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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

<<< Bela Vida, Boa Morte >>>


MAR ADENTRO, de Alejandro Amenábar
INVASÕES BÁRBARAS, de Denys Arcand
MENINA DE OURO, de Clint Eastwood

por Maria Rita Kehl


"Morra jovem e seja um belo cadáver." (Oscar Wilde)

Não é moderna a idéia de que a uma vida bem vivida deve corresponder uma boa morte. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, já escrevera que a qualidade da vida de um homem só pode ser avaliada no dia de sua morte. Não só porque a morte permite medir, em retrospecto, o vivido – a morte completa o sentido da vida – mas também porque uma morte indigna, ou um ato indigno cometido no último minuto, pode desfazer o efeito de toda uma vida vivida de acordo com o que, para os gregos, consistia o Bem Supremo.

O que a modernidade acrescentou ao ideal aristotélico foi o debate sobre o direito ao suicídio, cuja antiga grandeza trágica foi abolida pelo cristianismo. O direito de escolher a própria morte é a confirmação radical da liberdade humana – daí a frase de Albert Camus, para quem o suicídio seria a única questão filosófica verdadeiramente importante, máxima expressão de autonomia dos homens em um mundo sem Deus. O problema colocado pelo suicídio é que, se é legítimo desejar a morte, a vida deixa de ser um bem absoluto.

Em 1920, Freud escreveu que o sentido da vida é dado pelo princípio do prazer. De lá para cá, a discussão sobre o preço e os riscos da liberdade cedeu lugar às demandas hedonistas, próprias das sociedades de mercado em estágio avançado. O debate filosófico sobre a liberdade, hoje, reduziu-se à dimensão mesquinha dos direitos do consumidor. Ser livre, nesse caso, significa pouco mais do que escolher o que se quer comprar. O problema existencial contemporâneo é saber como abolir, da vida, todo sofrimento. Se possível, aboliríamos a morte; há quem aposte nisso – e mande às favas, ao encomendar o congelamento do próprio corpo até o século XXII, todas as interrogações filosóficas sobre a finitude da carne e a imortalidade da alma. Mas se a morte for inevitável, que seja possível pelo menos viver o tempo que nos cabe sem ter notícias da dor.

Assim, por linhas tortas, o hedonismo pós-moderno recolocou em cena o debate filosófico sobre a liberdade de morrer. Debate cujo fórum privilegiado tem sido o cinema – esse que ainda é capaz de fazer a mais completa síntese da vida em forma de obra de arte.

Em 2003, o público brasileiro adorou Invasões Bárbaras. O suicídio assistido de um personagem doente terminal de câncer tomou a frente das discussões sobre o filme a ponto de obscurecer a pergunta sobre o título: quem seriam os invasores bárbaros da história? Se o invasor fosse a doença, Invasões Bárbaras seria um belo melodrama humanista; um homem doente reúne os amigos à sua volta, para ajuda-lo a morrer no momento de sua escolha – uma morte de acordo com os ideais que teriam pautado sua vida. A discussão sobre o direito à eutanásia dominou de tal forma a recepção do filme que obscureceu a ironia a respeito dos invasores. 

Os bárbaros seriam o filho, um bilionário especulador internacional, cujo dinheiro possibilitou e privatizou a morte digna do pai, até então internado, por opção política, em um hospital público de péssima qualidade. “Bárbara” seria a jovem viciada em heroína, rebelde sem causa das novas gerações, versão mortífera e sem futuro do hedonismo das gerações de seus pais. Que os dois jovens “bárbaros” tenham tido um papel decisivo no suicídio assistido do protagonista faz de Invasões... uma obra muito mais cética, muito mais pessimista do que a leitura “humanista” que predominou em sua recepção, pelo menos no Brasil.


A liberdade de morrer é pública ou privada? Se as formas contemporâneas do hedonismo ditam os valores predominantes em nossa vida pública, seria coerente que a escolha da morte para abreviar o sofrimento da vida fosse um direito público, também. Dois outros filmes recolocaram a questão, neste início de 2005. Menina de Ouro, de Clint Eastwood, venceu o Oscar de melhor filme norte-americano. É um filme de alto impacto, apesar da narrativa tradicional e do exagerado apelo sentimental. Para um filme norte-americano, é surpreendentemente bom. Um filme centrado na grande obsessão do mundo individualista – ser ou não ser um winner – em que o protagonista é derrotado, já representa um enorme progresso para o público dos EUA. Além disso, um filme que põe em cena o suicídio assistido, contrariando os dogmas cristãos na atual América fundamentalista, merece pelo menos levar o Oscar da coragem.

Assim como no filme de Denis Arcand, aqui também a morte da jovem pugilista é tratada como assunto de foro íntimo, e sua execução é a maior prova de amor daquele que se arrisca a enfrentar a lei. Pela lógica das sociedades individualistas, como o Brasil e os EUA, só o dinheiro ou, na falta dele, o amor, são tacitamente autorizados a corrigir os rigores da justiça.

Já o filme espanhol Mar Adentro, de Alejandro Almenábar, põe em cena o debate público sobre o direito de morrer. Baseado na história real de um tetraplégico que lutou pelo direito legal ao suicídio (e perdeu), Mar Adentro termina com uma eutanásia realizada em segredo, outra vez como prova de amor dos que aceitam ajudar o protagonista em sua decisão. Mas essa transgressão à intransigência da lei ganha alcance público com o depoimento que o personagem deixa gravado em vídeo, insistindo na legitimidade de sua escolha e na continuidade de sua luta.

No mundo atual, em que somos órfãos tanto de Deus quanto dos desígnios patriarcais, a liberdade individual estende-se até o limite da pergunta: por que viver? Não há Deus que nos obrigue a suportar a vida a qualquer preço, nem tradição que nos imponha um destino herdado de nossos ancestrais. A vida tem que valer a pena, aqui e agora. A liberdade de escolher a própria morte, nesses três filmes, se apresenta como conseqüência lógica de uma vida sustentada pelo desejo. Morrer, nos casos em que a vida perdeu o sentido dado pelo princípio do prazer, não é covardia – é antes insistência de Eros. Uma vida sem nenhum prazer perde a razão de ser.

Mesmo assim, vale perguntar se não há casos em que o sentido da vida transcenda a dimensão do corpo. Sem a sublimação e a criação, mesmo uma vida voltada para os prazeres do corpo fica bastante limitada. Seremos a “besta sadia/cadáver adiado que procria” do verso de Fernando Pessoa. Igualmente pobre é a vida privada, voltada apenas para a intimidade familiar e excluída do espaço público. Maggie, a Menina de Ouro de Clint Eastwood, prefere morrer enquanto ainda tem viva a lembrança dos aplausos do público do que vegetar no anonimato de um quarto de hospital. O sucesso e a fama são a versão mais próxima de uma vida pública, na dramaturgia dos EUA. Já o tetraplégico representado por Javier Barden, sem sair de seu quarto, contou com a potência de sua palavra, capaz de transformar a vida de outras pessoas. Palavra cuja verdade foi publicamente sancionada, em retrospecto, pela realização de seu desejo de morrer.


* Maria Rita Kehl é psicanalista e jornalista. Seu livro mais recente, "O Tempo e o Cão", é uma excelente análise das causas da epidemia mundial de depressão que assola o planeta. Escrevi sobre a obra na Casa de Vidro, tempos atrás. Às vésperas da eleição presidencial de 2010, foi demitida do Estadão por "delito de opinião". Triste imprensa esta, que demite uma mente tão brilhante... :(

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