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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

:: Too Much Monkey Business ::

:: O INVENTOR DA MOCIDADE ::
(Monkey Business)

de Howard Hawks (1952)


"We dream of youth. We remember it as a time of nightingales and valentines, but what are the facts? Mal-adjustment, near-idiocy and a series of low-comedy disasters, that's what youth is. I don't see how anyone survives it." --- DR. BARNABY FULTON

"...it is the most unfortunate of illusions which Hawks rather cruelly attacks: the notion of adolescence and childhood as barbarous states from which we are rescued by education. The child is scarcely distinguishable from the savage he imitates in his games: and a most distinguished old man, after he has drunk the precious fluid, takes delight in imitating a chimp. One can find in this a classical conception of man as a creature whose only path to greatness lies through experience and maturity; at the end of his journey, it is his old age which will be his judge." --- JACQUES RIVETTE, "The Genius Of Howard Hawks" (Cahiers Du Cinema #53, Maio de 1953)


A morte é incontornável, mas a humanidade sempre teima em tentar dribá-la. Sejamos crentes ou ateus, "primitivos" ou "civilizados", da cor e da classe que formos, fugimos da Grande Foice como o diabo da cruz. E a "negação da morte", como dizia Ernest Becker, é uma força psicológica de imenso poder a agir nas profundezas de nossas psiques temerosas e angustiadas. Pedimos auxílio à ciência, investindo milhões em pesquisa destinada a prolongar a longevidade do corpo humano, enquanto imploramos para que os médicos tornem-no cada vez menos atacável pelas pragas e doenças. Sem falar que, por séculos, quando a ciência não era ainda tão idolatrada como é hoje, inventamos mil-e-um contos-de-fada que foram instituídos em religiões e que nos contavam a lorotinha de que a morte não existe e que a eternidade será uma grande festa... O passado, o presente e o futuro de nossa pobre raça, a única consciente de sua condenação à mortalidade em todo o reino animal, está marcada, como a testa de Caim, por este fardo. Desde as pirâmides do Egito até o sonho futurista de uma Era da Criogenia, tudo aponta a persistência no tempo de um sonho imemorial porque irrealizável...


O que se procura com tanto afã em O Inventor da Mocidade é a fórmula de uma droga capaz de rejuvesner magicamente seu consumidor --- o equivalente da Fonte da Juventude na Era da Farmacopéia Industrial. E o Dr Barnaby Fulton (Cary Grant), encarnando com muita graça a figura do "cientista amalucado" e genial, é um excêntrico pesquisador de uma grande corporação farmacêutica que está doidinha para fazer fortuna com a Substância Mágica Que Vai Superar o Envelhecimento. Nos laboratórios repletos de macacos-cobaia, Fulton e seu time procuram inventar um remédio que deixaria o Viagra e o Prozac no chinelo. A panacéia sonhada já foi até pré-batizada de B-4 (leia-se "Before") e trará estampada em sua embalagem a mítica imagem do Fênix, prometendo aos consumidores que eles ressurgirão das cinzas da idade, voando rumo ao céu inexplorado de uma nova mocidade!

Mas este, não sendo um filme de Bergman ou Kieslowski, não tem como intenção se aprofundar nos meandros existenciais do processo de envelhecimento humano, descrevendo o terror e a angústia de seres que vão irremediavelmente fenecendo e enrugando --- withering and dying away -- sem o terem merecido e sem nada poderem contra o rolo compressor impiedoso da morte em marcha. O Inventor da Mocidade não tem nada de Sonata de Outono. A poção mágica, aqui, é mero pretexto para um desfilar de gags, piadinhas e cenas de extrema absurdidade no melhor estilo das screwball-comedy da fase clássica de Hollywood.

No fundo, acaba soando como se fosse um filme sobre as loucuras que as pessoas cometem quando tomam um homérico porre. Mas como não é politicamente correto (e pegaria mal pra Warner Brothers!) que o filme fosse sobre bebuns, inventou-se a tal da bebidinha rejuvenescedora --- que deixa a obra de Hawks com um agradável sabor de sci-fi em atmosfera de chacota. Mas, no fundo, a criação farmacêutica de Barnaby tem o mesmo efeito que teriam umas 5 doses de vodka: dá uma marteladinha no super-ego, chuta pra escanteio as inibições e nos deixa seu usuário alegremente retardado.
Quando Cary Grant, por engano, toma sua primeira dose do Elixir da Juventude, transforma-se de um velhote circunspecto e amante da ciência num molecão levado-da-breca e sem freios morais. Sai por aí como se fosse um colegial: faz um corte de cabelo moderninho, compra um terno alegre e um conversível turbinado, e não resiste a passear pela cidade exibindo seus dotes viris para uma deslumbrante Marilyn Monroe -- que interpreta, é claro, a secretária gostosa (e burrinha) do patrão. É claro que quando o maridão volta pra casa cheio de marcas de lipstick, e confessa que sua fonte é a loiraça, sua patroa não gosta nada. Está armado o circo. Que é tão mais caótico porque a beberagem foi acidentalmente despejada no filtro de água do laboratório --- de modo que a chapação será geral e a infantilidade virará epidemia.


Já é um "charme em si" ver juntos Cary Grant, em um de seus papéis mais cômicos, e Marilyn Monroe, em sua fase áurea. Este é mais um dos filmes que sedimenta tanto o irrestível glamour de miss Monroe, a maior sex symbol do século, quanto aprofunda sua reputação de "loira burra". Ela, aqui, é tapadinha como uma toupeira, incompetente até para a datilografia e só tem um emprego firmeza, é claro, por causa de sua formosura. Prova disso é aquela cena em que o chefe lhe entrega uma folha e lhe diz: "Ache alguém para digitar isso. Qualquer um sabe digitar!"



Pode-se dizer que o filme sublinha o fato de que muitas descobertas científicas se devem ao acaso --- como aquela célebre maçã que, despencando no quengo do Newton, fez com que o cérebro dele, pegando no tranco, gritasse o "eureka!" que gerou a teoria da gravitação universal. Mas eu diria que o paralelo mais certeiro é com outro magistral achado da ciência que também se deveu a uma mãozinha do acaso: o causo de Albert Hoffman (1906-2008), o cientista suíço que trampava com ácido lisérgico e acabou acidentalmente sintetizando o LSD e sendo sua primeira cobaia. Deste feliz acidente, que o cientista pôde experimentar em sua própria consciência, em primeira mão, nasceria a substância mais louvada pela juventude sessentista, parteira de pérolas como Sgt. Peppers, Pet Sounds, The Piper At The Gates Of Dawn, Timothy Leary como guru cultural e o caraio-a-quatro.

O Doutor Barnaby de Grant, aliás, descreve os efeitos de sua beberagem como se estivesse embriagado com alguma substância redentora, que aguça seus sentidos, aumenta sua força física, replenifica suas energias e lhe traz uma "imensa sensação de bem-estar". Não muito diferente do que conta-se que ocorreu com Hoffman, retornando para casa naquele glorioso dia para a humanidade em que consumiu por acidente uma dosinha de LSD e experimentou um passeio de bicicleta que imagino ter sido mais repleto de magia do que aquele do menininho do E.T. que decola rumo à Lua... =)


Monkey Business, apesar da graciosidade com que descreve as atitudes humanas sob o efeito da bebida que rejuvenesce, também metralha sem dó o mito ilusório da juventude feliz. Como naquele espirituoso trecho em que o personagem de Grant destaca o quanto a mocidade é superestimada: "Nós sonhamos com a juventude. A imaginamos com uma época de rouxinóis e namoricos, mas quais são os fatos? Desajuste, semi-idiotia e uma série de desastres de comédias baratas -- é isto a juventude. Não entendo como as pessoas sobrevivem a ela" (vide epígrafe -- tradução minha).

O que me lembra de Nelson Rodrigues que, quando instado a oferecer palavras de conselho aos mais novos, soltou a pérola: "Jovens, envelheçam!" Frase engraçada, claro, mas que talvez soe meio impregnada da arrogância de um tiozão que se acha muito melhor que a molecada. Kurt Vonnegut Jr., quando lhe pediram que fizesse o mesmo, chamou a atenção para a babaquice e a barbárie de sua própria geração e transmitiu o seguinte como síntese da sabedoria a que se alçaram os mais velhos: "Please accept our apollogies" (Por favor aceitem nossas desculpas). E nem vou citar William Burroughs e suas Words Of Advice For Young People por respeito aos mais sensíveis...

Jacques Rivette, que escreveu para a Cahiers du Cinema, em 1953, um memorável artigo sobre "O Gênio de Howard Hawks", sugere que aquilo que está sendo "cruelmente atacado" pelo filme é a "tentação do infantilismo" e da "bestialidade". Ele sublinha ainda que o filme lida com a "fascinação" que exerce sobre nós a "degradação" e a "decadência" --- como se sentíssemos saudade do tempo em que podíamos ser maus, agir em completa entrega aos instintos, como que uma nostalgia do paraíso perdido do tempo pré-super-ego, onde a perversidade não encontrava muitos freios.

A noção da criança como um anjinho de bondade com auréola dourada sobre a cabecinha é totalmente escamoteada --- como na cena em que, brincando de índio, os guris (dignos de O Senhor das Moscas) concebem que antes de escalpelar alguém é preciso fazer a Dança da Morte, e na sequência cantam e urram como pequenos selvagens. Longe de idealizar a infância e a adolescência, O Inventor da Mocidade parece sugerir que o mito de que estas são idades idílicas da vida é invenção de velhotes nostálgicos; é a saudade deles que imagina que foi doce aquilo que, quando vivido, foi bem mais amargo do que se admite.

A "droga" que inventa-se em Monkey Business oferece ao consumidor a posse provisória de algumas características juvenis invejáveis, sim: espontaneidade, urgência, imprudência, senso de humor aguçado. Mas ao mesmo tempo que traz à tona muita perversidade, estupidez e primitivismo comportamental. Vale notar que o casamento dos Fulton (Grant e Ginger Rogers) sai ameaçado de ir pras cucuias justamente quando ambos tomam a bebida, tornando-se infantis, brigando por ninharias e tendo crises de ciúme. A poção da juventude faz o casal quase se destruir devido à infantilidade que insere num relacionamento que até ali parecia ser feliz e maduro --- feliz porque maduro!

O que, na utopia tecno-científica seria uma panacéia e um imenso bem, acaba se mostrando, na realidade, como uma desgracenta substância que põe fogo no circo, desestabiliza todas as relações sociais e instaura a anarquia na família e na empresa. Isto não é necessariamente mal, se pensarmos no quanto a família e a empresa podem ser instituições perversas e sanguessugas, mas o filme, apesar de não trazer uma "moral da história" claramente exposta, parece sugerir mesmo que "o homem é uma criatura cujo único caminho para a grandeza se encontra na experiência e na maturidade", na bela expressão de Rivette. Seria moralismo? Ou somente um modo de provar, através da comédia, o quanto somos ridículos quando, homens feitos, agimos como criancinhas idióticas?

* * * * *

Vale lembrar, para finalizar, que este era um dos filmes prediletos de Sérgio Buarque de Hollanda --- como revelam seus filhos no documentário Raízes do Brasil (de Joaquim Pedro de Andrade). Não é difícil entender porquê: como o Antonio Candido comenta, o pai de Chico Buarque foi um intelectual que conseguia unir uma intensa dedicação ao estudo e à vida acadêmica com um gosto notável por uma baguncinha. Não surpreende, pois, que tenha se identificado tanto com a história do cientista maluco encarnado por Cary Grant neste Negócio de Macaco que Howard Hawks tirou da cartola em 1952. Como o Dr. Barnaby, dedicadíssimo à ciência mas capaz de muita molecagem, Sérgio Buarque de Hollanda foi também exemplo desta união tão frutífera entre a erudição cheia de dedicação e a efervescência da alegria. Passo a palavra a seu ilustre amigo e companheiro de FFLCH:

"Sérgio era um conjunto muito complexo em que uma coisa negava a outra: era um erudito extraordinário, mas muito inclinado à molecagem; era um camarada de uma seriedade intelectual fora do comum e um gozador de marca maior. (...) Apesar de muito consciente do dever do intelectual no ângulo da seriedade, assimilou todas as características dos modernistas de 1922. Foi formado na atmosfera da Semana de Arte Moderna e por isso guardou sempre a molecagem, a gozação, a brincadeira. Pois os modernistas ensinaram à literatura brasileira que a pessoa, pra ser séria, não precisa ser trombuda. (...) Nele havia a combinação do imenso erudito com a criatura alegre, inconformada e não-convencional. (...) Ele tinha a capacidade de fazer loucuras, e sem a capacidade de fazer loucuras não existe paixão." --- ANTÔNIO CÂNDIDO


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