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sábado, 13 de fevereiro de 2010

:: Amor Sem Escalas ::


:: CARRASCO ENGRAVATADO ::
(Up In The Air)
de Jason Reitman


:: IT'S A DIRTY JOB (BUT SOMEONE'S GOTTA DO IT) ::

"Não somos cisnes. Somos tubarões." É uma confissão legítima. Pois este engravatado encarnado por George Clooney, com seus ternos engomadinhos e mais milhas voadas do que a distância entre a Terra e a Lua, está trabalhando para os tubarões. Seu serviço é tacar homens para fora do barco corporativo, em altíssimo mar, para que sirvam de comida para os predadores submarinos.

O trabalho de Bingham é o equivalente ao de um assassino de aluguel, pau-mandado das grandes corporações, mas o que ele fulmina não são vidas, mas empregos. O que por vezes dá no mesmo. A mando das grandes empresas, ele dedica-se a rasgar os vínculos empregatícios com a máxima agilidade e limpeza possível, sem choro nem vela, mandando pro olho-da-rua os empregados que lhe mandam dispensar. A especialização chegou a tais extremos que há um homem que só faz isso na vida: despede os outros. É uma espécie de Pierrepoint do capitalismo --- e que quebra bem mais pescoços do que fez o carrasco francês que Timothy Spall tão bem encarnou em Lavador de Almas.

É um empreguinho dos diabos, por mais bem-pago que seja. Pois quando você é um despedidor-profissional, um chutador-de-bundas-porta-afora, você é um homem perdidamente odiado. Você é o homem que traz as más notícias, às dúzias, para distribuir pela América. Você é aquele que encara o trampo de encarar centenas de homens e mulheres e dizer-lhes: “O senhor está despedido”; “Seus serviços não são mais necessários”; “Trata de limpar sua mesa até o fim-do-dia”. E que depois tem que suportar o choro, a revolta, os ataques histéricos, a gritaria, as ameaças de suicídio, os xingos e todas os outros pitís e chiliques que acometem um despedido.

Em seu primeiro filme, Obrigado Por Fumar, Jason Reitman já fez fina comédia com outro trabalho sujo: seu protagonista, Nick Naylor, era o porta-voz das grandes corporações tabagistas – ou melhor: o advogado sem escrúpulos que tenta defender um conglomerado de empresas vendedoras de cigarro que matam 12 mil pessoas ao dia. Em seu terceiro longa, sucessor de Juno, Reitman volta a tematizar sobre as consequências éticas da execução cotidiana de um emprego “sujo” --- como é o de Bingham, personagem de Clooney.

O emprego que deveria torná-lo mais sensível aos problemas sociais, ao fazê-lo se defrontar com o pesadelo econômico em que uma demissão lança as pessoas, que deveria fazê-lo mais cônscio do quanto podem ser selvagens os mecanismos do mercado de trabalho, só o torna mais frio e invulnerável. Você olha pra este homem e sabe: ele não é mais capaz de se comover com nada. Que chorem, que esperneiem, que quebrem vidros ou ameaçem se matar na frente dele, e a expressão dele permanecerá na mesma calma. Pois ele teve que desenvolver uma carapaça de insensibilidade que lhe permitisse lançar homens e mulheres no pesadelo do desemprego sem se afligir com isso. Dorme em paz todas as noites ainda que as pessoas que despede ameacem pular de pontes ou chorem prevendo que será impossível alimentar os filhos. Paira acima da tempestade das paixões em virtude de sua glacial indiferença.

A razão é um tanto óbvia: ele sempre despede um completo desconhecido. Ele desce do avião, despede o infeliz e volta a decolar. Como perceber de modo concreto a desgraça humana do outro à sua frente se não há tempo para conhecê-lo, se o "relacionamento" brutal que estabelecem é de apenas 15 minutos e jamais se vêem outra vez?


:: UMA ILHA QUE VOA

Este trabalho de Bingham tem seus ecos em sua vida emocional, é claro. São tantas pontes-aéreas, afinal, que não sobra tempo para as pontes humanas. Ele é uma ilha que voa.

Um homem que viaja tanto não se pode dar ao luxo de ter vínculos afetivos. Ele não quer esposa e filhos, amigos ou família: pois não pode carregar pessoas em sua bagagem. He likes to travel light. E sua paixão pela leveza de sua compacta suitcase fez com que nada na sua vida pesasse. O curioso neste homem não é o fato dele ter reduzido ao mínimo o peso de seus pertences, para que coubessem numa mala que passasse rápido pelo check-in dos cento e poucos aeroportos que conhece por ano. O curioso é que ele tenha feito com as pessoas o mesmo que fez com seus pertences. Ele as reduziu ao mínimo. Ele as reduziu a nada.

Desta vez, trata-se de não se apegar a nada não para fugir do capitalismo, mas para melhor servi-lo, com a devoção de um perfeito workaholic que não deixa nenhum sentimento humanístico atrapalhar sua eficiência. Se o protagonista do Clube da Luta realiza literalmente o "programa" que o protagonista de Up In The Air apregoa a seus ouvintes nas palestras motivacionais (ou seja, põe tudo o que possui numa mochila e bota fogo nela), é pela percepção de seu alter-ego Tyler Durden de que "as coisas que você possui acabam possuindo você". É um gesto de rebeldia e de nojo, um grito feroz que dá alguém que se sente muito desconfortável na sociedade de consumo. Já o personagem de Clooney, ao contrário, é um perfeito bem-ajustado a esta sociedade. E que conseguiu ficar assim com doses cavalares de cinismo - não só retórico, mas vivido. Um cinismo que beira o niilismo.

E o pior de tudo: ele se acha um cara pra lá de "cool" por não ter vínculos --- “afinal amar ao próximo é tão démodé”... É com um olhar cáustico e desdenhoso que ele recobre aqueles “ingênuos” que ainda acreditam nas obsoletas “ilusões românticas”. Mas "de close em close ele vai perdendo a pose", para parafrasear a canção de Chico Buarque ("Lily Brown"). Seu orgulho por ser um solteirão que não pretende entrar para a caretice que é o amor vai ser abalada por uma sensação de solidão cada vez pior.

Com completo ceticismo, ele pede que lhe vendam o matrimônio ("sell me marriage!"), como se fosse um produto de supermercado que ele já está convencido de antemão a não comprar. É sintomático que este homem, tão viciado por sua vida no corporativismo, imagine os "bens afetivos" como se fossem mercadorias, que precisam inclusive ser defendidos com técnicas de marketing. É com um certo escárnio que Bingham trata dos "romantismos ingênuos" dos jovenzinhos ainda não desencantados, que acreditam na miragem de um amor que faz o universo inteiro se calar e só existir, no centro absoluto do quadro, a pessoa amada. E é com um certo desprezo, condescendente, como um paizão que olha de cima pra baixo pra filhota e diz que ela ainda tem muito a aprender nesta vida, que ele diz: "Seu conceito de realidade irá evoluir aos poucos...". Como se o conceito de realidade dele fosse evoluído e não imbecilizado!



:: FITTER, HAPPIER, AND MORE PRODUCTIVE

O fato da tecnologia ser descrita no filme mais pelos seus aspectos absurdos e enregelantes denota um certo desconforto com a "obsessão tecnológica" em que se meteu o Ocidente --- a ponto da técnica tornar-se quase um fim em si. Chegou-se a um ponto tão crítico que relacionamentos amorosos são desfeitos por torpedo e pessoas são despedidas por teleconferência. Não parece longe o tempo em que aparelhos de ar-condicionado serão instalados nas matas, como na música do Grandaddy, e muita gente perderá a capacidade de escrever uma frase com mais caracteres do que os permitidos pelo Twitter. É o fim da picada.

E não demora para que os robôs, devidamente programados, tratarão de fazer este servicinho sujo que faz Bingham... Em poucos anos, funcionários de grandes corporações vão receber, no dia de tomarem o pé na bunda, uma dessas ligações gravadas que ouvimos quando ligamos pro banco ou pra companhia aérea... A mesma mensagem de adeus será transmitida a cada um dos demitidos, numa voz feminina dócil e compassiva, utilizando pronomes bastante pessoais, garantindo ao ex-empregado que seu futuro será doce alhures e que ele deve encarar este momento como o de um "renascimento"...

E talvez alguns desses que serão demitidos pelo telefone por um robôzinho talvez fiquem tão fulos que tomem algum tipo de ação contra uma sociedade que se robotiza e des-humaniza a este ponto. Sim: é muito mais cômodo para os grandes capitalistas e acionistas pôr um robô para varrer porta afora os parafasusinhos humanos da grande engrenagem da empresa que pararam de ser utéis e ou estão minimizando os lucros. Assim eles não precisam ver, escrito no rosto concreto e único das pessoas que põe na rua, as marcas de cansaço, o brilho no olhar dos sonhos, a apavorante imaginação de um futuro onde não se terá comida para dar aos filhos, nem roupas para acalentá-los...

De certo modo, Bingham já é um precursor deste hipotético robô despedidor de homens. Ele vive uma vida que na fachada pode até parecer "chique" e invejável, mas que é no fundo extremamente miserável. É uma infelicidade que George Clooney não tenha percebido que seu personagem é um cara escroto, profundamente infeliz nas profundezas de seu ser, interpretando-o como sempre faz: sendo o galã boa-pinta que arranca suspiros da mulherada e que interessa-se mais pela auto-promoção do que pela encarnação visceral do personagem. A sensação é a de que ele já interpretou umas 5 vezes antes este mesmo homem - ótimo no xaveco, sagaz nas tiradinhas e sempre com pose de bonitão.

Apesar de não ser exatamente uma “má-atuação”, é uma atuação que denota que Clooney não entendeu direito o personagem, cujo vazio existencial e moral não fica tão explicitado assim, aplacando um pouco o potencial crítico do filme devido ao “charminho” que o ator quer sempre emprestar a seus papéis. O que ele deveria ter enfatizado melhor em sua performance é o fato de que a vida de Bingham é miserável e vazia, deprimente e desértica, artificial e hipócrita. Até mesmo seu hedonismozinho-de-riquinho é grotesco. Aquela "festa corporativa", por exemplo, invadida pelo trio de penetras, me deu tamanho asco que se eu estivesse lá gorfaria minhas entranhas ainda que num tivesse bebido uma gota. Que festa escrota!

Simone Weil não chegou a prever a que extremos o tal do desenraizamento poderia chegar na Era do Avião e da Informática. Bingham é a representação de um homem profundamente marcado por esta era: incapaz de estabelecer ligações afetivas, vive num sonambulismo cínico e numa constante solidão-em-meio-à-multidão. Sua única lealdade é às empresas aéreas. Seu maior orgulho é o número de diferentes cartões - de crédito, de clubes e de cliente-de-ouro - que deixam pançudinha sua carteira. Seu único objetivo na vida: atingir 10 milhões de milhas voadas, o que lhe dará a honra de possuir como troféu um cartão que só 6 homens no mundo possuem. Só "objetivos-de-vida" individualistas e vãos: vanidade da vaidade, vazio da vida. Pois apesar de suas estadias em Hiltons, seus rangos de caviar, seus cartões de crédito reluzentes, seus namoricos furtivos, ele permanece sempre um homem sem raízes, de coração gelado e emocionalmente amputado.

2 comentários:

  1. Edu,
    Como sempre, seu texto e sua análise foram GENIAIS! Mas após toda essa leitura, só pude tirar uma conclusão: Bingham é, nada mais nada menos, que o homem líquido descrito por Zygmunt Baumann.

    Um abração!
    Thaís

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  2. Oi Thaís! Muito obrigado pelas tuas lisonjeiras palavras; seus comments sempre me deixam bem contente. Quanto ao Bauman, muito bem percebido! Certamente o filme explora muitos temas que esse autor também se dedica a esmiuçar. Ainda conheço pouco da obra dele, mas já registrei na minha lista de leituras-a-fazer este "O Homem Líquido"!

    Valeu pela presença, mais uma vez, e volte sempre.

    Beijo!

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