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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

:: nego-bão! ::


"Pelas barbas do profeta!"
É isto aí que eu chamo de nego-bão! Cornel West, o simpatia acima, é um pensador com black-power e voz de barman, amante dos Beatles, de Mayfield e do blues e que compartilha sabedoria como quem toca um solo de Bird. É uma espécie de Charlie Parker da filosofia, um Malcolm X da academia, um Hendrix da crítica dissonante e cheia de microfonia à sociedade contemporânea... É um prazer imenso ouvir um cara desses falando, uma mente esperta dessas operando, um vida tão intensa borbulhando!... A cena acima saiu de um dos documentários mais foda da década passada, o Examined Life, da Astra Taylor (que fez também o documentário sobre o Zizek que eu tô doido pra ver...). Listen to the fella!!!




Ir no cinema blockbosta pra quê? Arrasa-quarteirão só arrasa... com o cérebro. Baixae e... turn on, tune in and drop out!

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:: ESTRADA PERDIDA e CIDADE DOS SONHOS ::
de David Lynch (1997)

- por Vladimir Safatle -


Mène-moi vers la vie
Au-delà de la grille basse 
Qui me sépare de moi même
Qui divise tout sauf mes cendres
Sauf la terreur que j'ai de moi


PAUL ÉLUARD

“Você nunca me terá.” Ela diz esta frase depois de transar com ele na frente de um carro estacionado com faróis ligados. Depois, ela entra em uma barraca de beira de estrada para desaparecer de uma vez por todas. Ele muda de persona e a segue até a barraca. Mas, lá, só encontra um homem com maquiagem de quem acabou de sair de filmes de terror série B. Um homem com câmera em punho que grita: “Afinal qual é o seu nome?”. Esta não é uma pergunta tão fácil quanto poderia parecer. Como veremos, sua dificuldade vem da frase que ainda ressoa na cabeça deste personagem que não pode responder pelo seu nome: “Você nunca me terá”. Ela talvez nos dirá porque só um tempo como o nosso poderia produzir um filme como A Estrada Perdida.

Diz-se normalmente que Lynch transformou-se em um cineasta obscuro, destes que amam narrativas que se dissolvem em um emaranhado de labirintos e falsas pistas. Mas podemos dizer também que é alguém que deixa muito claras suas intenções. Por exemplo, em um certo sentido, a história de A Estrada Perdida é banal. Ela é dividida em duas partes.


Na primeira, o saxofonista Fred Madison assassina sua mulher misteriosa, Renée. Entre os dois, pairava uma atmosfera de silêncio catastrófico e traição feminina. Fred não lembra do assassinato. Ele só tomou conhecimento através de um vídeo feito por alguém que entrou em sua casa e o filmou no momento em que estava de joelhos, no quarto, ao lado do corpo estraçalhado da mulher.

Na segunda parte, o mecânico Pete Dayton começa a ter um caso com Alice: amante de Mr. Eddy/Dick Laurent, gângster-produtor de filmes pornográficos. Laurent descobre o caso, e Alice convence o mecânico a fazer um assalto e fugir com ela em direção ao deserto. Lá, no meio do deserto, ela desaparece depois de transar com Pete.

O material narrativo é banal, mas a composição não. Toda a peculiaridade de A Estrada Perdida está nesta tensão entre elementos apodrecidos da linguagem cinematográfica e processos de composição capazes de provocar estranhamento diante daquilo que era muito visto (1). São eles que vão tecendo a costura entre as duas histórias no interior do filme e vão duplicando detalhes e personagens (Fred Madison/Peter Dayton; Renée/Alice), criando uma espécie de banda de Moebius vertiginosa na qual o verso transforma-se necessariamente no reverso.

Mas a complexidade das duplicações de Lynch é relativa, pois submete-se a um modelo geral de organização. Neste sentido, o título, A Estrada Perdida, não poderia ser mais didático e indicativo. Ele remete necessariamente a um road movie, mas sem esquecer de lembrar que se trata de um road movie fracassado : história de alguém que se perdeu no meio do caminho.

Aqui, já estamos diante de um dos elementos centrais dos filmes de Lynch: a estrada. Ela não está presente apenas em A Estrada Perdida, de 1997. Coração Selvagem e Uma História Real¸ só para ficar entre os mais evidentes, são filmes estruturados como um road movie. Mullholand Drive, que foi apresentado como a continuação de nosso filme, também é algo como um road movie, e não é por acaso que placas de trânsito, indicações de ruas e outros sinais de deslocamento aparecem de maneira tão recorrente no filme.

Mas aqui vale a pergunta: o que é exatamente um road movie? Podemos dizer que ele é, antes de qualquer coisa, o sucedâneo contemporâneo dos antigos romances de formação. Nós seguiremos alguém que irá fazer uma viagem e chegará ao seu destino, mas neste trajeto ele irá se deparar com um acontecimento que destruirá seu antigo e limitado horizonte de compreensão.Desta destruição, ele sairá transformado em outra pessoa. Depois da viagem, ele encontrará o verdadeiro ponto de chegada e nunca mais será o mesmo, ele mudará de identidade. Dito isto, A Estrada Perdida é o road movie perfeito ou, talvez, o único road movie sobre a impossibilidade de um road movie.

Sendo A Estrada Perdida um road movie faremos, pois, três perguntas centrais: Qual é o ponto de chegada? Qual é o acontecimento? Que impetus move o trajeto ? Elas vão nos permitir encontrar os pontos fixos que estruturam a narrativa do filme. Comecemos pela primeira pergunta.

Dick Laurent is dead

“Dick Laurent is dead.” Quando Fred Madison ouvir esta frase no interfone de sua casa, o filme começará. Quem a pronunciou, ninguém sabe. Durante quase todo o filme este será um enunciado sem enunciador, uma voz sem corpo. Mas essa frase será uma espécie de fórmula capaz de organizar o sentido da ação cinematográfica, tal como o imperativo “The slepper must awake” repetido ad infinitum em Duna, outro filme de Lynch.

Quem é Dick Laurent? Isto nos só saberemos na segunda parte do filme: um gângster, empresário da indústria pornográfica e que nutre uma relação “paternal” com Pete, aquele que ocupará o lugar de Fred Madison. Figura, ao mesmo tempo, paternal e obscena: essa conjunção não pode nos deixar indiferentes. Ela aparece em vários filmes de Lynch. Suas figuras de autoridade sempre estão no exato ponto onde a enunciação da Lei e assunção do gozo se cruzam.

Nesse sentido, nada mais emblemático do que a cena na qual Dick Laurent, dirigindo seu carro na velocidade definida pela Lei, é ultrapassado por um motorista apressadinho. A punição virá sem perdão: o motorista será jogado fora da estrada, arrancado de seu carro, colocado de joelhos com uma arma apontada para sua cabeça, enquanto Laurent espanca-o gritando que ele é um irresponsável por correr daquele jeito, que ele deveria aprender a respeitar a Lei, já que 30% dos acidentes de estrada acontecem em situações como aquela. A enunciação da Lei aparece como forma suprema de realização de um gozo sádico.

Matar Dick Laurent é, pois, uma forma de procurar suspender esta Lei que esconde um gozo obsceno em suas entrelinhas. Desejo de revelação que encontramos em outros filmes de Lynch. O que é a história do seriado de televisão Twin Peaks, por exemplo, a não ser o processo aparentemente infinito de dissolução da imagem de ordem e virtude de uma pequena cidade em um emaranhado de modos inconfessáveis de gozo? Como se o verdadeiro desejo de Lynch fosse desvelar a máquina desejante que se esconde por trás das formações da Lei. Um pouco como Joseph K., o herói de O Processo, que, ao entrar no tribunal e enfim conseguir folhear as páginas do livro da Lei, só encontra desenhos pornográficos.

“Dick Laurent is dead.” Quando essa frase for repetida, quando o mesmo Fred Madison enunciá-la em seu interfone e “falar a si mesmo”, o filme terá terminado. O trajeto estará completo: a mensagem parece encontrar um enunciador( 3). Fred parece ter feito aquilo que ele estava destinado a fazer, ter ocupado o lugar que, desde o início, era seu; mesmo que ele não o soubesse.

Mas, talvez, “completo” não seja a palavra exata, pois alguma inadequação radical continua impelindo o personagem a continuar em sua estrada perdida. Mesmo depois de Dick Laurent morto, Fred Madison não realizou plenamente seu destino. Assim, se o tema clássico de um road movie consiste em mostrar o trajeto que um sujeito deve atravessar para “tornar-se o que se é”, para usar uma expressão de Nietzsche, A Estrada Perdida nos conta a história desse trajeto bloqueado que vai de si a si mesmo, desta impossibilidade da voz autônoma que ressoa como um destino assumir o corpo escolhido para encarná-lo. Como já disse, história de um processo de formação, ou do fracasso dele.


As mulheres de David Lynch

Sendo assim, devemos nos perguntar pelas causas desse fracasso, o que nos coloca na via do acontecimento fundamental que faz com que Fred Madison perca o mapa que poderia guiá-lo no seu caminho.

É verdade que o filme parece, de uma certa forma, começa tarde demais. Desde o início, o clima é pesado, os diálogos e olhares que circulam entre Fred e Renée, sua mulher, são secos e difíceis; tem-se a impressão de que algo de aterrador já aconteceu. O acontecimento parece já ter tido lugar.

Mas, se olharmos para os outros filmes de Lynch, encontraremos uma indicação preciosa que poderá nos guiar: todos os acontecimentos acontecem pelas mãos de mulheres. Em Veludo Azul, o trajeto de Jeffrey em direção à uma experiência capaz de romper com as certezas menores de seu mundo estável de cidade pacata do interior norte-americano será impulsionado pelo encontro com Dorothy Vallens, uma misteriosa cantora de cabaré que não deixa de nos remeter a mesma constelação semântica de fragilidade e sedução de Renée/Alice.

Seu caminho vai levá-lo ao quarto de Dorothy, onde, escondido dentro de um armário, ele descobre o ritual masoquista e incestuoso que a liga a Frank: um bandido violento e impotente. Ao se deparar com essa negatividade que marca tudo o que é da ordem do sexual, Jeffrey poderá completar seu destino. Sexo aparece aqui como lugar de verdade.

Como ele aparecerá mais tarde em Mullholand Drive, já que será apenas depois que a jovial e deslumbrada Betty transar com Rita (mais um destes personagens femininos marcados pelo mistério, na linhagem Dorothy Vallens - Renée/Alice ) que seu mundo de sonhos dará lugar a um Teatro de Ilusões que, para ela, terá o valor de um Teatro de Horror: única forma de uma experiência da ordem do real poderá se fazer sentir.

Em A Estrada Perdida, o procedimento não é diferente. Lembremos primeiro que a razão pela qual Dick Laurent deve morrer é simples: ele está entre Pete e Alice (mais tarde ele aparecerá transando com Renée). Ele priva Pete do gozo de Alice e matá-lo é a única forma alcançá-la. Mas esta questão ligada à privação do gozo parece perpassar alguns momentos centrais de A Estrada Perdida.

Assim, na primeira parte do filme, vemos um Fred Madison atônito e suado tentando transar com Renée. As imagens são em câmara lenta para sublinhar o corpo como carne. Infelizmente, o resultado final será alguns tapinhas nas costas e um consolador: “It’s ok, it’s ok”. O chão se abre entre Fred e o gozo de seu objeto de desejo. Uma fenda tão grande quanto aquela que o separa definitivamente de si mesmo.

Mas esse não parece ser o problema de Pete. Ao contrário, como dirá o policial escalado para vigiá-lo: “Onde ele consegue arrumar tantas bucetas?”. Sim, ao contrário de Fred, Pete sabe como fazer. Ele sabe tão bem que acaba se apaixonando por aquela que é a mulher reduzida a sua mera condição instrumental: a atriz de filme pornográfico. Mulher reduzida à condição de suporte imaginário de fetiches. Só que esta mulher reduzida à sua própria imagem, sempre disponível em qualquer locadora e “prêt-à-jouir” será exatamente aquela que dirá: “Você nunca me terá”. Pete apaixonou-se por uma imagem que se esvai no deserto, assim como Fred não sabe o que fazer com a carne de mulher que ele tem nas mãos. Todas as duas os levaram para uma estrada perdida.

Nesse sentido, matar Dick Laurent nunca poderia levar Fred/Pete a alcançar aquilo que daria um pouco de estabilidade à sua procura. Pois este objeto é essencialmente vaporoso, trompe l’oeil feito de imagens e projeções. A Estrada Perdida conta assim a história da descoberta de quão opaco são os objetos aos quais o desejo teima em se vincular. Descoberta que nos leva a um encontro traumático com a impossibilidade de terminar o trajeto da viagem. Um encontro traumático com um destino que só pode se realizar como queda.


Filmar com ruínas : a estética do real nos anos 90

Essa história de objetos fugidios e de atrizes pornôs escorregadias não seria tão emblemática se ela não estivesse ligada a algumas questões centrais do cinema dos anos 90.

O cinema dos anos 90 viu um movimento geral que poderíamos chamar de “retorno ao real”. Contrariamente a estética hiper-plástica e publicitária do anos 80 (neste sentido, nada mais ilustrativo do que Mauvais Sang, de Léos Carax, e Diva, de Jean-Jacques Beinex), os anos 90 teriam sido marcados por uma promessa de retorno ao real conjugada de muitas maneiras. Lars von Trier e seus amigos, por exemplo, expuseram uma das facetas deste retorno através do manifesto “Dogma 95” com seus imperativos de captar as imagens em sua crueza “originária”. Um projeto estético necessariamente acompanhado por conteúdos "transgressores" que visavam desvelar a perversão que se escondia por trás da lei paterna (Festen, de Thomas Vinterberg) ou, ainda, revelar a estupidez e o cinismo como último recurso contra as frustrações da vida social (Os Idiotas, Lars Von Trier). Os irmãos Dardenne (Palma de Ouro em Cannes em 2001 com Rosetta) levaram uma atriz amadora a repetir o cotidiano des-estetizado e insuportável de uma garota belga pobre a procura de emprego.

Nós podemos dizer que, a partir de A Estrada Perdida, o projeto estético de David Lynch mostra-se absolutamente engajado nas coordenadas de um "cinema do real", mas seu engajamento obedece a uma lógica totalmente peculiar, algo muito distinto do "jargão da espontaneidade" de Trier.

Notemos como, em A Estrada Perdida, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o "Homem misterioso" usa pancake, maquiagem de olhos e roupa preta como qualquer vampiro barato de filme de baixo orçamento, os policiais são estúpidos como todos os policiais, o amante/cafetão de Renée, Andy, tem pele bronzeada e bigode fino como todo amante latino, isto ao menos segundo as leis de Hollywood. Os personagens são carregados demais e às vezes parecem apenas repetir falas e desempenhar papéis que todos sabem gastos. Tudo parece ter sido reaproveitado, como em uma liquidação de antigos clichês da história do cinema que já não funcionam direito. Desta forma, Lynch filma com ruínas da gramática do imaginário cinematográfico.

Este é um dos pontos de genialidade do filme e que diz respeito ao processo geral de criação de David Lynch. Trata-se de abrir espaço para uma experiência do real através da repetição mimética de uma realidade fetichizada. Na mão de outro cineasta, estas histórias de um mecânico que se apaixona pela amante do velho gângster, ou do marido atormentado que assassina a própria mulher sem lembrar-se de nada virariam histórias triviais. Mas Lynch sabe que estas histórias não podem mais ser contadas - elas estão gastas demais - e trata de mostrar isto a todo momento. A forma de estrutura narrativa nega o conteúdo da história que ela deveria suportar. É deste conflito que vem a impressão irredutível de estranhamento própria a A Estrada Perdida.

Vivemos em um mundo onde investimos libidinalmente ruínas. Neste sentido, Lynch nos oferece uma via de sublimação ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais nada. O que era muito familiar deve transformar-se em estranho. Estratégia que abre espaço à experiência do real através do embaralhamento das noções de identidade e semelhança que estruturam nosso universo estável de referências. Um procedimento que Lynch levará posteriormente ao extremo em Mulholland drive.



Encontrar o real: de A Estrada Perdida a Cidade dos Sonhos

Como já disse, Mulholland Drive foi apresentado como uma espécie de continuação de A Estrada Perdida. Não que se trate da resolução da narrativa. Os dois enredos são totalmente distintos. Mas, de uma certa forma, Mulholland avança mais neste caminho já aberto pelo seu antecessor.

Novamente, se analisarmos bem, veremos que o filme tem uma história que chega a ser relativamente simples. Betty Elms chega em Hollywood vinda de uma pequena cidade do Canadá. Ela quer ser alguém: "Uma atriz ou uma estrela", é o que ela diz. Seu corpo recém-egresso da adolescência denuncia a vontade de chegar a portar aquilo que faz de uma mulher um objeto de desejo. Durante dois terços do filme ela não cansará de repetir que tudo está correndo como em seus sonhos. Tudo se passa como uma viagem que apenas repete as imagens perfeitas do folheto de turismo.

Mas Betty encontra uma mulher que parece saída dos filmes de Rita Hayworth. Ela não sabe de onde veio, seu nome é falso, sua memória foi apagada em um acidente de carro. Tudo o que ela tem é uma bolsa cheia de dólares e uma chave azul. Nada mais previsível: uma quer ser alguém, a outra não sabe quem é mas tem beleza cinematográfica, trejeitos de estrela e dinheiro, ou seja, tudo o que faz alguém ser. Na verdade, uma quer ser aquilo que a outra já é sem saber. 

Mulholland drive funciona assim como um road movie de mão dupla: uma mulher quer construir uma história do presente para o futuro, a outra quer reconstituir sua história do presente para o passado. Entre as duas há um filme que deve ser feito, mas ninguém se entende sobre quem deve ocupar o lugar da atriz principal. Por enquanto, o lugar da mulher está vazio. A atriz foi dada como morta. Mas o filme deve continuar e alguém deve vir ocupar o lugar que ficou vazio, mesmo que para isso devamos preenchê-lo com personagens que estão apodrecendo.

"Não faça parecer real, até que se torne real." Este é o conselho que o diretor de cinema deu à garota que foi fazer seu primeiro teste para tornar-se uma atriz. E, realmente, durante dois terços do filme, nada parece real em Mulholland drive. Novamente, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o diretor de cinema usa roupa preta e óculos de intelecual como todo diretor de cinema, os policiais estúpidos como todos os policiais retornam, os managers da indústria cinematográfica são mafiosos como todos os managers. Novamente, os personagens são carregados demais e às vezes parecem lutar contra qualquer coisa de sobre-humano para poderem repetir suas falas e desempenhar seus papéis.

Mas há uma impressão ainda mais forte que atravessa Mulholland drive. É difícil não nos sentirmos diante de um filme que, de uma certa forma, já deveria ter acabado. Nesse sentido, a cena paradigmática é o primeiro teste de Betty Elms na sua trajetória para ser alguém. O produtor do filme é um velho arruinado, o galã com o qual ela deverá atuar é um sessentão com bronzeado estilo Miami Vice, o diretor do filme é alguém que está repetindo a mesma coisa há anos. Betty Elms parece ter chegado tarde demais, seu filme ficou velho. Da mesma forma que nossos filmes ficaram velhos demais. Os quadros de sociabilização se mostram incapazes de suportar uma produção de identidade sem produzir um resto que não se enquadra em cena alguma.

No entanto, se Mulholland drive é um road movie, então para onde ele irá levar Betty Elms? Para o mesmo lugar que Lynch levou Fred Madison/Pete Dayton. Para um encontro traumático com um destino que só pode se realizar como queda. Se voltarmos ao momento-chave no qual Pete transa com esta imagem de mulher ideal que ele vê desaparecer (para ficar em seu lugar apenas um homem misterioso que aponta uma câmera em sua direção, como um olhar que retorna a si mesmo depois da dissolução do objeto), então veremos que Mulholland drive traz uma cena estruturalmente idêntica.



Trata-se deste momento no qual Betty Elms está deitada na cama, pronta para dormir, enquanto Rita (que não é uma atriz pornô, mas é a representação perfeita de outro estereótipo: a Gilda do cinema noir) está lá, encostada na porta, nua e envolta apenas por uma toalha. "Por que você não vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos depois as duas estarão transando. "Eu não me lembro", diz Rita. Mas nós sabemos que é a primeira vez que Betty faz isto. E depois disto feito ela não poderá mais voltar atrás. Rita terá um sonho: "No hay banda, no hay orquestra", é o que ela dirá enquanto dorme. Ao acordar, ela levará Betty a um Teatro de Ilusões chamado Silêncio. Tal como em A Estrada Perdida, sexo aparece novamente aqui como lugar de verdade.

No Teatro, um ilusionista está no palco repetindo as mesmas palavras: "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion." Quando ela ouve tais palavras, Betty treme como se estivesse possessa ou dentro de um terremoto que indica como todo seu universo está desmoronando. Mas Lynch não parece muito interessado em simplesmente fazer uma forma de crítica do fetichismo ao mostrar que corremos atrás de imagens que, no fundo, são ilusões. Seu jogo é outro e muito mais radical.

  Ele se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do ilusionista. Ela irá cantar a capella, uma velha canção de amor. Mesmo tendo sido advertidas que tudo seria ilusão, que tudo certamente se tratava de um play-back, Betty e Rita choram compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simulações e imagens gastas algo acontece. Em meio a uma artificialidade que não teme dizer seu nome uma experiência da ordem do real enfim tem lugar. Esta experiência não é a revelção de algo perdido ou de uma espontaneidade originária massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela é o estranhamento daqueles que se vêem investindo libidinalmente em ruínas, daqueles que se vêem cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma imagem perfeita. "It's just an illusion", sim, eu sei, mas não posso me impedir de chorar.

E esta é talvez a grande lição que David Lynch tem a nos dar: toda arte autêntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que só haverá experiência do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de ilusões.

Mas Betty não realizou seu destino, da mesma forma que Fred Madison. Eles são ninguém, seus road-movies não chegaram a lugar algum. Tudo o que Fred pensa em fazer é assassinar aquela imagem que nunca será sua (Renée) ou aquele Outro que parece ter o que ele gostaria (Dick Laurent). Tudo o que Betty Elms quer é estar no lugar "da garota" que será o suporte da reprodução fantasmática das mesmas imagens fetichizadas. Para eles, a experiência do real só poderia ser uma experiência de destruição. Mas para Lynch ela foi uma sublimação. Porque o desejo de Fred Madison e Betty Elms continuou preso ao mesmo sistema de imagens em decomposição que o aprisionou e o constituiu; enquanto que David Lynch mostrou que o único destino possível para nós consiste em aprendermos a contruir estradas com ruínas.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

:: Modern Times ::


:: TEMPOS MODERNOS ::
de Charlie Chaplin
(1936)


Já nos primeiros quadros, Modern Times  escancara sua veia crítica ao comparar os operários que entram na fábrica a um rebanho. No meio deste, o espectador atento pode notar uma ovelha negra: uma outsider em meio à branca uniformidade da massa. Isto já prenuncia o destino que aguarda Carlitos no filme: o de ovelha negra do capitalismo, que irá pôr em questão um modo de produção que lida com homens como se fossem gado e que os exaure para deles arrancar lucros. Vale ressaltar que "em A Greve, de 1926, Serguei Eisenstein utilizou o mesmo recurso metafórico para identificar operários em greve com bois indo para um matadouro" (Alves).

O clássico de Chaplin, além de ser uma engraçadérrima sucessão de gags certeiras, é também um dos filmes americanos mais mordazes em sua crítica ao modo de produção capitalista, especialmente em sua versão fordista-taylorista. Ainda que tenha sido produzido na década de 1930, poucos anos após a Grande Depressão que se seguiu ao Crack da Bolsa em 1929, o filme dirigido, escrito, estrelado e composto por Chaplin prossegue tendo muito a nos dizer. Como toda grande obra de arte, seus elementos atemporais sobressaem sobre o que soa datado.

Tudo bem que para um entendido em marxismo o filme possa soar como uma "vulgarização" ou simplificação das minuciosas análises do autor d'O Capital: Tempos Modernos seria uma espécie de Marx For Dummies. Ou então um Einseinstein For Americans. Isto não diminui o imenso mérito que a obra possui para ilustrar o funcionamento de mecanismos de opressão e exploração, expostos de modo sintético, pedagógico e, claro, muito divertido. Aprende-se melhor o que se aprende sorrindo!


Apesar de seu "esquematismo", o filme representa muitíssimo bem alguns dos elementos mais desumanizadores do capitalismo. Pra começo de conversa, o patrão é descrito como um parasita ocioso que fica lá em seu escritoriozinho montando seu quebra-cabeça e gerindo a fábrica através de câmeras de vigilância, sempre ordenando ao seu capataz que acelere a linha de produção, enquanto o operariado suja a camisa de graxa do nascer do Sol ao fim do dia num frenesi enlouquecedor... 

A mecanização e fragmentação extrema do trabalho é o próximo alvo: os trabalhadores estão reduzidos a funções simplérrimas, repetitivas e monótonas (Carlitos, lembrem-se, é um apertador de parafusos). A linha de montagem aparece como uma potência independente, que segue seu rumo de modo implacável, em perfeita indiferença em relação ao cansaço do operário ou às inconveniências que podem acometê-lo (como uma mosca pousando em seu nariz ou uma coceira nos fundilhos...). A maquinaria, ao invés de estar a serviço do homem, torna-se uma "segunda natureza" que o homem sente-se incapaz de controlar e que o transforma quase num apêndice seu. O homem torna-se uma parte da engrenagem, quase como um escravo ou servidor dela.

Uma das cenas mais eloquentes, com certeza, é aquela em que a linha-de-montagem  está tão freneticamente acelerada que Carlitos acaba sendo "sugado" para o interior da máquina. Não creio que exista nenhuma imagem mais perfeita para sintetizar a idéia de Marx de que o trabalhador, no sistema capitalista, vai perdendo sua feição humana e vai sendo objetificado a ponto de ser considerado pela burguesia, a classe que possui a propriedade privada dos meios de produção, como uma parte da engrenagem, um mecanismo inanimado, a ser usado como se usa um martelo ou um alicate.

Óbvio que ser a vítima cotidiana de tanta exploração deslavada causa no operário embotamento mental, fadiga profunda e, claro, desordens psíquicas graves. Depois de apertar parafuso o dia inteiro, todo santo dia, não surpreende que Carlitos comece a confundir botões de roupa com parafusos e que não consiga segurar uma tijela de sopa sem derramá-la inteira. E não tarda até que ele tenha um colapso nervoso e saia botando a fábrica na anarquia. O seu "nervous breakdown" é o momento em ele atinge a saturação e seu corpo extenuado rebela-se com um "basta!" contra as cruéis imposições da fábrica e do patrão que a gere.

Por isso Tempos Modernos é também uma das mais didáticas e sintéticas exposições do que significam os conceitos de "alienação" e "reificação", expostos com uma clareza suficiente para torná-los inteligíveis até para quem jamais conseguiria enfrentar um texto de Lúkacs.

Outro momento de sarcasmo certeiro é aquele em que uma Máquina de Alimentar Operário é oferecida ao patrão como uma oportuna aquisição para maximizar os lucros. É uma profecia chapliniana que aponta para o futuro advento do fast-food, aquela invenção americana que, dentre outras coisas, visava diminuir o tempo de almoço dos trabalhadores para maximizar a eficácia produtiva.  Ao invés de liberar o "gado" para que ele vá comer capim por uma hora, interrompendo assim o trabalho, porque não alimentá-lo durante o próprio trabalho? O caráter grotesco e obsceno da obsessão pelos lucros se escancara aí, neste apetrecho técnico que trata um homem como um cavalo em quem enfiam ração enquanto ele galopa debaixo do chicote...

* * * * *

Chaplin não faz de seu personagem um herói da classe operária, consciente da missão histórica do proletariado --- a working class hero, como diria Lennon. Na verdade, este operário não parece possuir absolutamente nenhuma "consciência de classe", "engajamento político" ou envolvimento partidário. Carlitos não é Norma Rae. É por mero acaso que ele acaba sendo tomado por "líder" de uma passeata comunista. E sua "revolta" dentro da fábrica, quando põe o circo em anarquia ao zoar com as engrenagens e borrifar óleo em seus colegas, como se eles fossem robôs, é mais um ataque histérico do que uma ação consciente. Este homem está tão objetificado, alienado, usado e humilhado que mesmo sua rebeldia carrega a marca do mecanicismo.

Mesmo quando seus atos parecem perfeitamente intencionais, com motivações claras os determinando, depois revelam-se como atos cometidos "no escuro". Por exemplo: quando ele auxilia a polícia a desarmar os invasores do presídio, as autoridades lêem este ato como se viesse de um aliado. Quando, na verdade, tudo o que Carlitos faz deve-se ao fato de estar pilhadão de cocaína...

Como de praxe, Chaplin dá um jeito de inserir uma história de amor no meio de sua crônica das desventuras proletárias nos tempos modernos. E o romance entre o ex-operário desempregado e a bela ladra-de-bananas é uma singela demonstração dos sonhos simples da gente simples, para quem ter uma casa própria e uma vaquinha que lhe supra com leite já é quase uma utopia. Alguns dos atos do casal também já apontam (profeticamente) para a Sociedade de Consumo hoje tão onipresente: quando eles decidem passar uma madrugada no Shopping Center, andando de patins e vestindo casacos de luxo, revelam possuir sonhos consumistas e de entretenimento bem típicos do american-way.

Gastar mais saliva para enaltecer Tempos Modernos é desnecessário: ele já tornou-se um clássico reconhecido e venerado, e sua mensagem permanece atualíssima, assim como suas piadas prosseguem deliciosas. Rever este filme hoje é uma deliciosa experiência que nos prova que a leveza pode se conjugar com a crítica, que é possível ser bem-humorado sem ser fútil, e que grandes artistas do século passado souberam, com graça e esperteza, fazer uma necessária crítica aos descalabros do capitalismo. E é de pleno mérito que Carlitos, com sua mescla de desengonço, ingenuidade e romantismo, se sagraria uma das figuras icônicas da cultura no século 20.

Porém, se há algo de "duvidoso" na mensagem do filme, me parece, é que as atitudes sempre trapalhonas de Carlitos poderiam conduzir a uma leitura equivocada que visse nisto --- na sua falta de jeito e de esperteza... --- a causa de sua posição social subalterna. Seria possível ler Tempos Modernos como as desventuras de um indivíduo que, em razão de sua inaptidão pessoal para o trabalho, acaba "condenado" a um estado de outlaw, de semi-mendigo, de ovelha negra.

Decerto que faríamos uma interpretação grosseira e desleal com a obra se tirássemos dela esta conclusão: "aqueles que estão lá embaixo na pirâmide social, em trabalhos manuais extenuantes e mau-pagos, vivendo na miséria e na dura luta pela sobrevivência física, de certo modo merecem seu status por serem inaptos, preguiçosos ou pouco inteligentes". Idéia preconceituosa, típica de burguês ou de aristocrata que não quer perder seus privilégios, e que tende a mascarar um sistema econômico objetivamente injusto e opressor em nome de uma ilusória noção de que "cada um tem o que merece".

Contra esta má leitura possível do filme, eu preferiria destacar que o personagem, se de fato se mostra inadaptado ao trabalho mecanizado, é mais por culpa do sistema que do trabalhador. Pois que trabalhador sensível não se sentiria ultrajado por ser tratado como coisa, explorado como gado, mantido na miséria enquanto os ricos se empanturram de caviar e champanhe? Tempos Modernos é uma crônica da inadaptação e da revolta, e nossa simpatia é convocada a se aliar aos oprimidos. É  também uma sugestão de outras vias humanas mais dignas: a arte e o amor, por exemplo.


O filme enfatiza de modo recorrente o quanto um sujeitinho tão "avoado" e "romântico" acaba por sabotar, mesmo sem querer, o processo produtivo extremamente bem-regrado e calculado da fábrica capitalista. Carlitos é como um pequeno poeta de cartola, lúdico e brincalhão, que não sabe se encaixar no gélido e sério mundo industrializado dos adultos. Ele é sempre aquele "peralta" que põe a descoberto as imperfeições da técnica ao causar uma catástrofe involuntária apoiando-se numa alavanca ou deixando cair a ferramenta em momento inoportuno. Ele é o terror dos burocratas e dos patrões. Demasiado desengonçado para adaptar-se ao trabalho mecanizado, e sonhador demais para aceitar de bom grado ser reduzido a um apertador-de-parafusos de carne-e-osso, ele é um destes que parece condenado a um sistema que sente como estranho a si e seus sentimentos. Um destes que não se resigna a ser usado e que irá, de travessura em travessura, desenhar para si um outro caminho.

Carlitos não deixa de imitar seu criador e personificador, o próprio Charlie Chaplin, quando procura escapar das garras do trabalho mecânico e desumanizante ao tentar uma carreira artística. Ele tenta tornar-se um cantor e um mímico, conquistando sua ascensão social através do showbusiness. Não dá muito certo e ele acaba reenviado, como sempre, à sarjeta. Mas valeu a tentativa. Quando o filme termina, o vemos prestes a recomeçar sua dura luta --- desta vez, acompanhado. E é belo vê-lo caminhando, com os pézinhos abertos e a trouchinha no ombro, ao lado de sua pequena ladra-de-bananas em direção a novas peripécias proletárias. 

E talvez até mesmo uma suprema boa notícia possa ser tirada desta procissão de desventuras e trapalhadas seja essa: se fôssemos todos um pouquinho mais como Carlitos, estaríamos todos ajudando a sabotar o capitalismo. Ótima razão pra ser Carlitos!


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