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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

<<< Borges & Kane >>>


CIDADÃO KANE, de Orson Welles (1940)
por Jorge Luis Borges

UM FILME ESMAGADOR


Cidadão Kane tem ao menos dois argumentos. O primeiro, de uma imbecilidade quase banal, quer subornar o aplauso dos mais distraídos e é formulável assim: um vão milionário acumula estátuas, hortas, palácios, piscinas, diamantes, veículos, bibliotecas, homens e mulheres; à semelhança de um colecionador anterior (cujas observações é tradicional atribuir ao Espírito Santo), ele descobre que essas miscelâneas e pletoras são vaidade de vaidades e que tudo é vaidade; no instante da morte, ele almeja um único objeto do universo, um trenó devidamente pobre com o qual sua infância brincou!

O segundo argumento é muito superior. Junta à lembrança de Koheleth a de um outro niilista: Franz Kafka. O tema (simultaneamente metafísico e policial, psicológico e alegórico) é a investigação da alma secreta de um homem por intermédio das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos muitos destinos que rompeu. O procedimento é o de Joseph Conrad em Chance (1914) e do belo filme The Power And The Glory: a rapsódia de cenas heterogêneas, sem ordem cronológica.

Esmagadoramente, infinitamente, Orson Welles exibe os fragmentos da vida do homem Charles Foster Kane e nos convida a combiná-los e a reconstrui-lo. As formas da multiplicidade, da inconexão são abundantes no filme: as primeiras cenas registram os tesouros acumulados por Kane; em uma das últimas, uma pobre mulher luxuosa e sofredora brinca no chão de um palácio, que é também um museu, com um enorme quebra-cabeças. No fim compreendemos que os fragmentos não são regidos por uma unidade secreta: o abominado Charles Foster Kane é um simulacro, um caos de aparências. (Corolário possível, já previsto por David Hume, por Ernst Mach e por nosso Macedonio Fernández: nenhum homem sabe quem é, nenhum homem é alguém.).

Borges fotografado por Diane Arbus
Em um dos contos de Chesterton - The Dead Of Caesar - o herói observa que nada é tão aterrorizante quanto um labirinto sem centro. Esse filme é exatamente esse labirinto. 

Todos nós sabemos que uma festa, um palácio, uma grande empresa, um almoço de escritores ou de jornalistas, um ambiente cordial de franca e espontânea camaradagem são essencialmente horríveis; Cidadão Kane é o primeiro filme a mostrá-los com alguma consciência dessa verdade.

A execução é, em geral, digna do vasto argumento. Há fotografias de admirável profundidade, fotografias cujos últimos planos (como nas telas dos pré-rafaelitas) não são menos precisos e pontuais do que os primeiros planos.

Atrevo-me a suspeitar, porém, que Cidadão Kane perdurará como "perduram" certos filmes de Griffith ou Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial, no sentido mais noturno e mais alemão dessa má palavra.

(Sur, Agosto de 1941)



* Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino, teve seus escritos sobre cinema publicados no Brasil pela Editora Iluminuras, comentados por Edgardo Cozarinsky. Você pode ler a obra completa no Google Books.

2 comentários:

  1. Puxa... há quanto tempo não comento nem leio um blog!
    Ah, dias perdidos de minha vida!
    Ah, esse belo quadrão dos Ramones à minha frente!
    E tenho vontades de mimar meu Kótchki...
    (Gi)

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  2. Minháááu!
    Que adorável visitinha... nhác! =)

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