O CIRCO DA MORTE EM MANHATTAN
Antes de ser reduzido a pó e escombros pelos "piratas do ar" islâmicos, o World Trade Center foi palco de outras façanhas que espantaram o mundo. O Equilibrista, vencedor do Oscar de documentário de 2009, é a cativante crônica da "travessura" francesa em Manhattan, em 1974, quando um certo Philippe Petit cometeu um dos "crimes artísticos do século": ousou estender um cabo entre as duas torres do WTC e caminhar on a tight rope entre elas.
Seduzido mais pela altura estonteante do recém-edificado WTC, na época ironicamente propagandeado como um espaço em prol "da harmonia e do diálogo entre os povos", Petit e sua gangue invadiram clandestinamente o prédio com toneladas de equipamento e, na calada da madrugada, ajeitaram os esquemas para a performance do equilibrista (que já tinha se celebrizado por andar na Catedral de Notre Dame, em Paris, durante uma missa). Ficou nada menos que 45 minutos passeando nos ares, deitando no tênue fio e brincando de tai-shi-shuan a meio quilômetro de altura, enquanto fazia os tiras americanos de baratas-tontas e era aclamado pela multidão nas calçadas...
A primeira coisa que me chamou a atenção, à luz do 11 de Setembro, foi o contraste radical entre o "ato" de Philippe Petit e aquele da Al-Qaeda: quanta arte, sutileza e eloquência no primeiro, e quanta truculência, cegueira e fanatismo retardado no segundo! Decerto que o atentado entrou para a história bem mais do o "happening" francês, como não podia deixar de ser; os milhares de mortos e de lutos ficaram como uma cicatriz indelével na auto-estima americana, que vai atravessar o século sem poder se esquecer do sanguinolento protesto dos radicais do Islã contra uma sociedade que eles consideram profana, consumista, invasiva, interesseira, hostil aos dogmas muçulmanos e com fortes traços de fundamentalismo cristão. E é claro que o apoio americano à Israel e a sedenta necessidade pelo petróleo do Oriente Médio foram alguns dos elementos que despertaram a fúria do Sheik Bin Laden e seus asseclas... Mas aquilo foi um ato de guerra nojento e desleal, que escancara o quanto os meios utilizados na guerra sempre cospem e lançam no lixo os valores humanos numa hecatombe niilista assustadora. Já o ato de Petit foi, sem dúvida, algo bem diferente, mais positivo e construtivo: uma obra-de-arte.
Arrisco dizer que a França, que sofre bem menos com a opressão estadunidense do que o Afeganistão, e que em matéria de produção intelectual e artística rivaliza (ou mesmo supera) os EUA, pôde lidar com o extinto WTC, este símbolo da empáfia e do poder do dinheiro, de modo mais lúdico e menos violento do que os Talebans. Pois uma coisa é você sequestrar aviões civis e, em nome de Alá e de um paraíso repleto de virgens, explodir-se contra um dos prédios comerciais mais célebres do planeta, matando milhares de pessoas e expondo seu país a um ataque de retaliação genocida, como foi aquele levado à cabo por Bushinho. Outra coisa é você protagonizar um perigoso espetáculo circense em que o único em risco de morte é você mesmo e sua mensagem nada tem de bélica, sectária ou dogmática: no máximo provocativa, tought-provoking, maravilhante...
Se há algo de comovedor no ato de Philippe Petit, além da ousadia temerária que ele demonstra, é o fato dele conseguir manter o equilíbrio frente ao abismo da morte iminente e imediatamente possível, algo que a maioria dos mortais sente-se incapaz de fazer. A angustiante perspectiva de estar "por um fio", no bico do corvo, causa o naufrágio do nosso auto-controle, a suadeira, a taquicardia, o berro, a prece. Por isso tanto nos espanta alguém que, ao invés de se resguardar e se proteger, como que num jogo-de-esconde-e-esconde com a foice que o persegue, vai e encara seu próprio temor. Há algo que beira a "iluminação" de um mestre zen no caminhar de Philippe Petit, sereno e tranquilo, sobre um fio que se estende sobre um abismo de 450 metros...
A morte está tão próxima! Um passo em falso, um segundo de desatenção, uma coceira ou picada de mosquito, um sopro de vento mais forte, a hélice de um helicóptero que se aproxime... e adeus à vida. E ainda assim, ele lá esteve, num xadrez da vida real que não é menos dramático que aquele de O Sétimo Selo (de Bergman). E sobreviveu para contar.
Sou arredio a interpretações do ato nos termos de um "talento sobrenatural" ou uma "temeridade inata" que este "gênio" possuiria. Me pergunto se a grande maioria de nós, depois do devido treino nas artes da concentração e do auto-controle, poderíamos fazer o mesmo. O que nos falta, reles mortais, é o que sobra em Philippe Petit: um alto grau do que não dá pra chamar por outro nome senão por "loucura". Mas no bom sentido da palavra: ousar sair da norma, experimentar o inexperimentado, testar os limites do humano. E é claro (não dramatizemos nem idealizemos demais!) um alto desejo de vanglória, de alarde, de atenção, que torna Phillippe Petit até um pouco antipático por ser tão "aparecido"...Mas quem reprovará aos artistas seu egocentrismo por vezes colossal quando eles nos trazem tantos amaravilhamentos?
Confesso no entatno que acho uma baita super-estimação da obra ela estar no topo dos Melhores Documentários de Todos Os Tempos no Rotten Tomatoes. Não era pra tanto. Eu gostava mais de ver o "Ônibus 174" do Padilha com esta medalha de ouro (anos atrás, ele tava lá!). Mas é inegável que o filme de James Marsh cativa, faz refletir e nos apresenta a um francês "figuraça", encarnação de uma atitude de quem acha que a vida deve ser vivida perigosamente, sem resguardo ou avareza, numa corda bamba por sobre o abismo... Pois o corpo humano é capaz de feitos espantosos de que a maioria dos humanos nem sequer suspeita, e isso porque estas potencialidades sensacionais estão como que congeladas pelo medo, pelo respeito às convenções, pelo nosso desconhecimento das proezas possíveis, pela nossa apática normopatia... Por isso O Equilibrista é também uma ducha de inspiração e um convite irrecusável para que abracemos a Benigna Loucura!
Nenhum comentário:
Postar um comentário