por François Truffaut
Há duas espécies de diretores: os que levam o público em consideração ao conceber e posteriormente realizar seus filmes e aqueles que não se importam com isso. Para os primeiros, o cinema é a arte do espetáculo e para os segundos, uma aventura individual. Não se trata de preferir esses ou aqueles, é simplesmente assim. Para Hitchcok e Renoir, como para quase todos os diretores americanos, aliás, um filme só dá certo quando faz sucesso, ou seja, quando atinge o público no qual se pensou desde a escolha do tema até o término da realização. Enquanto Bresson, Tati, Rossellini e Nicholas Ray fazem filmes à sua maneira e depois solicitam ao público o favor de "jogar seu jogo", Renoir, Clouzot, Hitchcock e Hawks fazem seus filmes para o público, colocando-se incessantes questões a fim de assegurarem-se do interesse dos futuros espectadores.
Alfred Hitchcock, que é um homem extraordinariamente inteligente, habituou-se desde muito cedo, desde o início de sua carreira na Inglaterra, a considerar todos os aspectos da feitura dos filmes. Dedicou a vida inteira a fazer coincidir suas predileções com as do público, enfatizando o humor em seu período inglês e enfatizando o suspense no período americano. Essa dosagem de suspense e humor fez de Hitchcock um dos cineastas mais comerciais do mundo (a renda de seus filmes é geralmente quatro vezes superior ao custo) mas é sua enorme exigência em relação a si mesmo e à sua arte que fazem igualmente dele um grande diretor.
Não é resumindo o enredo de Janela Indiscreta que se pode revelar a total novidade do empreendimento, inenarrável em sua complexidade. Preso à cadeira devido a uma perna quebrada, o repórter fotográfico Jeffrie (James Stewart) observa, através da janela, o comportamento dos vizinhos. Um belo dia, convence-se de que um deles matou a esposa irascível, desagradável e doente. A investigação que realiza, embora imobilizado pelo gesso, é, em termos, o tema do filme. Seria necessário falar também de uma prestigiosa moça (Grace Kelly) que gostaria muito de casar-se com Jeffrie...
Sei que assim resumido o roteiro deve parecer mais astucioso que profundo e, no entanto, estou convencido de que este filme é um dos mais importantes dos 17 filmados por Hitchcock em Hollywood, um dos raros, pelo menos, que não tem falha alguma, nenhuma fraqueza, nenhuma concessão. Por exemplo: é evidente que tudo no filme gira em torno da idéia de casamento. Quando Grace Kelly esgueirar-se no apartamento do suposto criminoso, a prova que fora procurar é uma aliança; Grace Kelly a enfia no dedo estendido enquanto, do outro lado do pátio, James Stewart, de binóculos, acompanha seus movimentos. Mas no fim do filme nada indica que eles se casarão e, para além do pessimismo, Janela Indiscreta é um filme cruel. Stewart, com efeito, só assesta seus binóculos sobre os vizinhos em momentos de angústia, quando eles se encontram em posições ridículas ou mesmo detestáveis.
A construção do filme é nitidamente musical, com vários temas que se imbricam e se respondem perfeitamente - os do casamento, do suicídio, da perda e da morte - banhados por um erotismo refinadíssimo (a sonorização dos beijos é extremamente precisa e realista). A impassibilidade de Hitchcock, sua "objetividade", são apenas aparentes; é no tratamento do roteiro, na direção, na condução de atores, nos detalhes e, principalmente, num tom bastante insólito participando do realismo, da poesia, do humor macabro e da pura magia que se revela uma concepção de mundo que chega às raias da misantropia.
Janela Indiscreta é o filme da indiscrição, da intimidade violada e surpreendida em seu aspecto mais ultrajante; o filme da felicidade impossível, o filme da roupa suja lavada fora de casa, o filme da solidão moral, uma extraordinária sinfonia da rotina e dos sonhos desfeitos.
Falou-se muitas vezes em sadismo a propósito de Hitchcock. Acho que a verdade é mais complexa e que Janela Indiscreta é o primeiro filme em que o autor se traiu a tal ponto. Para o herói de A Sombra de uma Dúvida, o mundo era um chiqueiro. Hoje acho que era o próprio Hitchcock que se expressava por trás do personagem. Não venham dizer que estou extrapolando; em Janela Indiscreta a sinceridade explode em cada plano, assim como o tom, sempre mais grave nos filmes de Hitchcock, vai diretamente ao encontro de seu interesse espetacular, logo comercial. Sim, trata-se exatamente da atitude moral de um autor que vê o mundo com a excessiva severidade de um puritano sensual.
Alfred Hitchcock adquiriu uma tal ciência da narrativa cinematográfica que em 30 anos transformou-se em muito mais que um contador de histórias. Como ama apaixonadamente seu trabalho, não pára de filmar e há muito tempo resolveu a questão da direção; ele precisa, sob pena de entediar-se ou repetir-se, inventar dificuldades suplementares, criar novas disciplinas. Daí o acúmulo, em seus filmes mais recentes, de obstáculos apaixonantes sempre brilhantemente superados.
Neste filme, o desafio foi ter filmado sempre no mesmo lugar, do ponto de vista único de James Stewart. Vemos somente o que ele vê, de onde ele vê, ao mesmo tempo que ele. O que poderia ter sido uma aposta austera e teórica, um exercício de frio virtuosismo, é na relaidade um espetáculo fascinante devido à invenção constante que nos deixa pregados em nossas cadeiras tão solidamente quanto James Stewart bloqueado pela perna engessada.
No entanto, diante de semelhante filme, tão estranho e tão novo, esquecemos um pouco esse virtuosismo atordoante; cada plano, por si só, é uma palavra vitoriosamente mantida; o esforço de renovação, de novidade, afeta tanto os movimentos da câmera, as trucagens e os cenários quanto a cor. (Ah! Os óculos dourados do assassino, iluminados na escuridão pelo clarão intermitente de um cigarro!)
Quem entendeu Janela Indiscreta perfeita e integralmente (é impossível numa única vez) pode ficar indignado e recusar-se a participar de um jogo cuja regra é a perfídia dos personagens, mas é tão raro encontrar num filme uma concepção de mundo tão precisa, que temos de curvar-nos diante do irrefutável sucesso.
Para esclarecer Janela Indiscreta, proponho a seguinte parábola: o pátio é o mundo, o repórter fotográfico é o cineasta, os binóculos representam a câmera e suas lentes. E onde fica Hitchcock em tudo isso? Ele é o homem por quem gostamos de nos saber odiados.
in: TRUFFAUT, François.
Os Filmes da Minha Vida. Pg. 110-114.