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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

:: Avatar ::


Polemizando com Avatar

- algumas provocações -
"É chegado o momento, há muito previsto, em que o capitalismo está a ponto de ver seu desenvolvimento interrompido por limites intrasponíveis. De qualquer maneira que se interprete o fenômeno da acumulação, está claro que o capitalismo significa essencialmente expansão econômica e que a expansão capitalista não está mais longe do momento em que se chocará contra os próprios limites da superfície terrestre." --- SIMONE WEIL, Opressão e Liberdade



Mas o capitalismo não desiste tão fácil. Avatar, dando um rolê imaginário por um futuro não tão distante, fotografa uma nova era de uma geopolítica que deixou de ser "geo" e passou a ser cosmopolítica: a Era do Imperialismo Intergaláctico. A expansão econômica, chocando-se com os limites da superfície terrestre, precisa transcendê-los: and the sky is no longer the limit. E pobres dos povos nativos de outros planetas que tiverem a infelicidade de possuir recursos naturais que interessam aos humanos!

Ai de Etzinho metido à besta que queira ficar no caminho dos tanques humanos, esfomeados pelas novas versões do ouro e do petróleo! Quem resistir, dizem os soldadadinhos americanos aos ETs (benévolos e quase spielberguianos), vai tomar é pipoco! Ai das tribos que quiserem se levantar para proteger o que lhes é de direito... correm o risco de serem invadidas, bombardeadas e pilhadas pela ganância do Homem Branco enfurecido --- ele que, exatamente como o chefe militar de Avatar, desdenha da diplomacia e é adepto do método-Scharzenegger de resolução de conflitos políticios (isto é, partir pra porrada).

Depois de terem espoliado todas as colônias da África e da América nos séculos das Grandes Navegações, depois de terem travestido de missões humanitárias suas intervenções no Oriente Médio sedentas por "ouro negro", depois do "Ocidente ter tratado o Islã como um recurso natural, seus exércitos invencíveis marchando pelas terras da Fé como tratores", depois de ter "retalhado nosso mundo em colônias, sorrindo para nós com terrível perfídia esquizofrênica" (como diz um personagem árabe de Bruce Sterling num excelente conto de Futuro Proibido), chegou um novo momento para as Forças do Capital. Já que os foguetes e naves espaciais o permitem (a Santa Ciência a serviço do Imperialismo!), é tempo de ir espoliar os alienígenas... que não passam de Novos Indígenas. Pobrecitos!

Seria de se imaginar que um conto de ficção científica criado por humanos fosse nos descrever como pobres vítimas da invasão de marcianos malévolos, desejosos de iniciar uma Guerra dos Mundos, explodir a Casa Branca em pleno Independence Day ou nos fulminar com suas arminhas de raio laser. Mas há tempos que os grandes autores da literatura sci-fi e cyberpunk já trataram de inverter a perspectiva: Ray Bradbury, por exemplo, em seu clássico As Crônicas Marcianas fez dos terráqueos os verdadeiros vilões - gananciosos, ignorantes, truculentos, desrespeitosos e bêbados - que levam só desgraça e aniquilação ao pobre planeta Vermelho. É: há tempos que os mais perceptivos e sagazes dos autores "futuristas" imagina que a chegada do homo sapiens a outros planetas seria para os nativos o equivalente da chegada da peste.


Por um lado, acho até positivo que o filme demonize esta união diabólica entre acionistas-imperialistas-e-militares que invade Pandora para roubar suas riquezas. Não é tão comum assim que um roliudiano de alta estirpe faça dos exércitos descerebrados os grandes vilões da história e ponha o dedo na ferida de uma das indústrias mais poderosas dos EUA --- a bélica.

Mas Cameron, como comentarista político, me parece muito tosqueira. Primeiro pois, como bom americano, tem uma visão contaminada por um maniqueísmo crasso. É verdade que, neste caso, o pólo que ele demoniza é o do Exército-irmanado-com-o-Capital e que os nativos indefesos e puros (o retorno do Mito do Bom Selvagem de Rousseau...) são "angelizados". Mas um maniqueísmo de fundo está sempre presente, vendendo a falsa noção de que a realidade é simplória a ponto de poder ser rachada entre mocinhos e vilões. E pior de tudo: sustentando a tese de que Deus está do lado dos bons -- como fica óbvio por aquele desfecho, que o Vilaça chamou muito espirituosamente de eywa ex machina, onde as forças elementares de Pandora se levantam para "pôr o tempo de volta nos trilhos" (Shakespeare, muito mais lúcido, não deu a Hamlet a mesma moleza...).

Doidinho de vontade de inventar um final feliz onde os bons-selvagens se safassem da fúria do "povo do céu", Cameron tirou da manga um truque baixo de cineasta: o que os teóricos chamam de deux ex machina e que eu sempre apelidei mesmo é de marmelada. Mas não há nada de inocente nesta marmelada cameriana, cujo efeito subliminar é disseminar uma superstição muito cara aos ecologistas mais ingênuos: imaginar o Planeta como um Deus. É o retorno de todo o riponguismo supersticioso contido no conceito de Gaia. Quando todas as criaturas vivas de Pandora se unem para espantar os invasores, o roteiro de Cameron perde toda potencialidade de metáfora política que poderia ter desenvolvido e, literalmente, entrega tudo nas mãos de Deus - ou de Eywa, o que dá na mesma.


Se, em algumas cenas, Avatar alça-se quase ao nível trágico, ao retratar com que truculência os exércitos terráqueos arrasam aquilo que há de mais sagrado no ecossistema de Pandora e no sistema religioso dos Navi, James Cameron sempre se acovarda rápido e retorno correndo ao seu modo usual de proceder --- que é o crowd-pleasing all-the-way. Algum psicanalista poderia até cunhar, para descrever a psicopatologia daqueles que são junkies de fama, sedentos por aplausos, algo como o Complexo de Cameron (muito mais grave, Philip Roth há de convir, que o Complexo de Portnoy!).

O que poderia ter sido um interessante conto sci-fi retratando um choque entre civilizações, uma interessada em espoliar a outra, cai na superstição e no messianismo. Prova disso é aquele "misticismo" um tanto piegas que Cameron espalha na tela quando tenta descrever a linda "espiritualidade" dos nativos. A idéia talvez tenha sido representar uma religião "primitiva", matriarcal, uma espécie de panteísmo animista --- mas que, apesar de suas similaridades com a espiritualidade oriental, não carrega nem um pingo da sabedoria milenar veiculada pelo budismo, o hinduísmo ou o taoísmo. O crítico da Salon até gracejou que "um dos rituais sagrados dos Navi parece um montão com uma aula de iôga de Beverly Hills". Quando um cineasta americado, tendo 400 milhões de dólares para passar sua noção do que seja a 'espiritualidade' recorrendo a efeitos especiais de última geração, corram por suas vidas! (Vejam que coisa abominável fez também o Darren Aronofsky em seu Fonte da Vida!)

Os que adoraram o filme talvez sustentem que aqui se lida com "personagens arquetípicos" -- mas isso me parece só uma tentativa de tornar este roteirinho ralo algo digno de figurar num compêndio de narrativas mitólogicas de Jung, Joseph Campbell ou Heinrich Zimmer. Quando qualquer um que tenha lido O Poder do Mito (Campbell) ou A Conquista Psicológica Do Mal (Zimmer) sentirá que a historinha de Avatar é uma ninharia. Além disso, como já foi muito notado, este tosco roteiro "original" de Cameron é pura recauchutagem de Dança com Lobos ou Pocahontas (sem falar em Bradbury). Pior: este mito da indiazinha, depois de ter virado desenhinho da Disney, já foi transformado em filme com muita classe por Terence Mallick em seu "O Novo Mundo".

Resta, é claro, o "fator" visual - e nele, parece, Avatar é inatacável e invulnerável. É batata que ele será o Bicho-Papão da imensa maioria dos Oscar "técnicos" de 2010 (não que eu ache isso grande coisa... grande merda!)! Quase universalmente aclama-se que Pandora parece extremamente real, plausível, verossímil. E a experiência de "visitar" este planeta é descrita nos termos mais lisonjeiros e extasiados. É um deslumbramento. Causa uma imersão total e o esquecimento de si. É um "espetáculo inesquecível" (Vilaça), "beyond stunning" e "inspiring awe" (Mary-Ann Johanson). Pura magia.
Sim: esse filme não teria se tornado este excelente negócio, de lucro (literalmente) bilionário, se não fosse um filme de narrativa cativante, visual deslumbrante, uma diversão excelente. Um filme que assiste-se com os olhos grudados na tela --- que parece imantada. E é também inegável o quanto a tecnologia tem se desenvolvido no sentido de tornar os seres-de-CGI, criados digitalmente, comoverem grandes massas humanas - como foi o caso do robôzinho lixeiro Wall-E, do Gato-de-Botas de Shrek e desta bela Navi que chora lágrimas que soam tão tão reais.

Mas é preciso pôr as coisas num contexto mais amplo... senão a gente fica numa pagação de pau pela técnica como se ela fosse um fim em si - o que é um perigo. É sempre bom lembrar que, pau-a-pau com a bélica e a petrolífera, uma das indústrias mais lucrativas da América é justamente a do entretenimento --- e nesta indústria Mr. James Cameron é a menina-dos-olhos de seu país, o mágico multiplicador de dólares, o rei do mundo dos lucros, responsável pelos dois filmes de maior bilheteria da história do cinema, que estampa as capas das revistas de negócios como se fosse um gênio de Wall Street... Mesmo no Brasil: ele está atualmente na capa da Isto É Dinheiro, por exemplo, tendo seu saco puxado em virtude de seu "empreendedorismo" e faro comercial...

Não haverá aí uma contradição escancarada entre o que o filme pretende ser em seu enredo e o que ele é de fato no mundo concreto? Apesar de ter sido financiado por uma imensa empresa capitalista (e a FOX não pegou leve: investiu cerca de 400 milhões de dólares no filme), e apesar de estar gerando um dos mais altos faturamentos de bilheteria na história da indústria do cinema (tendo ultrapassado velozmente 1 bilhão de dólares), Avatar balbucia timidamente algumas "críticas ao Sistema" --- mas é justamente ao Sistema ao qual ele serve tão bem!

Outra contradição: "a mensagem de Cameron pode até ser estritamente anti-bélica, mas a segunda metade do filme utiliza-se das brutalidades do combate para exacerbar a excitação", aponta a matéria do Salon. Sim: é um filme anti-bélico na fachada, mas que aposta que o público irá encher a poupança do estúdio de doletas para assistir, em êxtase, a imagens de destruição e combate altamente estilizadas.

Sem falar que não deixa de ser irônico que um filme cuja tese principal é que devemos recuperar nosso contato harmonioso e bucólico com a natureza, plugando nossos rabinhos tão ególatras em toda criatura viva para senti-la pulsar e respirar, seja a produção mais saturada de efeitos visuais e digitais da história do cinema --- mais obeso de CGI que a pança do Homer é de Duff Beer.

* * * *
"Ecoando a conquista do Velho Oeste, com seus sangrentos conflitos entre os colonizadores e os índios norte-americanos, o roteiro de Cameron não esconde que enxerga os Na’vi como os peles-vermelhas (aqui peles-azuis) que foram dizimados e expulsos de suas terras pelos homens brancos, o que se reflete até mesmo nas roupas dos alienígenas, em seus gritos de guerra e em sua predileção pelo arco-e-flecha", arrisca ainda o Vilaça, que apelida Avatar com o bonitinho rótulo de sci-fistern (ficção científica + western). Eu diria até que, se com Matrix o cinema entrou na era do cyberpunk, com Avatar entra na do cyber-hippie...

Beleza. A analogia não precisa se restringir somente à sangrenta Marcha Para o Oeste americana, mas também à invasão de países no Oriente Médio, regados a petróleo, contra quem os EUA dão sempre um jeito de iniciar uma "guerra preventiva" ou uma "missão humanitária em nome da liberdade e da justiça". A citação à Guerra do Vietnã também é feita quando os Navi sustentam que poderão se defender da invasão por conhecerem muito melhor o território --- exatamente o caso dos vietcongues. O problema com Avatar é que Pandora é só um mundinho de fantasia onde as contradições políticas e econômicas do Planeta Terra não vigem, restando somente um mundinho fechado de "bons selvagens" dignos da utopia de Jean-Jacques Rousseau.

É claro que há pouca semelhança entre esses fofinhos e pacíficos Navi e os fanáticos religiosos muçulmanos que se fazem homens-bomba e kamizakes, por exemplo --- de modo que não sei que utilidade Avatar pode ter no debate público e na resolução dos principais conflitos geopolíticos hoje em curso. É um filme cheio de bom-mocismo e todo politicamente correto, mas contraditório e raso. Sem falar que a ingênua exortação para que se viva em harmonia com a Natureza é um tanto difícil de seguir à risca em Bagdá ou Cabul, na Faixa de Gaza ou nos Bálcãs... lá a miséria é muito extrema, a guerra é muito cotidiana e a o ambiente ao redor (tomado por tanques e ruínas) não tem nada do esplendor kitsch e fake desta Pandora imaginária...

A questão é: como amar a Natureza aqui na Terra se esta Natureza foi tão poluída e conspurcada pela expansão do capital que não resta dela quase nada que se assemelhe às exuberantes belezas de Pandora? Parece aproximar-se o dia em que só poderemos amar Naturezas Inventadas (ou seja, meros Artifícios), esparramadas sobre telas de cinema gigantescas, frente às quais sonharemos em transe com nossos óclinhos 3D e nossos copões de Coca-Cola, extasiados frente às mentiras fabricadas via CGI por estúdios de Hollywood brincando de deus....

7 comentários:

  1. Essa foi a melhor crítica sobre Avatar que eu li. Reconhece as suas qualidades, mas ataca as suas fragilidades e contradições.
    Parabéns

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  2. Não conhecia seu blog, entrei nele através do Google. É sempre gratificante ler críticas bem fundamentadas, mas sem ser necessariamente mordazes ou virulentas. No entanto, a contundência de argumentos como o do cyber hippie em justaposição ao cyber punk, e os comentários acerca de momentos históricos pobremente citados em Avatar são indiscutíveis!! Sendo um leitor de Ray Bradbury, também, posso identificar essa tentativa do cinema em simplificar os conceitos que a sci-fi original trouxe à baila, como choque de culturas nem sempre tão diferentes entre si, ou tão diferentes a ponto de mal se notarem.
    Fico me perguntando se fiz mal em perder Avatar no cinema, ou se estava certo desde o início, em querer me poupar de uma sessão de deslumbramento juvenil coletivo, e depois ser rechaçado pelos amigos nerds pseudo-adultos, quando queremos debater conceitos e idéias contidas na obra. Acho que acertei, então.
    Grande abraço!!

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  3. Valeu pelos comentários e elogios, Mundim e Raphael! Um blog recém-nascido como este depende muito do feedback da galera para engrenar e decolar... Continuem visitando e deixando impressões (que são sempre bem-vindas)!

    Acho sim que o Cameron "simplificou os conceitos que a sci-fi original trouxe à baila", como disse o Raphael, a ponto do enredo de 'Avatar' soar tosco em comparação com as criações dum Ray Bradbury, um Philip K. Dick, um Kurt Vonnegut Jr, um Stanislaw Lem... Mas vale lembrar que vários clássicos da 7a arte já provaram que é possível sim honrar na telona o que os grandes autores da ficção futurista imaginaram - caso do 2001 do Kubrick ou do Solaris do Tarkovsky, pra ficar só em dois exemplos maiores.

    Ah, e "deslumbramento juvenil coletivo" é uma expressão certeira para descrever a atitude da galerinha com óclitos 3D nos cinemas!

    Abraços e voltem sempre!

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  4. Não vi o filme, mas o texto está muito bem escrito. Congratulações. E não vi o filme baseado na velha mas sempre atual máxima rodriguiana: toda unanimidade é burra. Assim é que me oriento. Se um filme faz sucesso, não o vejo, se um livro vira best-seller, não o leio, se um disco vende bastante, não o escuto. Acho um norte que, pra mim, tem dado certo; pelo menos evita que eu me irrite. Parabéns também pelo blog, muito bom.

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  5. Valeu, Duga, pelas congratulações. Também sigo a máxima rodriguiana com frequência, acreditando que um alto potencial mercadológico quase sempre rima com mau gosto estético... Mas em certos casos, como o de Avatar, não resisti a embarcar na onda, mordi a isca e fui lá satisfazer a minha curiosidade --- ainda que seja para poder falar mal com conhecimento de causa... E para aquela galerinha jovem que achou o filme "lindo e perfeito", vale outra máxima do tio Nelson: "jovens, envelheçam!"

    Um abraço e volte sempre!

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  6. Matou a pau, excelente crítica.

    Aquele papo "new wave" ecológico politicamente correto dos Na'vi é a coisa mais enjoada que eu já vi nos últimos tempos. Confesso que chegou um ponto do filme que eu comecei a torcer pelos militares, rsrsrs

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  7. Definitivamente, a melhor crítica sobre Avatar que li.

    Assisti ao filme, ao contrário das pessoas que comentaram acima. Aliás, discordo de quase todos os comentários, por causa daquele tom elitista entediante de "as multidões não sabem o que fazem e, com licença, sou especial". Oh, que coisa... *bocejo*

    Foi superlegal perceber que eu estava tentando espantar, quase involuntariamente, uma poeirinha que era, na "verdade", uma cinza da cena do filme. O 3d é divertido? É. A impressão que tive é que o filme deveria estar sendo exibido no Hopi Hari, naquele cinema com cadeiras que se mexem.

    Mas a história é boa? Não... E não é boa por todas essas contradições que você soube explicitar tão bem. É "divertido", mas o conteúdo é um discurso binário, antagônico, simplista e com salvação cristã, assim como todas as práticas e discursos da "civilização ocidental".

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