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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Poesia (Coréia do Sul, 2010, de Lee Chang Dong)



"A arte existe para que a verdade não nos destrua", sugere Nietzsche. A protagonista de Poesia é flagrada pelas câmeras do cineasta sul-coreano Lee Chang Dong em um momento de sua vida em que se vê enredada em situações de imenso potencial destrutivo: diagnosticada com Alzheimer, começa a padecer de lapsos de memória e desagregação de suas capacidades lingüísticas, tendo que lidar com a ascensão da demência senil num estado desolador de solidão, já que a comunicação com filha e neto beira o zero absoluto da incomunicabilidade total. Sua decisão de procurar socorro na arte é quase uma conclusão intuitiva, inconscientemente nietzschiana, de que a vida deixaria de ser suportável se nela não pudéssemos inventar um pouco de beleza.

Para piorar o quadro, esta avó descobre um horror verídico suplementar: Wook, seu neto pré-adolescente, que está sob sua tutela, é acusado de fazer parte de uma gangue de jovens que estuprou uma colega de escola. Logo nos primeiros planos, Poesia nos põe diante da vítima do estupro que, como uma Ofélia oriental, bóia nas águas de seu suicídio, carregando para o silêncio do túmulo suas feridas incomunicáveis. O neto, em estado de negação, incapaz de assumir responsabilidade moral pelo ato, desconversa, muda de assunto, fixa-se na televisão, recusando-se encarar as consequências do que fez com a "turma". 

Lançada neste labirinto, a senhora, que se aproxima de seus últimos dias, decide-se a seguir um curso de poesia. Nunca escreveu um poema em toda a sua vida, e agora, frequentando aulas e saraus, realiza uma espécie de "banho de imersão" nos mistérios do universo poético, num esforço de enxergar e criar beleza em meio a uma realidade que se manifesta com horrenda brutalidade. 

Por que é tão difícil dar à luz um poema autêntico? Deve-se "implorar", feito um devoto diante de seu santo, pela "inspiração"? Ou o trabalho do gênio criativo consiste bem mais no trabalho árduo e na busca incessante, isto é, nas palavras de Einstein, em 10% de inspiração e 90% de transpiração

O poeta é aquele que consegue voltar a enxergar o mundo como faz uma criança maravilhada, ainda não contaminada por hábitos embotantes e ortodoxias rígidas? Ou a verdadeira poesia exige a maturidade de um olhar que enxerga horizontes mais amplos do que o cabresto permite ao comum dos mortais? 

Em meio a questões tais lança-se a avózinha Mija neste filme em que Poesia e Vida caminham pelas estradas do tempo com dedos entrelaçados feito dois jovens amantes ou dois gêmeos siameses.


É notável o quanto o cinema oriental consegue a proeza de lidar com temas tão difíceis (doença, estupro, suicídio...) conservando uma certa sutileza e reservando ao espectador o direito de contemplar aquilo sem se sentir invadido ou agredido pela agressão das imagens. 

O cinema europeu dos últimos anos, em especial nas mãos dos enfants terribles como Gaspar Noé, Michael Haneke, Thomas Vinterberg e Lars Von Trier, esforça-se pelo escancaramento da violência: Noé nos impõe 10 minutos ininterruptos de estupro em Irreversível; Haneke retrata com minúcias as torturas infligidas à uma família burguesa em Violência Gratuita; e membros amputados, inclusive genitálias, povoam algumas das obras dinamarquesas como Anticristo (Von Trier) e Submarino (Vinterberg). O impacto da obra-de-arte é compreendido como indissociável de um certo choque. É preciso traumatizar o espectador para que este compreenda os traumas dos personagens. E assim saímos do cinema contundidos, com as pupilas sentindo-se como um pugilista que apanhou no ringue e quedará por uns dias com o olho roxo.

No cinema oriental, apesar de certas figuras proeminentes que também investem na explícita e escancarada violência gráfica (caso dum Chanwook Park ou dum Takeshi Kitano), a "corrente" principal, me parece, dirige-se para prados estéticos mais tranquilos, contemplativos, serenos. Certos filmes de Kim-Ki Duk funcionam como Templos de Meditação ou mosteiros budistas: Primavera, Outono, Verão, Inverno... e Primavera, por exemplo, é um filme para se assistir sentado na posição de lótus, praticando yôga e em busca do Nirvana. 

Em contraste com a tagarelice de grande parte do cinema ocidental, o Oriente é também mais silencioso, verbalmente falando, numa aposta mais na intuição do que na racionalidade: Wong Kar-Wai, por exemplo, comunica muitíssimo sem precisar de palavras, só com imagens em câmera lenta e violinos dilacerantes, em Amor à Flor da Pele ou 2046.


Lee Chang-Dong, em seu Poesia, insere-se nesta escola de um cinema mais meditativo, que procede sem pressa e não quer chocar gratuitamente, ainda que o tema seja quase incontornavelmente doloroso. Realizar um filme de tamanha beleza e sensibilidade com um enredo repleto de escândalos e tragédias é uma das proezas maiores de Poesia: nela, as realidades brutais não são escamoteadas ou varridas para baixo do tapete como nos filmecos kitsch de Hollywood; mas o ímpeto humano de auto-expressão e de criação, fazendo frente às crueldades do real, é descrito como uma força vital que não deve ser negligenciada.

A Poesia, afinal de contas, não é uma "excrescência ornamental" das sociedades, como nos lembra Leminski. Não há nada de supérfluo ou desdenhável no ato humano de criar uma beleza que possibilite sobreviver a uma verdade que fere: em muitos casos, compreendida a partir da experiência interior do poeta, sua criação é absolutamente vital. Às vezes escrever um poema é um antídoto contra o suicídio; às vezes, é aquilo que se ergue contra a angústia para minorá-la, quem sabe até vencê-la. Às vezes, um poema retêm dentro de si aquilo que, caso o sujeito não tivesse podido expressar, acabaria por destruí-lo.

Em 2h20min de filme, Lee Chang-Dong descreveu o "processo de composição" de um poema que o espectador só conhece no final da película, depois de ter "imergido" na realidade existencial de onde emergiram os versos. Um senso de mistério resta vivo quando o filme se acaba e o espectador ainda está embalado pelas águas que correm em murmúrio silencioso, sem nada dizerem nem dos vivos nem dos mortos. 

O que a protagonista de Poesia parece ter aprendido nesta jornada em que a acompanhamos é a importância vital da expressão: quem não comunica se estrumbica, é vero; mas este "estrumbicar-se" dos que não conseguem extravasar às vezes adquire contornos trágicos. Se a mocinha que foi estuprada tivesse conseguido que suas feridas e traumas psíquicos jorrassem sobre uma página em branco, se a poesia lhe tivesse servido como terapia catártica, teria necessitado tacar-se da ponte? Fica a questão. 

Mas a questão só fica pois uma avózinha, poetisa de primeira viagem nos oceanos da criação, soube transportar-se imaginariamente para o coração de outro, identificar-se com a experiência alheia, ver o mundo com os olhos de uma defunta para sempre silente. O eu-lírico da poesia que coroa o filme é a própria Ofélia do Oriente, que saltou às águas em silêncio, sem expressar suas dores. Destruída pela agressão sofrida, a jovem torna-se protagonista de um poema extremadamente abissal: à caminho do salto fatal, sofre pelas promessas não cumpridas e pelo amor que não veio, antes de shakespeareanamente lançar-se às águas. Uma vida foi destruída pela brutalidade de uma gangue de jovens tarados inconsequentes e de seus pais, que só pensam em abafar o escândalo enchendo a família da vítima com a grana de uma vultosa indenização. Há algo de absolutamente irreparável nisto, algo que equivale à tragicidade que Noé tentou imprimir a seu Irreversível. 

É com uma má sensação de injustiça não redimida que assistimos à "vaquinha" que se faz para indenizar financeiramente à família da mocinha estuprada-suicida. Pois quantia nenhuma de dinheiro é capaz de oferecer a devida reparação à falecida e seus parentes. É o que a poetisa sexagenária compreende muito bem: não se trata de pagar para fazer calar, mas de expressar para fazer lembrar. O esquecimento, que a corrói por dentro através da Alzheimer, é também aquilo que ameaça lançar-se sobre o escândalo do crime para apagá-lo e abafá-lo. E um poeta é sempre inimigo do esquecimento. Para não ser inteiramente destruído pelo devorador Cronos, que Baudelaire descreve como um "inimigo" que "de que cada gota de sangue que derramamos se alimenta e se fortifica", erguemos, frágeis humanos, nossos versos e cantos tão desvairadamente desejosos de uma eternidade impossível!

Ô douleur, ô douleur! Le Temps ronge la vie
Et l'obscur Emnemi qui nous ronge le coeur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie.

(Oh dor, oh dor! O tempo rói a vida
E o Inimigo obscuro que nos rói o coração
Do sangue que perdemos cresce e se fortifica.)

BAUDELAIRE. As Flores Do Mal.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Teodorico, o Imperador do Sertão (Eduardo Coutinho, 1978)

"Teodorico, o Imperador do Sertão (1978) é o 2º documentário de Eduardo Coutinho. Assim como o primeiro (Seis Dias em Ouricuri, 1976), foi realizado para o Globo Repórter. Coutinho conhecia Teodorico Bezerra de matérias que havia lido em jornais do Nordeste. Tratava-se de um velho representante da aristocracia rural do Rio Grande do Norte. Possuía fazendas de gado e de cana e, como grande parte dos donos de terra do seu pedaço do Brasil, era o líder político da região. Praticava o poder à moda antiga. Não distinguia entre os interesses particulares e os públicos, mesclando-os todos numa complexa poção à base de paternalismo, orgulho, vaidade, franqueza, autoritarismo e ingenuidade.
Coutinho sabia que Teodorico era um personagem extraordinário. O Major - era assim que gostava de ser tratado - possuía um atributo precioso: não só tinha prazer em falar, mas falava sem dar voltas, convicto de que o ordenamento de seu mundo era praticamente divino. Isso era perfeito para o tipo de narrativa documental fundada na palavra oral que Coutinho começava a explorar. Mas, se sabia que o Major era bom conversador, Coutinho não fazia idéia de como reagiria a um convite para aparecer na televisão. Imaginava que a questão era convencer Teodorico a discorrer para todo o Brasil, no horário nobre da já poderosa Rede Globo de Televisão, sobre sua peculiar concepção de mundo. Henfil, que conhecia o personagem, intercedeu. Fez o contato, marcou um encontro e sugeriu a Coutinho, paulista de nascimento, que afetasse um sotaque nordestino durante a conversa. Nada disso foi necessário. O Major ficou encantado com a possibilidade de ser filmado. Hospedou a equipe em sua fazenda e se pôs a falar durante seis dias - quatro deles ali, dois outros em Natal. O resultado é um dos melhores documentários já realizados no Brasil.
Onde mais se pode ouvir um coronel nordestino dizer o seguinte a seus empregados, num pacato dia de domingo (a voz sai dos alto-falantes espalhados pela fazenda): 'Semana que vem começa o alistamento eleitoral. Eu mesmo quero tirar a fotografia de vocês. Todos aqui devem ser eleitores. É como sempre digo: a única coisa que eu posso precisar de vocês é o voto. Outra coisa vocês não têm pra me dar'. Ele continua: 'Vocês não têm um automóvel para me emprestar, vocês não têm um cavalo para eu andar. Mas o voto vocês têm. E, se vocês não me dão o voto, por que é que eu vou querer continuar a conversar com vocês?' Não se pense que o Major diz essas [palavras] com aspereza. O tom é didático e paciente, como o de um professor primário que se esforça para ensinar a tabuada do oito a seus alunos. O major Teodorico é o dono das almas locais. [...]
Na mão de qualquer outro documentarista, Teodorico, o Imperador do Sertão seria uma caricatura; vale dizer: não existiria. Poderia ser dispensado com um sorriso irônico. Ouvido por Coutinho, ele não apenas existe, como tem suas razões e é capaz de explicá-las. Concederam-lhe tempo para nos seduzir, e subitamente nos damos conta: um homem como Teodorico, dizendo o que diz, consegue ser fascinante. Essa é uma verdade difícil de admitir, mas, em relação ao poder e aos poderosos, existe lição maior a ser aprendida?" 
 JOÃO MOREIRA SALLES
(Ilha Deserta - Filmes - Ed. Publifolha)