MOBY DICK
de John Huston (1956)
"Death to Moby Dick!", ruge o Capitão Ahab, sangue-no-zóio, com uma fúria de Javé. Pelas barbas do profeta! E são toneladas de fúria (ancestral e represada, mas diariamente realimentada com o combustível do ressentimento...) que propelem o Pequod pelos mares do planeta! Uma longa e trágica jornada, motivada pela obsessão vingativa de um homem amputado e ferido por um ente natural selvagem, elevada a um patamar mítico... eis Moby Dick!
John Huston
O Moby Dick de 1956 é uma preciosidade do cinema americano quase tão impressionante quanto o clássico romance de Herman Melville (1819-1891) Dirigido por John Huston, roteirizado por Ray Bradbury, estrelado por Gregory Peck, e com a participação especial de um Orson Welles inspiradíssimo (e que ruge como um sábio leão num dos mais sublimes sermões bíblicos da história do cinema...), o filme é uma das obras-primas dos anos 50 que eu mais admiro. E é incrível como sustenta suas imensas qualidades mais de 50 anos depois de feito, capaz de combater de igual pra igual até mesmo com grandes mamutes cinematográficos mais recentes, que tem a duvidosa vantagem de efeitos especiais muito mais impressionantes. Pra mim, Moby Dick é uma aventura filmada tão ou mais excitante que Titanic (o açúcarado drama de naufrágio de James Cameron...) ou a trilogia Senhor dos Anéis (a epopéia na era do CGI...).
Há algo nesta produção que evoca aquela grandiosidade que fará a fama de Steven Spielberg em algumas de suas mais bem-sucedidas super-produções: como Tubarão e Jurassic Park, que também versam sobre o clash entre o humano e o animal hostil (seja ele um shark ou T-Rex). Há também uma tenebrosidade, uma luz gélida e cinza banhando os acontecimentos, que capacita o filme de Huston a dar calafrios na espinha do espectador de modo semelhante ao que faz uma obra como Os Pássaros, do Hitchcock. Mas o filme de Huston tem menos interesse pelo entretenimento e pelo espanto da platéia do que pelas profundas reflexões que possa nela despertar sobre problemáticas religiosas e existenciais. Por isso me parece que, no seu conteúdo filosófico, o Moby Dick de Huston aproxima-se muito mais de obras como O Homem-Urso, de Werner Herzog, ou mesmo Na Natureza Selvagem, de Sean Penn. Pois estas obras, cada uma a seu modo e com diferenças mínimas que não convêm agora citar, procuram descrever os infortúnios (frequentemente fatais) de homens que ousaram ir longe demais em domínios para-além-da-cultura, onde uma natureza indomada cruelmente estende sobre a carcaça dos homens o seu manto de perfeita indiferença.
Por isso classificar Moby Dick como uma mera "aventura marítima" é ter visão muito curta: só quem conhece a história por meios de livrinhos infantis ilustrados que reduzem as mais de 800 páginas do monumento literário escrito por Melville (um dos mais clássicos de toda a literatura norte-americana) a uma dúzia de cheap thrills aventurescos para entreter criancinhas. Moby Dick é menos sobre caça a baleias do que sobre a fragilidade humana diante das potências da natureza.
Albert Camus achava até que, como ilustração ou metáfora para o que ele pensava sob o nome de Absurdo, não havia nada melhor que a figura mítica da Moby Dick, a gigantesca baleia branca, alva como uma montanha de neve, campeã dos mares como um monstro bíblico, carrasca de muitos marujos cujas mães choram em terra a morte dos filhos... Sabe-se que o confronto entre Ahab e a Moby Dick é de proporções bíblicas, quase uma renovação da parábola de Jonas (que, aliás, é a temática do último sermão que Ishmael ouve em terra, antes de embarcar na derradeira jornada do Pequod, de cujo naufrágio será o único sobrevivente). Tanto Jonas quanto Ahab são símbolos de homens com alto potencial "blasfematório" e que vêem-se, em consequência disso, confrontando a natureza bruta: o primeiro, que vagava pelos navios, clandestino, à procura de um mar ou ilha onde Deus não reinasse, acaba engulido para as profundas trevas da barriga da baleia; já Ahab, cuja perna o monstro engoliu no passado, é inteirinho feito de ímpetos vingativos que o mantêm desperto pelas madrugadas: "a champion of darkness", como o descreve Starbuck.
Jonas e a Baleia:
"The Lord has more ways of confronting me
than I have ways of evading him."
than I have ways of evading him."
A "moral da história", na parábola de Jonas e a baleia, parece ser: mesmo quando você está no mais fundo oceano, dentro do sistema digestivo de uma imensa baleia, quase transformado em osso, se você se arrepender e chamar pela misericórdia de Deus... Ele te ouvirá e socorrerá. Se o Senhor ouviu o choro de Jonas, inaudível para qualquer ser humano ou animal sobre a Terra, testemunhado apenas pelas paredes do estômago de um animal, rodeado pela mais perfeita escuridão que olhos já puderam enxergar, então... há esperança para qualquer um de nós, não importa em que terrível abismo estivermos, de que o Criador do Universo nos ouça e nos socorra em nossa hora de necessidade!
Já a "moral da história", em Moby Dick, não é tão cristã nem tão otimista. Moby Dick não é uma boa notícia para a esperança, nem para a religião. E talvez isto explique melhor porque Camus amava este mito. Há algo de profundamente anti-cristão no Moby Dick: o filme é quase uma magia negra pagã destinada a desconverter seus espectadores que porventura ainda acreditassem na bela lorota de que "a Natureza é Boazinha", inteirinha criada por um Bom Velhinho sentado nas nuvens do Outro Mundo, onde já prepara para nós a Grande Festa da Eternidade...
Não é à toa que o Pequod de Ahab traz entre seus tripulantes o canibal Queequeg, um pagão perfeito, completamente imune às superstições cristãs. E Ahab, pelo menos aos olhos de Starbuck (seu auto-eleito juiz moral nesta jornada...), enlouqueceu, desgarrou, tornou-se herético, diabólico, resvalando para o Lado Negro da Força (como diríamos em tempos pós-Star Wars). "This is an evil journey", murmura Starbuck. Mas Ahab não pararia tão fácil: ele não pararia por nada. Há também nele uma força selvagem, o rugido da natureza nas batidas do coração e no sangue que corre pelas veias, que o impele no sentido que lhe manda a sua fome por sangue e o seu imenso ressentimento não contra uma baleia específica, mas contra aquilo que esta "máscara" representa. O que? A insanidade do Criador. Ou mesmo sua inexistência.
Não é à toa que o Pequod de Ahab traz entre seus tripulantes o canibal Queequeg, um pagão perfeito, completamente imune às superstições cristãs. E Ahab, pelo menos aos olhos de Starbuck (seu auto-eleito juiz moral nesta jornada...), enlouqueceu, desgarrou, tornou-se herético, diabólico, resvalando para o Lado Negro da Força (como diríamos em tempos pós-Star Wars). "This is an evil journey", murmura Starbuck. Mas Ahab não pararia tão fácil: ele não pararia por nada. Há também nele uma força selvagem, o rugido da natureza nas batidas do coração e no sangue que corre pelas veias, que o impele no sentido que lhe manda a sua fome por sangue e o seu imenso ressentimento não contra uma baleia específica, mas contra aquilo que esta "máscara" representa. O que? A insanidade do Criador. Ou mesmo sua inexistência.
"Let me look into a human eye! It's better than to look to sea and sky!", diz Ahab a Starbuck, com uma tragicidade quase hamletiana. É como se Ahab, que tinha no semblante os signos de uma "inner crucifixion and woe", olhasse a Natureza através do vidro fosco e nublado de sua mágoa e sua dor. Moby Dick representa um fragmento da Natureza que Ahab se sente absolutamente incapaz de amar. E com seus atos rancorosos, propulsionados pelo ódio, ele indica que nem tudo na criação é perfeito. A acusação de Ahab contra a baleia é uma acusação de Ahab contra Deus. Que Deus é este que povoou os mares com criaturas tão selvagens, que sugam e devoram tantas vidas humanas, e que também dedicam cada alento de seus pulmões a uma guerra insana e imortal onde comem-se uns aos outros? O olhar de Ahab atravessa a superfície laminada das águas e enxerga através dela: vê os litros de sangue que se misturam diariamente ao sal. Vê os bichos com os dentes cheios de tripas, mastigando a carne de outros bichos. E sabe que os enormes dentes de marfim da Moby Dick mastigaram sua perna como se ela não fosse nada além de... carne. Carne comestível.
Se Ahab ergue-se ao patamar de um herói trágico, que não deve nada a um Macbeth ou Otelo, é porque sua experiência de vida lhe leva a suspeitar, dolorosamente, num crônico transtorno de angústia, que cada homem não passa de carne comestível em meio a uma Natureza que por vezes manifesta uma cega hostilidade contra tudo o que é humano. "Tudo que é sólido se desmancha no ar...". E o nobre barco, o audaz Pequod, mais parece feito de frágeis fósforos quando colide com a alva rocha andante de toneladas: Moby Dick, prova viva da pequenez e da mortalidade das criaturas humanas, tantas vezes esfareladas e destroçadas nas mandíbulas de feras que jamais conheceram a idéia de Deus!