfeito bem-ajustado a esta sociedade. E que conseguiu ficar assim com doses cavalares de cinismo - não só retórico, mas vivido. Um cinismo que beira o niilismo.

E o pior de tudo: ele se acha um cara pra lá de "cool" por não ter vínculos --- “afinal amar ao próximo é tão démodé”... É com um olhar cáustico e desdenhoso que ele recobre aqueles “ingênuos” que ainda acreditam nas obsoletas “ilusões românticas”. Mas "de close em close ele vai perdendo a pose", para parafrasear a canção de Chico Buarque ("Lily Brown"). Seu orgulho por ser um solteirão que não pretende entrar para a caretice que é o amor vai ser abalada por uma sensação de solidão cada vez pior.

Com completo ceticismo, ele pede que lhe vendam o matrimônio ("sell me marriage!"), como se fosse um produto de supermercado que ele já está convencido de antemão a não comprar. É sintomático que este homem, tão viciado por sua vida no corporativismo, imagine os "bens afetivos" como se fossem mercadorias, que precisam inclusive ser defendidos com técnicas de marketing. É com um certo escárnio que Bingham trata dos "romantismos ingênuos" dos jovenzinhos ainda não desencantados, que acreditam na miragem de um amor que faz o universo inteiro se calar e só existir, no centro absoluto do quadro, a pessoa amada. E é com um certo desprezo, condescendente, como um paizão que olha de cima pra baixo pra filhota e diz que ela ainda tem muito a aprender nesta vida, que ele diz: "Seu conceito de realidade irá evoluir aos poucos...". Como se o conceito de realidade dele fosse evoluído e não imbecilizado!



:: FITTER, HAPPIER, AND MORE PRODUCTIVE

O fato da tecnologia ser descrita no filme mais pelos seus aspectos absurdos e enregelantes denota um certo desconforto com a "obsessão tecnológica" em que se meteu o Ocidente --- a ponto da técnica tornar-se quase um fim em si. Chegou-se a um ponto tão crítico que relacionamentos amorosos são desfeitos por torpedo e pessoas são despedidas por teleconferência. Não parece longe o tempo em que aparelhos de ar-condicionado serão instalados nas matas, como na música do Grandaddy, e muita gente perderá a capacidade de escrever uma frase com mais caracteres do que os permitidos pelo Twitter. É o fim da picada.

E não demora para que os robôs, devidamente programados, tratarão de fazer este servicinho sujo que faz Bingham... Em poucos anos, funcionários de grandes corporações vão receber, no dia de tomarem o pé na bunda, uma dessas ligações gravadas que ouvimos quando ligamos pro banco ou pra companhia aérea... A mesma mensagem de adeus será transmitida a cada um dos demitidos, numa voz feminina dócil e compassiva, utilizando pronomes bastante pessoais, garantindo ao ex-empregado que seu futuro será doce alhures e que ele deve encarar este momento como o de um "renascimento"...

E talvez alguns desses que serão demitidos pelo telefone por um robôzinho talvez fiquem tão fulos que tomem algum tipo de ação contra uma sociedade que se robotiza e des-humaniza a este ponto. Sim: é muito mais cômodo para os grandes capitalistas e acionistas pôr um robô para varrer porta afora os parafasusinhos humanos da grande engrenagem da empresa que pararam de ser utéis e ou estão minimizando os lucros. Assim eles não precisam ver, escrito no rosto concreto e único das pessoas que põe na rua, as marcas de cansaço, o brilho no olhar dos sonhos, a apavorante imaginação de um futuro onde não se terá comida para dar aos filhos, nem roupas para acalentá-los...

De certo modo, Bingham já é um precursor deste hipotético robô despedidor de homens. Ele vive uma vida que na fachada pode até parecer "chique" e invejável, mas que é no fundo extremamente miserável. É uma infelicidade que George Clooney não tenha percebido que seu personagem é um cara escroto, profundamente infeliz nas profundezas de seu ser, interpretando-o como sempre faz: sendo o galã boa-pinta que arranca suspiros da mulherada e que interessa-se mais pela auto-promoção do que pela encarnação visceral do personagem. A sensação é a de que ele já interpretou umas 5 vezes antes este mesmo homem - ótimo no xaveco, sagaz nas tiradinhas e sempre com pose de bonitão.

Apesar de não ser exatamente uma “má-atuação”, é uma atuação que denota que Clooney não entendeu direito o personagem, cujo vazio existencial e moral não fica tão explicitado assim, aplacando um pouco o potencial crítico do filme devido ao “charminho” que o ator quer sempre emprestar a seus papéis. O que ele deveria ter enfatizado melhor em sua performance é o fato de que a vida de Bingham é miserável e vazia, deprimente e desértica, artificial e hipócrita. Até mesmo seu hedonismozinho-de-riquinho é grotesco. Aquela "festa corporativa", por exemplo, invadida pelo trio de penetras, me deu tamanho asco que se eu estivesse lá gorfaria minhas entranhas ainda que num tivesse bebido uma gota. Que festa escrota!

Simone Weil não chegou a prever a que extremos o tal do desenraizamento poderia chegar na Era do Avião e da Informática. Bingham é a representação de um homem profundamente marcado por esta era: incapaz de estabelecer ligações afetivas, vive num sonambulismo cínico e numa constante solidão-em-meio-à-multidão. Sua única lealdade é às empresas aéreas. Seu maior orgulho é o número de diferentes cartões - de crédito, de clubes e de cliente-de-ouro - que deixam pançudinha sua carteira. Seu único objetivo na vida: atingir 10 milhões de milhas voadas, o que lhe dará a honra de possuir como troféu um cartão que só 6 homens no mundo possuem. Só "objetivos-de-vida" individualistas e vãos: vanidade da vaidade, vazio da vida. Pois apesar de suas estadias em Hiltons, seus rangos de caviar, seus cartões de crédito reluzentes, seus namoricos furtivos, ele permanece sempre um homem sem raízes, de coração gelado e emocionalmente amputado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

:: Avatar ::


Polemizando com Avatar

- algumas provocações -
"É chegado o momento, há muito previsto, em que o capitalismo está a ponto de ver seu desenvolvimento interrompido por limites intrasponíveis. De qualquer maneira que se interprete o fenômeno da acumulação, está claro que o capitalismo significa essencialmente expansão econômica e que a expansão capitalista não está mais longe do momento em que se chocará contra os próprios limites da superfície terrestre." --- SIMONE WEIL, Opressão e Liberdade



Mas o capitalismo não desiste tão fácil. Avatar, dando um rolê imaginário por um futuro não tão distante, fotografa uma nova era de uma geopolítica que deixou de ser "geo" e passou a ser cosmopolítica: a Era do Imperialismo Intergaláctico. A expansão econômica, chocando-se com os limites da superfície terrestre, precisa transcendê-los: and the sky is no longer the limit. E pobres dos povos nativos de outros planetas que tiverem a infelicidade de possuir recursos naturais que interessam aos humanos!

Ai de Etzinho metido à besta que queira ficar no caminho dos tanques humanos, esfomeados pelas novas versões do ouro e do petróleo! Quem resistir, dizem os soldadadinhos americanos aos ETs (benévolos e quase spielberguianos), vai tomar é pipoco! Ai das tribos que quiserem se levantar para proteger o que lhes é de direito... correm o risco de serem invadidas, bombardeadas e pilhadas pela ganância do Homem Branco enfurecido --- ele que, exatamente como o chefe militar de Avatar, desdenha da diplomacia e é adepto do método-Scharzenegger de resolução de conflitos políticios (isto é, partir pra porrada).

Depois de terem espoliado todas as colônias da África e da América nos séculos das Grandes Navegações, depois de terem travestido de missões humanitárias suas intervenções no Oriente Médio sedentas por "ouro negro", depois do "Ocidente ter tratado o Islã como um recurso natural, seus exércitos invencíveis marchando pelas terras da Fé como tratores", depois de ter "retalhado nosso mundo em colônias, sorrindo para nós com terrível perfídia esquizofrênica" (como diz um personagem árabe de Bruce Sterling num excelente conto de Futuro Proibido), chegou um novo momento para as Forças do Capital. Já que os foguetes e naves espaciais o permitem (a Santa Ciência a serviço do Imperialismo!), é tempo de ir espoliar os alienígenas... que não passam de Novos Indígenas. Pobrecitos!

Seria de se imaginar que um conto de ficção científica criado por humanos fosse nos descrever como pobres vítimas da invasão de marcianos malévolos, desejosos de iniciar uma Guerra dos Mundos, explodir a Casa Branca em pleno Independence Day ou nos fulminar com suas arminhas de raio laser. Mas há tempos que os grandes autores da literatura sci-fi e cyberpunk já trataram de inverter a perspectiva: Ray Bradbury, por exemplo, em seu clássico As Crônicas Marcianas fez dos terráqueos os verdadeiros vilões - gananciosos, ignorantes, truculentos, desrespeitosos e bêbados - que levam só desgraça e aniquilação ao pobre planeta Vermelho. É: há tempos que os mais perceptivos e sagazes dos autores "futuristas" imagina que a chegada do homo sapiens a outros planetas seria para os nativos o equivalente da chegada da peste.


Por um lado, acho até positivo que o filme demonize esta união diabólica entre acionistas-imperialistas-e-militares que invade Pandora para roubar suas riquezas. Não é tão comum assim que um roliudiano de alta estirpe faça dos exércitos descerebrados os grandes vilões da história e ponha o dedo na ferida de uma das indústrias mais poderosas dos EUA --- a bélica.

Mas Cameron, como comentarista político, me parece muito tosqueira. Primeiro pois, como bom americano, tem uma visão contaminada por um maniqueísmo crasso. É verdade que, neste caso, o pólo que ele demoniza é o do Exército-irmanado-com-o-Capital e que os nativos indefesos e puros (o retorno do Mito do Bom Selvagem de Rousseau...) são "angelizados". Mas um maniqueísmo de fundo está sempre presente, vendendo a falsa noção de que a realidade é simplória a ponto de poder ser rachada entre mocinhos e vilões. E pior de tudo: sustentando a tese de que Deus está do lado dos bons -- como fica óbvio por aquele desfecho, que o Vilaça chamou muito espirituosamente de eywa ex machina, onde as forças elementares de Pandora se levantam para "pôr o tempo de volta nos trilhos" (Shakespeare, muito mais lúcido, não deu a Hamlet a mesma moleza...).

Doidinho de vontade de inventar um final feliz onde os bons-selvagens se safassem da fúria do "povo do céu", Cameron tirou da manga um truque baixo de cineasta: o que os teóricos chamam de deux ex machina e que eu sempre apelidei mesmo é de marmelada. Mas não há nada de inocente nesta marmelada cameriana, cujo efeito subliminar é disseminar uma superstição muito cara aos ecologistas mais ingênuos: imaginar o Planeta como um Deus. É o retorno de todo o riponguismo supersticioso contido no conceito de Gaia. Quando todas as criaturas vivas de Pandora se unem para espantar os invasores, o roteiro de Cameron perde toda potencialidade de metáfora política que poderia ter desenvolvido e, literalmente, entrega tudo nas mãos de Deus - ou de Eywa, o que dá na mesma.


Se, em algumas cenas, Avatar alça-se quase ao nível trágico, ao retratar com que truculência os exércitos terráqueos arrasam aquilo que há de mais sagrado no ecossistema de Pandora e no sistema religioso dos Navi, James Cameron sempre se acovarda rápido e retorno correndo ao seu modo usual de proceder --- que é o crowd-pleasing all-the-way. Algum psicanalista poderia até cunhar, para descrever a psicopatologia daqueles que são junkies de fama, sedentos por aplausos, algo como o Complexo de Cameron (muito mais grave, Philip Roth há de convir, que o Complexo de Portnoy!).

O que poderia ter sido um interessante conto sci-fi retratando um choque entre civilizações, uma interessada em espoliar a outra, cai na superstição e no messianismo. Prova disso é aquele "misticismo" um tanto piegas que Cameron espalha na tela quando tenta descrever a linda "espiritualidade" dos nativos. A idéia talvez tenha sido representar uma religião "primitiva", matriarcal, uma espécie de panteísmo animista --- mas que, apesar de suas similaridades com a espiritualidade oriental, não carrega nem um pingo da sabedoria milenar veiculada pelo budismo, o hinduísmo ou o taoísmo. O crítico da Salon até gracejou que "um dos rituais sagrados dos Navi parece um montão com uma aula de iôga de Beverly Hills". Quando um cineasta americado, tendo 400 milhões de dólares para passar sua noção do que seja a 'espiritualidade' recorrendo a efeitos especiais de última geração, corram por suas vidas! (Vejam que coisa abominável fez também o Darren Aronofsky em seu Fonte da Vida!)

Os que adoraram o filme talvez sustentem que aqui se lida com "personagens arquetípicos" -- mas isso me parece só uma tentativa de tornar este roteirinho ralo algo digno de figurar num compêndio de narrativas mitólogicas de Jung, Joseph Campbell ou Heinrich Zimmer. Quando qualquer um que tenha lido O Poder do Mito (Campbell) ou A Conquista Psicológica Do Mal (Zimmer) sentirá que a historinha de Avatar é uma ninharia. Além disso, como já foi muito notado, este tosco roteiro "original" de Cameron é pura recauchutagem de Dança com Lobos ou Pocahontas (sem falar em Bradbury). Pior: este mito da indiazinha, depois de ter virado desenhinho da Disney, já foi transformado em filme com muita classe por Terence Mallick em seu "O Novo Mundo".

Resta, é claro, o "fator" visual - e nele, parece, Avatar é inatacável e invulnerável. É batata que ele será o Bicho-Papão da imensa maioria dos Oscar "técnicos" de 2010 (não que eu ache isso grande coisa... grande merda!)! Quase universalmente aclama-se que Pandora parece extremamente real, plausível, verossímil. E a experiência de "visitar" este planeta é descrita nos termos mais lisonjeiros e extasiados. É um deslumbramento. Causa uma imersão total e o esquecimento de si. É um "espetáculo inesquecível" (Vilaça), "beyond stunning" e "inspiring awe" (Mary-Ann Johanson). Pura magia.
Sim: esse filme não teria se tornado este excelente negócio, de lucro (literalmente) bilionário, se não fosse um filme de narrativa cativante, visual deslumbrante, uma diversão excelente. Um filme que assiste-se com os olhos grudados na tela --- que parece imantada. E é também inegável o quanto a tecnologia tem se desenvolvido no sentido de tornar os seres-de-CGI, criados digitalmente, comoverem grandes massas humanas - como foi o caso do robôzinho lixeiro Wall-E, do Gato-de-Botas de Shrek e desta bela Navi que chora lágrimas que soam tão tão reais.

Mas é preciso pôr as coisas num contexto mais amplo... senão a gente fica numa pagação de pau pela técnica como se ela fosse um fim em si - o que é um perigo. É sempre bom lembrar que, pau-a-pau com a bélica e a petrolífera, uma das indústrias mais lucrativas da América é justamente a do entretenimento --- e nesta indústria Mr. James Cameron é a menina-dos-olhos de seu país, o mágico multiplicador de dólares, o rei do mundo dos lucros, responsável pelos dois filmes de maior bilheteria da história do cinema, que estampa as capas das revistas de negócios como se fosse um gênio de Wall Street... Mesmo no Brasil: ele está atualmente na capa da Isto É Dinheiro, por exemplo, tendo seu saco puxado em virtude de seu "empreendedorismo" e faro comercial...

Não haverá aí uma contradição escancarada entre o que o filme pretende ser em seu enredo e o que ele é de fato no mundo concreto? Apesar de ter sido financiado por uma imensa empresa capitalista (e a FOX não pegou leve: investiu cerca de 400 milhões de dólares no filme), e apesar de estar gerando um dos mais altos faturamentos de bilheteria na história da indústria do cinema (tendo ultrapassado velozmente 1 bilhão de dólares), Avatar balbucia timidamente algumas "críticas ao Sistema" --- mas é justamente ao Sistema ao qual ele serve tão bem!

Outra contradição: "a mensagem de Cameron pode até ser estritamente anti-bélica, mas a segunda metade do filme utiliza-se das brutalidades do combate para exacerbar a excitação", aponta a matéria do Salon. Sim: é um filme anti-bélico na fachada, mas que aposta que o público irá encher a poupança do estúdio de doletas para assistir, em êxtase, a imagens de destruição e combate altamente estilizadas.

Sem falar que não deixa de ser irônico que um filme cuja tese principal é que devemos recuperar nosso contato harmonioso e bucólico com a natureza, plugando nossos rabinhos tão ególatras em toda criatura viva para senti-la pulsar e respirar, seja a produção mais saturada de efeitos visuais e digitais da história do cinema --- mais obeso de CGI que a pança do Homer é de Duff Beer.

* * * *
"Ecoando a conquista do Velho Oeste, com seus sangrentos conflitos entre os colonizadores e os índios norte-americanos, o roteiro de Cameron não esconde que enxerga os Na’vi como os peles-vermelhas (aqui peles-azuis) que foram dizimados e expulsos de suas terras pelos homens brancos, o que se reflete até mesmo nas roupas dos alienígenas, em seus gritos de guerra e em sua predileção pelo arco-e-flecha", arrisca ainda o Vilaça, que apelida Avatar com o bonitinho rótulo de sci-fistern (ficção científica + western). Eu diria até que, se com Matrix o cinema entrou na era do cyberpunk, com Avatar entra na do cyber-hippie...

Beleza. A analogia não precisa se restringir somente à sangrenta Marcha Para o Oeste americana, mas também à invasão de países no Oriente Médio, regados a petróleo, contra quem os EUA dão sempre um jeito de iniciar uma "guerra preventiva" ou uma "missão humanitária em nome da liberdade e da justiça". A citação à Guerra do Vietnã também é feita quando os Navi sustentam que poderão se defender da invasão por conhecerem muito melhor o território --- exatamente o caso dos vietcongues. O problema com Avatar é que Pandora é só um mundinho de fantasia onde as contradições políticas e econômicas do Planeta Terra não vigem, restando somente um mundinho fechado de "bons selvagens" dignos da utopia de Jean-Jacques Rousseau.

É claro que há pouca semelhança entre esses fofinhos e pacíficos Navi e os fanáticos religiosos muçulmanos que se fazem homens-bomba e kamizakes, por exemplo --- de modo que não sei que utilidade Avatar pode ter no debate público e na resolução dos principais conflitos geopolíticos hoje em curso. É um filme cheio de bom-mocismo e todo politicamente correto, mas contraditório e raso. Sem falar que a ingênua exortação para que se viva em harmonia com a Natureza é um tanto difícil de seguir à risca em Bagdá ou Cabul, na Faixa de Gaza ou nos Bálcãs... lá a miséria é muito extrema, a guerra é muito cotidiana e a o ambiente ao redor (tomado por tanques e ruínas) não tem nada do esplendor kitsch e fake desta Pandora imaginária...

A questão é: como amar a Natureza aqui na Terra se esta Natureza foi tão poluída e conspurcada pela expansão do capital que não resta dela quase nada que se assemelhe às exuberantes belezas de Pandora? Parece aproximar-se o dia em que só poderemos amar Naturezas Inventadas (ou seja, meros Artifícios), esparramadas sobre telas de cinema gigantescas, frente às quais sonharemos em transe com nossos óclinhos 3D e nossos copões de Coca-Cola, extasiados frente às mentiras fabricadas via CGI por estúdios de Hollywood brincando de deus....