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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

:: Inception, de Christopher Nolan (2010) ::


Your mind is the scene of the crime.


:: SINFONIA ONÍRICA ::

"But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams..."

YEATS

Inception não deixa de ser um blockbuster espetaculoso de efeitos visuais estonteantes e de custos de produção tão estratosféricos quanto a bilheteria que promete render. A boa nova é que o filme faz o espectador pensar, questionar e se maravilhar muito mais do que o costumeiro arrasa-quarteirão de verão. A façanha de Christopher Nolan foi ter criado algo que possui tudo aquilo que os brucutus adoram nos filmes de ação - metralhadoras, explosões, perseguições em alta velocidade, veículos despencando em abismos, sobrevivências miraculosas e muita marmelada, tudo em ritmo frenético... - inseridas num enredo tão  ousado, complexo e fascinante que não deixa um segundo sequer de oferecer à reflexão um vasto material de trabalho.

Este filme, apesar de visualmente seguir a corrente do mainstream Hollywoodiano, parece fruto de uma mente de extraordinária criatividade e imaginação: Chris Nolan,  que já provou com Amnésia, Following, O Grande Truque e seus dois Batman ser um dos mais sérios candidatos, dentre os cineastas contemporâneos, a entrar para o panteão dos gênios do "cinema popular".

Para escrever um roteiro como o de Inception (impresso, ele daria decerto um ótimo romance sci-fi!), Nolan deve ter lido e assimilado muita coisa de Freud, Bergson, Shakespeare, Philip K. Dick, Otto Rank, Julio Verne, Ray Bradbury, Fritjof Capra, Joseph Campbell, dentre outros autores visionários. E em termos de design visual, o filme também é um primor tão grande que tem gente apontando similaridades (e dívidas) do filme para com a obra dum artista como o Escher, p. ex. Como disse um crítico, "este é o filme de ação mais inteligente que você vai ver na vida", e com um dos visuais mais classudos, também. Mas etiquetá-lo como "filme de ação" é cometer uma injustiça contra um filme tão rico, que mescla tantos gêneros a ponto de se tornar absolutamente único, avesso a toda etiqueta.

Decerto que o filme não saiu "do nada". Tem seus predecessores de peso: há em Inception um pouquinho de Matrix, de Minority Report, de Vanilla Sky, de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, de Missão Impossível, de eXistenZ... E decerto que a exploração da temática do sonho já foi levada a grandes profundezas e graus de insanidade nas mãos de Lynch, Buñuel ou Guy Maddin (pra ficar só em 3 exemplos). Mas, mesmo inserido numa certa linhagem (que eu chamaria de "sci-fi surrealista"), o sétimo filme de Nolan traz a marca de um autor que traz ao cinema alguns conceitos muito inovadores, instigantes, até mesmo revolucionários. Inception comove mais pela ousadia das suas idéias e pela radicalidade com que Nolan as empurra até o limite, até os extremos, como se espremesse todos os seus insights até retirar deles todo o sumo, toda a maravilha...


"Os sonhos são um escudo contra a enfadonha monotonia da vida: libertam a imaginação de seus grilhões, para que ela possa confundir todos os quadros da existência cotidiana e irromper na permanente gravidade dos adultos com o brinquedo alegre da criança. Sem sonhos, por certo envelheceríamos mais cedo; assim, podemos contemplá-los, não, talvez, como dádiva do céu, mas como uma recreação preciosa, como companheiros amáveis em nossa peregrinação para o túmulo..." NOVALIS

Este filme é um abacaxi para o crítico de cinema; quase tanto quanto o Mulholland Drive ou o Império dos Sonhos de Lynch. Impossível falar sobre ele em poucas linhas. E muito difícil, também, transpô-lo para palavras, ainda que se escreva um livro. Tal como alguma boa sinfonia de Beethoven, o filme de Nolan nos convence que a arte do cinema, tal como a música, possui algo de absolutamente inefável. Há algo que as imagens e os sons são capazes de comunicar que a linguagem escrita não consegue alcançar. 

Mas podemos tatear em busca de uma expressão para explicar o que é tão fascinante em Inception. E me parece que duas "idéias" são bem centrais na obra de Nolan: a concepção de uma estratificação do sonho e da distensão da temporalidade acarretada por ela. Calma lá que não é tão hermético quanto parece!

Nolan imaginou o "espaço onírico" não como se fosse uma planície ou uma casa térrea; imaginou-o mais como um complexo prédio, com um intrincado e labiríntico jogo de escadas e elevadores, em que cada "andar" representa um "nível" na complexa arquitetura do inconsciente.

Inception opera com a lógica de uma matrioshka. É como se o filme dissesse que a boneca russa é uma excelente metáfora para o sonho humano. O segredo que os ladrões buscam em sua jornada onírica estaria num cofre no interior da menor das matrioshkas, e chegar até ali é descrito por Nolan como uma aventura tão espetacular quanto a Viagem ao Centro da Terra ou as Vinte Mil Léguas Submarinas... 


"É essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente para que se torne possível formar uma opinião correta da origem do que é psíquico. Nas palavras de Lipps, deve-se pressupor que o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é apresentado de forma tão incompleta pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais..." SIGMUND FREUD. A Interpretação dos Sonhos. Pg. 584, ed. Imago, Edição Comemorativa (100 Anos).

De certo modo, também me parece que Inception traz uma das primeiras tentativas na história do cinema de uma representação gráfica e narrativa do que Freud estava tentando comunicar quando disse que "o inconsciente é atemporal". Nolan, no começo de sua brilhante carreira, já tinha procurado revolucionar a nossa consciência temporal com Amnésia, que com fina magia invertia o fluxo do devir e enviava a nossa mente numa viagem mental das mais inusitadas, como se o rio do tempo fluísse ao contrário, do futuro para o passado. Agora, em Inception, Nolan se aventura a questionar a relatividade do tempo, mas de modo mais freudiano do que einsteniano.

Seria muito interessante, aliás, que alguém com mais conhecimento e talento que eu se aventurasse a fazer uma interpretação de Inception estabelecendo um paralelo com o  Interpretação dos Sonhos, o clássico de Freud. Que maravilha seria, aliás, se o Pai da Psicanálise pudesse ter assistido a este filme e nos escrito uma crítica! 

Uma das descobertas freudianas foi a de que o tempo do sonho é "dilatado": você pode sonhar por 5 minutos e ter a sensação, ao acordar, de que sonhou por uma hora. É o que o gênio vienense batizou com o conceito de "condensação". Inception explora bravamente a idéia de que a "descida" rumo ao "núcleo" do Inconsciente equivale a adentrar cada vez mais no domínio da atemporalidade.

O sonho aqui é descrito mais como uma complexa arquitetura de vários níveis e, conforme se vai "descendo", a temporalidade vai ficando mais distendida. É como se o inconsciente fosse um poço e nosso heróis mergulhassem cada vez mais fundo em suas profundezas, sendo alvejados por todos os lados pelas "personificações" da repressão do super-ego, pela hostilidade das "projeções" do adormecido, pelo "sistema imunológico" do organismo, que trata os "hackers" como se fossem um vírus infeccioso...

Não que o filme verse sobre psicanálise, exatamente: não há nenhuma intenção terapêutica em jogo. Inception flagra a técnica da psicanálise sendo aplicada diabolicamente, posta a serviço da espionagem industrial, utilizada como instrumento na guerra corporativa em um mundo dominado por mega-empresas que jogam na base do vale-tudo... É como se os tecnocratas tivessem se apossado das descobertas de Freud e seus seguidores, passando a utilizá-las na busca dos interesses mais escusos e sem jamais se colocarem questões éticas de primeira importância. 

Depois de Inception, o thriller de espionagem jamais será o mesmo: os espectadores se tornarão mais exigentes. Pois Nolan nos apresentou à engenhosa fantasia de que é possível roubar os segredos de rivais e desafetos por meio de um novo tipo de perfídia: o que eu chamaria de hacking onírico. E mais que isso: Nolan nos mostra que os atos concretos dos homens são motivados em larga medida por motivos inconscientes, de modo que se alguém conseguisse "plantar" uma idéia nas profundezas psíquicas de outra pessoa teria muito mais chance de atingir seus fins do que procurando coagi-la pela força. Inception substitui os tanques de guerra, os kamizakes e os grampos de telefone pelo terrorismo psíquico e pela inseminação quase cirúrgica de idéias desagregadoras.


(Breve parêntese: "A Origem" me parece um título muito mal escolhido como tradução de Inception. Aliás, quem são os panacas responsáveis por estes batismos tão desajeitados? Um título como Inseminação seria muito mais eloquente, muito mais fiel ao original, e creio que dotado até dum certo "potencial comercial"...)

Jamais em sua carreira o diretor tinha soltado tanto as rédeas da imaginação. Em Inception Nolan se permitiu pirar como nunca dantes havia feito. Aqueles que acusavam seus primeiros filmes (Following, Amnésia, Insônia...) de serem excessivamente racionais, "frios" em matéria de comoção, agora podem parar de reclamar. O irracional irrompe em Inception com toda a força, e há muitos elementos no roteiro que são escancaradamente inverossímeis.

Mas Nolan é um cineasta tão ponta-firme, ousado e seguro-de-si que seus filmes parecem mais que dirigidos: parecem orquestrados. Este maestro da sétima-arte (que já está fazendo por merecer as comparações com Stanley Kubrick e Steven Spielberg) vem numa série de trabalhos sempre de altíssima qualidade; e sua arte consiste em pôr em prática o princípio que Tarkovsky dizia nortear a sua própria obra: uma tentativa de "esculpir o tempo".

Inception é mais que um filme: é uma sinfonia onírica.


[+] PABLO VILAÇA - POP MATTERS - L.A. TIMES - NEW YORKER TIME MAGAZINE - NEW YORK TIMES - SLATE - SALON.

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