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quinta-feira, 15 de julho de 2010

:: Em Mares Revoltos ::


MOBY DICK
de John Huston (1956)

"Death to Moby Dick!", ruge o Capitão Ahab, sangue-no-zóio, com uma fúria de Javé. Pelas barbas do profeta! E são toneladas de fúria (ancestral e represada, mas diariamente realimentada com o combustível do ressentimento...) que propelem o Pequod pelos mares do planeta! Uma longa e trágica jornada, motivada pela obsessão vingativa de um homem amputado e ferido por um ente natural selvagem, elevada a um patamar mítico... eis Moby Dick!

John Huston

O Moby Dick de 1956 é uma preciosidade do cinema americano quase tão impressionante quanto o clássico romance de Herman Melville (1819-1891) Dirigido por John Huston, roteirizado por Ray Bradbury, estrelado por Gregory Peck, e com a participação especial de um Orson Welles inspiradíssimo (e que ruge como um sábio leão num dos mais sublimes sermões bíblicos da história do cinema...), o filme é uma das obras-primas dos anos 50 que eu mais admiro. E é incrível como sustenta suas imensas qualidades mais de 50 anos depois de feito, capaz de combater de igual pra igual até mesmo com grandes mamutes cinematográficos mais recentes, que tem a duvidosa vantagem de efeitos especiais muito mais impressionantes. Pra mim, Moby Dick é uma aventura filmada tão ou mais excitante que Titanic (o açúcarado drama de naufrágio de James Cameron...) ou a trilogia Senhor dos Anéis (a epopéia na era do CGI...).

Há algo nesta produção que evoca aquela grandiosidade que fará a fama de Steven Spielberg em algumas de suas mais bem-sucedidas super-produções: como Tubarão e Jurassic Park, que também versam sobre o clash entre o humano e o animal hostil (seja ele um shark ou T-Rex). Há também uma tenebrosidade, uma luz gélida e cinza banhando os acontecimentos, que capacita o filme de Huston a dar calafrios na espinha do espectador de modo semelhante ao que faz uma obra como Os Pássaros, do Hitchcock. Mas o filme de Huston tem menos interesse pelo entretenimento e pelo espanto da platéia do que pelas profundas reflexões que possa nela despertar sobre problemáticas religiosas e existenciais. Por isso me parece que, no seu conteúdo filosófico, o Moby Dick de Huston aproxima-se muito mais de obras como O Homem-Urso, de Werner Herzog, ou mesmo Na Natureza Selvagem, de Sean Penn. Pois estas obras, cada uma a seu modo e com diferenças mínimas que não convêm agora citar, procuram descrever os infortúnios (frequentemente fatais) de homens que ousaram ir longe demais em domínios para-além-da-cultura, onde uma natureza indomada cruelmente estende sobre a carcaça dos homens o seu manto de perfeita indiferença.

Por isso classificar Moby Dick como uma mera "aventura marítima" é ter visão muito curta: só quem conhece a história por meios de livrinhos infantis ilustrados que reduzem as mais de 800 páginas do monumento literário escrito por Melville (um dos mais clássicos de toda a literatura norte-americana) a uma dúzia de cheap thrills aventurescos para entreter criancinhas. Moby Dick é menos sobre caça a baleias do que sobre a fragilidade humana diante das potências da natureza.

Albert Camus achava até que, como ilustração ou metáfora para o que ele pensava sob o nome de Absurdo, não havia nada melhor que a figura mítica da Moby Dick, a gigantesca baleia branca, alva como uma montanha de neve, campeã dos mares como um monstro bíblico, carrasca de muitos marujos cujas mães choram em terra a morte dos filhos... Sabe-se que o confronto entre Ahab e a Moby Dick é de proporções bíblicas, quase uma renovação da parábola de Jonas (que, aliás, é a temática do último sermão que Ishmael ouve em terra, antes de embarcar na derradeira jornada do Pequod, de cujo naufrágio será o único sobrevivente). Tanto Jonas quanto Ahab são símbolos de homens com alto potencial "blasfematório" e que vêem-se, em consequência disso, confrontando a natureza bruta: o primeiro, que vagava pelos navios, clandestino, à procura de um mar ou ilha onde Deus não reinasse, acaba engulido para as profundas trevas da barriga da baleia; já Ahab, cuja perna o monstro engoliu no passado, é inteirinho feito de ímpetos vingativos que o mantêm desperto pelas madrugadas: "a champion of darkness", como o descreve Starbuck.

Jonas e a Baleia:
"The Lord has more ways of confronting me
than I have ways of evading him
."

A "moral da história", na parábola de Jonas e a baleia, parece ser: mesmo quando você está no mais fundo oceano, dentro do sistema digestivo de uma imensa baleia, quase transformado em osso, se você se arrepender e chamar pela misericórdia de Deus... Ele te ouvirá e socorrerá. Se o Senhor ouviu o choro de Jonas, inaudível para qualquer ser humano ou animal sobre a Terra, testemunhado apenas pelas paredes do estômago de um animal, rodeado pela mais perfeita escuridão que olhos já puderam enxergar, então... há esperança para qualquer um de nós, não importa em que terrível abismo estivermos, de que o Criador do Universo nos ouça e nos socorra em nossa hora de necessidade!

Já a "moral da história", em Moby Dick, não é tão cristã nem tão otimista.  Moby Dick não é uma boa notícia para a esperança, nem para a religião. E talvez isto explique melhor porque Camus amava este mito. Há algo de profundamente anti-cristão no Moby Dick: o filme é quase uma magia negra pagã destinada a desconverter seus espectadores que porventura ainda acreditassem na bela lorota de que "a Natureza é Boazinha", inteirinha criada por um Bom Velhinho sentado nas nuvens do Outro Mundo, onde já prepara para nós a Grande Festa da Eternidade...

Não é à toa que o Pequod de Ahab traz entre seus tripulantes o canibal Queequeg, um pagão perfeito, completamente imune às superstições cristãs. E Ahab, pelo menos aos olhos de Starbuck (seu auto-eleito juiz moral nesta jornada...), enlouqueceu, desgarrou,  tornou-se herético, diabólico, resvalando para o Lado Negro da Força (como diríamos em tempos pós-Star Wars). "This is an evil journey", murmura Starbuck. Mas Ahab não pararia tão fácil:  ele não pararia por nada. Há também nele uma força selvagem, o rugido da natureza nas batidas do coração e no sangue que corre pelas veias, que o impele no sentido que lhe manda a sua fome por sangue e o seu imenso ressentimento não contra uma baleia específica, mas contra aquilo que esta "máscara" representa. O que? A insanidade do Criador. Ou mesmo sua inexistência.




"Let me look into a human eye! It's better than to look to sea and sky!", diz Ahab a Starbuck, com uma tragicidade quase hamletiana. É como se Ahab, que tinha no semblante os signos de uma "inner crucifixion and woe", olhasse a Natureza através do vidro fosco e nublado de sua mágoa e sua dor. Moby Dick representa um fragmento da Natureza que Ahab se sente absolutamente incapaz de amar. E com seus atos rancorosos, propulsionados pelo ódio, ele indica que nem tudo na criação é perfeito. A acusação de Ahab contra a baleia é uma acusação de Ahab contra Deus. Que Deus é este que povoou os mares com criaturas tão selvagens, que sugam e devoram tantas vidas humanas, e que também dedicam cada alento de seus pulmões a uma guerra insana e imortal onde comem-se uns aos outros? O olhar de Ahab atravessa a superfície laminada das águas e enxerga através dela: vê os litros de sangue que se misturam diariamente ao sal. Vê os bichos com os dentes cheios de tripas, mastigando a carne de outros bichos. E sabe que os enormes dentes de marfim da Moby Dick mastigaram sua perna como se ela não fosse nada além de... carne. Carne comestível.

Se Ahab ergue-se ao patamar de um herói trágico, que não deve nada a um Macbeth ou Otelo, é porque sua experiência de vida lhe leva a suspeitar, dolorosamente, num crônico transtorno de angústia, que cada homem não passa de carne comestível em meio a uma Natureza que por vezes manifesta uma cega hostilidade contra tudo o que é humano. "Tudo que é sólido se desmancha no ar...". E o nobre barco, o audaz Pequod, mais parece feito de frágeis fósforos quando colide com a alva rocha andante de toneladas: Moby Dick, prova viva da pequenez e da mortalidade das criaturas humanas, tantas vezes esfareladas e destroçadas nas mandíbulas de feras que jamais conheceram a idéia de Deus!


:: Lovers On The Bridge ::



OS AMANTES DA PONT-NEUF

[Les Amants Du Pont-Neuf ou Lovers On The Bridge,
dirigido por Leos Carax. França, 1991]

Alumbramento, magia, incêndios, vidas de miséria sem rumo e muitos fogos de artifício. São alguns dos elementos que apimentam este suculento banquete cinematográfico de Leos Carax. Frente a ele não há retina que não grite "uau!". Nem há coração que fique gelado frente à desgraceira dos destinos que testemunha na tela.

Os Amantes da Ponte Neuf, recentemente lançado em DVD no Brasil pela Lume (louvada seja!), é um controverso e originalíssimo clássico do cinema francês dos anos 90 e um dos filmes mais poéticos e visualmente entorpecentes que eu já vi. Traz a magnífica Juliette Binoche, de longe uma das atrizes mais talentosas (e lindas) de sua geração, passeando magistralmente pelo écran, divina num de seus papéis mais diabólicos. É talvez a sua performance mais marcante, mais até do que as de A Liberdade é Azul (Kieslowski) ou A Viúva de Saint-Pierre (Leconte) – de deixar boquiaberto. 

Ela precisou se "enfeiar" bastante para esse filme, mais ou menos como a Charlize Theron no Monster. Mas a lindeza desta mulher é tamanha que torna-se impossível deixá-la feia mesmo com um esquadrão de sádicos maquiadores. O poder e o charme dessa atuação tão memorável vem muito mais do talento transbordante da atriz, e sua capacidade de encarnar visceralmente sua personagem, do que das transformações exteriores que ela sofreu para viver  um papel tão incomum.

Juliette é uma misteriosa pintora mendiga, meio Basquiat de saias, que fixa residência na Pont-Neuf, uma das mais famosas de Paris, e passa a viver ali junto com outros esfarrapados miseráveis. Misteriosa e solitária, a personagem de miss Binoche está progressivamente perdendo a visão, como a Selma da Björk em Dançando no Escuro. Com um misterioso e sangrento passado atrás de si, sobre o qual ela virou a página, esta artista das ruas em revolta absoluta contra o modo-de-vida pequeno-burguês vai lentamente criando um laço afetivo bizarro e indefinível com um mendigo vira-lata  de alma circense e coração punk (interpretado brilhantemente por Denis Lavand). 

O que começa como um retrato sórdido de vidas miseráveis e imundas transforma-se numa doidíssima e psicodélica história de amor, enquanto Leos Carax dá asas à sua câmera para fazer uma síntese impensavelmente brilhante entre a realidade mais crua e sofrida e a fantasia mais mágica. Se David Lynch tivesse tentado filmar na França um conto imundo de amor e dor, depois de ter usado LSD e lido André Breton, talvez o resultado soaria parecido com Os Amantes de Pont-Neuf... As “viagens visuais”, que incluem muitos fogos de artifício, cuspidores de fogo, jornadas subterrâneas pelo metrô e outras imagens altamente poéticas, são um espetáculo à parte. Eis um filme bom pra ver chapado, e que chapa quem o assistir sóbrio.

É um filme sobre o amor vivido na beira do abismo, entre duas pessoas que já ultrapassaram faz muito a linha da sanidade mental e que chegaram a uma espécie de eufórico niilismo. Parecem encarnação de um estilo de vida baseado no "when there's nothing left to burn, you must set yourself on fire!". É também um doloroso retrato de um personagem masculino que cai num estado de completa e dolorosa dependência em relação a sua amada e que fará de tudo – inclusive causar incêndios e assassinar pobres inocentes – para impedir o maior dos horrores: ser abandonado pela mocinha. 

Foi um dos filmes de orçamento mais caro da história do cinema francês (28 milhões de francos), de parto mais difícil (levou quase 3 anos pra ser finalizado) e de lançamento mais problemático (o filme é tão controverso que demorou 9 anos para ter lançamento nos Estados Unidos, e só foi lançado pelos esforços do fã Martin Scorcese). Mas tantas dificuldades valeram a pena ser transpostas pois o resultado é de encher os olhos. Pra mim, além de ser um originalíssimo experimento de cinema dionisíaco, poético até a embriaguez (o cinema transformado em droga psicodélica!), deve ser um dos 5 melhores filmes franceses que já vi - o que não é dizer pouca coisa, já que a França é com certeza um dos países mais abençoados pelo deus do Cinema... Entusiasticamente recomendado!

sexta-feira, 9 de julho de 2010

:: When The Past Comes Back To Haunt You ::



MARCAS DA VIOLÊNCIA

(A History Of Violence, de David Cronenberg, 2005.
Com Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris e William Hurt.)

"We may be through with the past,
but the past ain't through with us."
de MAGNOLIA, de P.T. Anderson

"People you've been before
You don't want around anymore."
de ELLIOTT SMITH, em "Between Bars"


Este Marcas da Violência têm a incrível propriedade de ser um thriller tarantinesco excitante, daqueles capazes de deixar “eletrizado” até mesmo um empedernido adepto da Tela Quente e da série Velozes e Furiosos, e um drama familiar comovente, de arrancar lágrimas até de moçoilas que curtem As Pontes de Madison ou Kramer Vs. Kramer

Dirigido com maestria por David Cronenberg, que cometeu aqui um dos mais brilhantes "thrillers psicológicos" da década passada, o filme traz o estilo sintético, classudo e meio freak de Cronenberg em uma de suas obras mais inspiradas.

É este, me parece, o filme de Cronenberg que mais transcende gêneros, mesclando o drama e o suspense, a adaptação de HQ e a análise de personagem, de modo sempre fértil, denso, cativante. 

O cineasta canadense, que despontou nos anos 80 como alguém que injetava originalidade e visão pessoal nos filmes de terror e ficção científica, sempre cheios de perversidades e requintes grotescos, tornou-se aos poucos um “filósofo-com-uma-câmera” --- uma espécie de Baudrillard ou Lyotard da 7ª arte. Realizou investigações inusitadas e poderosas do universo junkie (ao adaptar O Almoço Nu, de William Burroughs), da esquizofrenia e do autismo (ao filmar Spider, romance de Douglas McGrath) ou as fantasias sexuais bizarras nas "metrópoles pós-modernas" (Crash – Estranhos Prazeres, feito a partir do livro de J. G. Ballard).

Em Marcas da Violência, apesar de se tratar de uma adaptação de uma graphic novel de Locke & Wagner, o tom é mais realístico do que fantástico e a violência é mais brutal do que cartunesca. Estamos mais próximos da crueza e da tragicidade dum Sergio Leone do que da pancadaria jocosa dum Kill Bill. Como escreve Kurt Loder, no site da MTV, “the carefully considered eruptions of brutality leap out and hit us like a rock in the face — just like actual, real-life violence”.

Se o diretor se celebrizou em filmes que descreviam grotescas mudanças físicas ou genéticas, por vezes motivadas por experimentos científicos temerários (como o inesquecível personagem de Jeff Goldblum em A Mosca) ou por estranhos vírus ou bactérias, neste filme Cronenberg prefere investigar não as consequências funestas da Ciência Aplicada ou da Tecnocracia, mas as sutis e profundas mutações secretas ocorridas na arquitetura da mente.
“David Cronenberg's fascination with metamorphosis has itself undergone a change since his early days as a horror-meister. Crudely put, his subject has switched from the outside to the inside, from the grotesque physical mutations of Scanners, Videodrome and The Fly to the drastic psychological warping he first explored in Dead Ringers, still his masterpiece and one of cinema's most disquieting studies of kinship, sexuality and dread.” (ANTHONY QUINN)

THE PAST THAT SUITS YOU BEST



Você pode estar acabado com o passado, mas o passado ainda não acabou com você. Ou: você pode tentar esquecer aquilo que foi, mas aquilo que foi esquecido não deixará por isso de existir --- e quem sabe venha mordiscar seu calcanhar em alguma esquina ou te visitar em algum pesadelo!

Pois é esta uma das feras mais selvagens que um homem pode tentar trancar em seu porão: um passado culposo. Muitas vezes este se debate como um tigre, lá embaixo, cabeceando contra os alicerces da casa. Como um terremoto provindo do subsolo. Um animal que não aceita dormir quieto no escuro dos enterrados e que berra, berra, querendo vir à tona...É mais ou menos assim que o Passado ressurge neste filme --- Freud falaria, talvez, em "retorno do reprimido" --- estilhaçando a harmonia familiar e exigindo certas medidas drásticas de conserto dos diques rompidos.


Enxergo mais a obra como uma cuidadosa análise psicológica de um personagem que é obrigado a confrontar seus demônios interiores - que ele pensou ter subjugado, no passado, mas que voltam a bater à sua porta. Mais ou menos à maneira de "Clube da Luta" e de "Psicopata Americano", "Marcas da Violência" faz um estudo cuidadoso de uma "personalidade rachada". Dentro do mesmo homem, nos três casos, convivem duas personas: uma delas, reprimida e empurrada para o inconsciente, representa o lado violento, brutal, sedento por destruição; e a outra, que se exibe publicamente, pretende se adequar à normalidade e à moral social estabelecida. É claro que a repressão não funciona com perfeição e, vez ou outra, surge das profundezas desses homens aparentemente pacatos, ordeiros e sociáveis (Tom Stall, Patrick Bateman e o narrador do Clube...) um monstro de ódio e violência.

Mas seria simplista, a meu ver, dizer que
A History Of A Violence conta a história de um homem que “fabrica um outro eu” ou prega à face uma “máscara de normalidade” querendo enterrar longe das vistas dos outros seu “verdadeiro” (e violento) eu-do-passado. Não se trata de uma anatomia da hipocrisia, de uma descrição cáustica de uma "vidinha de mentira", de uma "máscara social" que cai para exibir um "rosto cruel" --- a wolf in sheep's clothing

É esta a leitura mais fácil, mas também a que menos faz justiça à complexidade deste filmaço de Cronenberg. 
Em primeiro lugar, em nenhum ponto o autor afirma que existiriam no personagem, claramente discerníveis, dois diferentes eus, e que um seria genuíno e outro "falsificado". Isto seria má psicologia --- reducionista, simplória, dualista, dogmática... - aplicada ao cinema. Cronenberg, ao contrário, usa seu thriller como um meio para uma investigação psicológica altamente sofisticada, cheia de tantos nuances e degradês que sugere que seu protagonista tem muito mais faces do que as “duas” que lhe atribuem seus perseguidores (e que muitos espectadores, também, ficarão tentados a encontrar nele). 

O filme ilustra para o espectador muito mais a extrema maleabilidade e ecletismo da psiquê humana do que procura convencê-lo de qualquer "dupla personalidade" que nela operasse com a simplicidade de um interruptor. Tom Stall não é Norman Bates: é até mais complexo e nuançado que o assassino de
Psicose --- o que não é elogio pequeno ao prodígio alcançado por Cronenberg .


AMERICAN HERO... ESTILHAÇADO!

O retrato do personagem sobre o qual Cronenberg se debruça desta vez começa com matizes quase paradisíacos: Tom Stall parece ser um homem de bom coração, ótimo pai de família, profissional modesto e escrupuloso, benquisto pela comunidade e amado por seus próximos... Um "docinho" de pessoa!

Tem uma linda esposa, esperta, vivaz e dotada de ímpetos sexuais ardorosos (capaz até de fantasiar-se de
cheerleader para agradar o maridão na cama), e que não é menos carinhosa e romântica do que fervente e voluptuosa. As duas cenas de sexo que Cronenberg nos oferta, aliás, são dignas de aplausos por sua ousadia: sem jamais cair na pornografia barata, mesmo quando está filmando um ardente meia-nove ou uma ruidosa transa de escadaria, o diretor registra os enlaces carnais do casal de um modo visceral e genuíno, auxiliado pelas despudoradas performances de Mortensen e Maria Bello.E com quê ternura registra um dos "conchinha" [também conhecido como spoon position] dos mais ternos que já vi numa tela de cinema!

Os filhos deles também mostram-se a princípio saudáveis e sensatos, e Tom parece manter com eles ótimas relações, sem nunca apelar para a violência ou para a grosseria --- tanto que os rebentos parecem curtir o paizão com afeto sólido e sincero. Conforme o sangrento passado do patriarca irrompe no cenário, porém, os filhos também são envoltos pelo redemoinho de violência --- e o filho mais velho passa a apelar para a força bruta em sua relação com os bullies do colégio.
 


Somando-se ao quadro quase idílico da primeira parte do filme, Tom é detentor dum boníssimo e tranquilo emprego, na lanchonete local, onde é o escrupuloso e afável patrão que os funcionários muito estimam, e duma casinha sem cercas, verdejante e florida, que é puro american-dream. Pra citar a canção de Gershwin, “who could ask for anything more?”

Não é à toa que Tom Stall se torna, tão fácil, da noite pro dia, um American Hero! Destes que está na capa dos jornais, tendo seus feitos comemorados em letras garrafais. Destes sobre quem as emissoras de tevê saltam em cima quando ele sai do carro, querendo ofertar aos seus espectadores as edificantes palavras do herói nacional. Destes assim, meio Superman e meio Dirty Harry, que só usa a violência para o bem e que não perde seu visto de Posse de Arma de Fogo mesmo depois de meter bala nos “bandidos” que entram no seu estabelecimento comercial. Um homem em quem todo mundo confia, um amorzinho de pessoa, muito querido na cidade...


O AMOR DEPOIS DAS MÁSCARAS

Mas este não é o clichezento filme de "bandidões sádicos" vindo rasgar um idílio familiar por mero esporte --- como no Violência Gratuita de Michael Haneke, por exemplo. Tem mais pinta daqueles filmes em que o forasteiro misterioso e de poucas palavras, como é Clint Eastwood em tantos de seus westerns, exila-se numa cidadezinha fora-do-mapa para "começar de novo". E, é claro, percebe que sua reclusão falha e ele é visitado por indesejáveis souvenirs de um passado que gostaria de banir para sempre de sua vida.


O mistério sobre a vida pregressa do personagem principal vai lentamente começando a instigar o espectador, num processo que me lembrou um pouco aquele de "Paris, Texas", de Win Wenders, que só com muita lentidão nos explica as causas do silêncio pesado e da tristeza desolada do protagonista. 

Tom Stall, em "Marcas da Violência", é um mistério parecido. Tanto que o principal suspense que Cronenberg cria por aqui nem é tanto um
"será que eles vão conseguir se safar das garras dos gângsters?", mas um "quem diabos é esse cara, na verdade?" 

A certo ponto, todos ao redor de Tom - o policial, a esposa, o filho, seu irmão, seus perseguidores - pedem que ele embarque numa
"viagem no trilho da memória" e retorne ao passado - para concertá-lo, para revelá-lo, ou mesmo para redimi-lo, pagando por seus crimes. Uma viagem na qual ele não deseja embarcar, é claro, já que esteve, por tantos anos, engajado na tarefa de se auto-modificar. Ele está querendo deixar o passado para trás, mas o passado não vai deixar-se cair inerte na passividade. A pessoa que ele foi no passado, e que não quer mais ser, será novamente chamada a se erguer por esses espectros do passado.

Mas o que eu mais gosto no filme nem é tanto a "trama violenta", que envolve as batalhas sangrentas entre Tom/Joey e os gângsters, culminando na tarantinesca cena na casa do irmão (William Hurt) em que o sangue jorra aos borbotões. O que mais me comove e me instiga é o tipo de consequência que isto traz para o relacionamento amoroso do casal e da família em geral.


Porque obviamente, o casamento fica seriamente comprometido quando a esposa descobre que seu (ex)maridão-perfeito havia mentido “deslavadamente” sobre seu passado. A imagem que ela possuía do “super-husband” esfacela-se, como um espelho que despenca no chão, e tudo o que ela consegue, entre lágrimas, é contemplar os cacos que restaram de sua quimera desfeita. 

Ela, que pensava estar casada com uma espécie de Clint Eastwood com alma de Santo Agostinho, vai e descobre que ele é, na verdade, um “assassino lunático esquizóide”, de passado sanguinolento. Alguém
pretty fucked up in the head --- como um psiquiatra inescrupuloso poderia ter dito.


Como será a vida deste casal, daqui pra frente? Ela perdoará a ele todas as mentiras que contou, todo o enredo falso que fabricou, todo o sangue que derramou e pessoas que matou? Esconderão da filha pequena os detalhes deste “episódio infeliz” da saga familiar, transformando-o em “tabu”? Esta família crescerá sob o câncer do silêncio? Irão eles voltar a enterrar as coisas e seguir com seus cotidianos, ou discutirão o passado com todas as cartas na mesa?

Cronenberg nos abandona sem respostas.

E é uma das cenas finais mais lindas de todas as que me lembro. Tão rica de interpretações! Tão eloquente em seu completo mutismo! Tão de arrancar lágrimas, e isto sem fazer o mínimo meneio melodramático, a mínina “apelação” sentimentalóide! Tão tensa e intensa, sentida e sofrida!



Como uma volta do filho pródigo, arrependido, que teve que derramar o sangue inimigo, mas lavou-se das vísceras de outros e quer ser recebido de volta no cálido colo do amor. Os olhos temem se procurar. Ele entra como que apavorado, com medo de uma ferida, cansado como alguém que volta do deserto... O silêncio é, talvez, o mais pesado que jamais conheceram. Se se calam, não é por não terem o que dizer: é por terem demasiado --- demais, demais... tanta imensidão que a boca não sabe como articular palavra... 

O Verbo se cala, mas os corações ainda pulsam, e as consciências são pura atenção, e não existe para nenhum deles nada além Daquilo, acontecendo. O pequeno ato da filhinha, que põe o prato e os talheres na mesa, como quem faz um convite mudo ao papai para que se sente, é um jato de doçura no ambiente pesado daquela sala-de-jantar infestada com o odor dos segredos mofados vindos à tona. O segundo ato de sutil camaradagem, gesto de “aceitação do retorno”, parte do filho, que lhe facilita o acesso à carne. Mas falta o mais importante.
Aqueles dois pares de olhos que um dia se amaram apaixonadamente, ambos baixos, ambos tristes, ambos marejados, temem se fitar. Temem com o temor que sentem aqueles que deixaram de se conhecer. Mas quando os olhares realmente se tocam, é como se uma muda compreensão se fizesse, para além das palavras... Ele está de volta; estão juntos de novo. E podem recomeçar de cara limpa: todas as máscaras, rasgadas, esparramam-se pelo chão.


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