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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

:: Woody Allen e o ateísmo ::



"Se Deus não existisse, tudo seria permitido."
DOSTOIÉSVKI. Os Irmãos Karamazóvi.

"O homem: o único ser que se sacode com a bela loucura do riso."

CHESTERTON. O Homem Eterno. 


INTRÓITO 

Woody tem dúzias de filmes mais espirituosos e hilários. Mas talvez nenhum seja uma obra-de-arte tão fina quanto Crimes e Pecados (1989), considerado pela maioria dos críticos e allen-maníacos como o mais clássico dentre os seus filmes "sérios" e bergmanianos. O próprio Allen parece reservar um posto especial na sua filmografia para esta obra, onde diz que procurou comunicar um pouco de sua "filosofia pessoal". Apesar de indefinível em poucos termos, esta "filosofia de vida" woody-alleniana me parece sugerir que  é vital a gente adoçar o amargo caldo da vida em um universo sem deus com o açúcar aliviante do humor e da leveza. Algo como "devemos rir de nossa própria miséria para não atravessarmos nosso  piscar-de-olhos-de-tempo-no-mundo com cara-de-funeral. Ainda que este mundo tão imperfeito e de alegrias tão efêmeras, e de trombadas tão caóticas entre as criaturas, bem faça por merecer uma carranca... Mas não: nos vinguemos com uma gargalhada!".

Em Match Point - Ponto Final (2005), o diretor meio que voltou ao mesmo enredo, às mesmas encanações e aos mesmos debates com Dostoiévski e Sófocles; a ponto de muitos, eu incluso, se perguntarem: mas por que diabos fazer o mesmo filme duas vezes? O que é claro é que isso é sintoma da importância que o autor deles concede à questão da relação entre a ética e a religiosidade. E, como prova o texto abaixo, a aposta de Woody Allen é oposta totalmente à aposta de Pascal. Acreditar em Deus é condenar-se a agir sempre de modo interesseiro, querendo "marcar pontos no pós-vida", conquistar uma recompensa celestial ou fugir das fogueiras do capeta... e isso nada tem de "nobre", moralmente falandol; é puro egoísmo racionalizado. É o que ele parece explicar no excelente trecho abaixo, retirado do livro de entrevistas a Eric Lax recentemente publicado no Brasil:

COM A PALAVRA... WOODY ALLEN:

"Uma coisa interessante: li um artigo escrito por um padre a respeito do filme [Ponto Final]. Era muito bom, mas ele partia de uma hipótese errada. A hipótese era assim: se, digamos, a vida não tem sentido, é caos, é acaso, então pode-se tudo, e nada tem sentido, todo ato é tão bom quanto qualquer outro. E isso imediatamente leva alguém com uma convicção religiosa à seguinte conclusão: é, pode-se matar pessoas e se dar bem com isso, se é o que se quer fazer. Mas é uma falsa conclusão. O que estou dizendo de fato - e não é oculto, nem esotérico, é claro e simples como água - é que nós temos de aceitar que o universo é sem deus, e a vida é sem sentido, muitas vezes uma experiência brutal e terrível, sem esperança, e que as relações amorosas são muito, muito difíceis, e que ainda precisamos encontrar um jeito não só de suportar, mas de levar uma vida decente e moral. 

As pessoas já vão concluindo que estou dizendo que qualquer coisa serve, mas na verdade estou fazendo a pergunta: dado o pior, como podemos continuar, ou até mesmo por que deveríamos escolher continuar? Claro, nós não escolhemos - a escolha está impregnada em nós. O sangue escolhe viver. (risos) Por favor, repare que enquanto eu pontifico aqui, você está entrevistando um sujeito com um mecanismo de negação deficiente. De todo modo, os religiosos não querem admitir a realidade, que contradiz o conto de fadas deles. E se o universo for sem deus (ri baixo) eles perdem o emprego. Interrompe o fluxo de caixa.

Ora, existe uma porção de gente que escolhe levar a vida de um jeito completamente autocentrado, homicida. Pensam assim: já que nada significa nada e eu posso me dar bem com assassinato, vou fazer isso. Mas pode-se também fazer a escolha de que estamos vivos, e outras pessoas estão vivas, e estamos juntos num bote salva-vidas e é preciso tentar e fazer o bote ser o mais decente possível para você e para todo mundo. E me parece que isso é muito mais moral, e até mesmo muito mais "cristão". 

Se você admite a terrível verdade da existência humana e escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo que vai haver alguma recompensa ou algum castigo celestial, ou algum tipo de ganho, e você age bem, então está agindo bem não por esses nobres motivos, os mesmos motivos chamados cristãos. É igual aos homens-bomba suicidas, que afirmam agir por motivos religiosos ou nacionais, quando na verdade a família deles recebe uma compensação financeira, festeja um legado heróico - sem falar na promessa de virgens para os perpetradores, embora eu não entenda por que alguém iria querer um grupo de virgens em vez de um grupo de mulheres altamente experimentadas.

* * * * *

Vi outra coisa escrita por um padre-filósofo na St. John's University, que achou que o filme talvez fosse o filme mais ateu jamais feito. Mas ele era muito gentil, muito elogioso. O ponto de vista dele era mais tolerante comigo porque ele sentia que, ao longo dos anos, o fato de eu constantemente abraçar um universo ateu, sem esperança, sem deus, sem sentido, queria dizer que a ausência de Deus no universo era importante. E sinto que ele tem razão, estou mesmo dizendo que isso importa. Eu disse isso explicitamente em Crimes e Pecados. Para mim, é uma grande vergonha o universo não ter nenhum Deus ou nenhum sentido, e no entanto só quando se admite isso é que se pode levar o que as pessoas chamam de uma vida cristã - isto é, uma vida moral decente. Você só leva uma vida assim se, para começar, admite o que tem diante de si e joga fora toda a casca de conto de fadas que leva a pessoa a fazer escolhas na vida não por razões morais, mas para marcar pontos no pós-vida...

Então o filme despertou muita discussão nessa área, e isso me deixa contente. Fico contente que não tenha sido visto apenas como um suspense de mistério e assassinato, coisa que, veja bem, não estou desprezando. Como espectador, adoro esses filmes. Mas eu esperava usar Ponto Final para colocar pelo menos um ou dois pontos do que constitui minha filosofia pessoal, e sinto que consegui fazer isso."


in:
Ed. Cosac & Naify, pg. 172 

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