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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

:: Modern Times ::


:: TEMPOS MODERNOS ::
de Charlie Chaplin
(1936)


Já nos primeiros quadros, Modern Times  escancara sua veia crítica ao comparar os operários que entram na fábrica a um rebanho. No meio deste, o espectador atento pode notar uma ovelha negra: uma outsider em meio à branca uniformidade da massa. Isto já prenuncia o destino que aguarda Carlitos no filme: o de ovelha negra do capitalismo, que irá pôr em questão um modo de produção que lida com homens como se fossem gado e que os exaure para deles arrancar lucros. Vale ressaltar que "em A Greve, de 1926, Serguei Eisenstein utilizou o mesmo recurso metafórico para identificar operários em greve com bois indo para um matadouro" (Alves).

O clássico de Chaplin, além de ser uma engraçadérrima sucessão de gags certeiras, é também um dos filmes americanos mais mordazes em sua crítica ao modo de produção capitalista, especialmente em sua versão fordista-taylorista. Ainda que tenha sido produzido na década de 1930, poucos anos após a Grande Depressão que se seguiu ao Crack da Bolsa em 1929, o filme dirigido, escrito, estrelado e composto por Chaplin prossegue tendo muito a nos dizer. Como toda grande obra de arte, seus elementos atemporais sobressaem sobre o que soa datado.

Tudo bem que para um entendido em marxismo o filme possa soar como uma "vulgarização" ou simplificação das minuciosas análises do autor d'O Capital: Tempos Modernos seria uma espécie de Marx For Dummies. Ou então um Einseinstein For Americans. Isto não diminui o imenso mérito que a obra possui para ilustrar o funcionamento de mecanismos de opressão e exploração, expostos de modo sintético, pedagógico e, claro, muito divertido. Aprende-se melhor o que se aprende sorrindo!


Apesar de seu "esquematismo", o filme representa muitíssimo bem alguns dos elementos mais desumanizadores do capitalismo. Pra começo de conversa, o patrão é descrito como um parasita ocioso que fica lá em seu escritoriozinho montando seu quebra-cabeça e gerindo a fábrica através de câmeras de vigilância, sempre ordenando ao seu capataz que acelere a linha de produção, enquanto o operariado suja a camisa de graxa do nascer do Sol ao fim do dia num frenesi enlouquecedor... 

A mecanização e fragmentação extrema do trabalho é o próximo alvo: os trabalhadores estão reduzidos a funções simplérrimas, repetitivas e monótonas (Carlitos, lembrem-se, é um apertador de parafusos). A linha de montagem aparece como uma potência independente, que segue seu rumo de modo implacável, em perfeita indiferença em relação ao cansaço do operário ou às inconveniências que podem acometê-lo (como uma mosca pousando em seu nariz ou uma coceira nos fundilhos...). A maquinaria, ao invés de estar a serviço do homem, torna-se uma "segunda natureza" que o homem sente-se incapaz de controlar e que o transforma quase num apêndice seu. O homem torna-se uma parte da engrenagem, quase como um escravo ou servidor dela.

Uma das cenas mais eloquentes, com certeza, é aquela em que a linha-de-montagem  está tão freneticamente acelerada que Carlitos acaba sendo "sugado" para o interior da máquina. Não creio que exista nenhuma imagem mais perfeita para sintetizar a idéia de Marx de que o trabalhador, no sistema capitalista, vai perdendo sua feição humana e vai sendo objetificado a ponto de ser considerado pela burguesia, a classe que possui a propriedade privada dos meios de produção, como uma parte da engrenagem, um mecanismo inanimado, a ser usado como se usa um martelo ou um alicate.

Óbvio que ser a vítima cotidiana de tanta exploração deslavada causa no operário embotamento mental, fadiga profunda e, claro, desordens psíquicas graves. Depois de apertar parafuso o dia inteiro, todo santo dia, não surpreende que Carlitos comece a confundir botões de roupa com parafusos e que não consiga segurar uma tijela de sopa sem derramá-la inteira. E não tarda até que ele tenha um colapso nervoso e saia botando a fábrica na anarquia. O seu "nervous breakdown" é o momento em ele atinge a saturação e seu corpo extenuado rebela-se com um "basta!" contra as cruéis imposições da fábrica e do patrão que a gere.

Por isso Tempos Modernos é também uma das mais didáticas e sintéticas exposições do que significam os conceitos de "alienação" e "reificação", expostos com uma clareza suficiente para torná-los inteligíveis até para quem jamais conseguiria enfrentar um texto de Lúkacs.

Outro momento de sarcasmo certeiro é aquele em que uma Máquina de Alimentar Operário é oferecida ao patrão como uma oportuna aquisição para maximizar os lucros. É uma profecia chapliniana que aponta para o futuro advento do fast-food, aquela invenção americana que, dentre outras coisas, visava diminuir o tempo de almoço dos trabalhadores para maximizar a eficácia produtiva.  Ao invés de liberar o "gado" para que ele vá comer capim por uma hora, interrompendo assim o trabalho, porque não alimentá-lo durante o próprio trabalho? O caráter grotesco e obsceno da obsessão pelos lucros se escancara aí, neste apetrecho técnico que trata um homem como um cavalo em quem enfiam ração enquanto ele galopa debaixo do chicote...

* * * * *

Chaplin não faz de seu personagem um herói da classe operária, consciente da missão histórica do proletariado --- a working class hero, como diria Lennon. Na verdade, este operário não parece possuir absolutamente nenhuma "consciência de classe", "engajamento político" ou envolvimento partidário. Carlitos não é Norma Rae. É por mero acaso que ele acaba sendo tomado por "líder" de uma passeata comunista. E sua "revolta" dentro da fábrica, quando põe o circo em anarquia ao zoar com as engrenagens e borrifar óleo em seus colegas, como se eles fossem robôs, é mais um ataque histérico do que uma ação consciente. Este homem está tão objetificado, alienado, usado e humilhado que mesmo sua rebeldia carrega a marca do mecanicismo.

Mesmo quando seus atos parecem perfeitamente intencionais, com motivações claras os determinando, depois revelam-se como atos cometidos "no escuro". Por exemplo: quando ele auxilia a polícia a desarmar os invasores do presídio, as autoridades lêem este ato como se viesse de um aliado. Quando, na verdade, tudo o que Carlitos faz deve-se ao fato de estar pilhadão de cocaína...

Como de praxe, Chaplin dá um jeito de inserir uma história de amor no meio de sua crônica das desventuras proletárias nos tempos modernos. E o romance entre o ex-operário desempregado e a bela ladra-de-bananas é uma singela demonstração dos sonhos simples da gente simples, para quem ter uma casa própria e uma vaquinha que lhe supra com leite já é quase uma utopia. Alguns dos atos do casal também já apontam (profeticamente) para a Sociedade de Consumo hoje tão onipresente: quando eles decidem passar uma madrugada no Shopping Center, andando de patins e vestindo casacos de luxo, revelam possuir sonhos consumistas e de entretenimento bem típicos do american-way.

Gastar mais saliva para enaltecer Tempos Modernos é desnecessário: ele já tornou-se um clássico reconhecido e venerado, e sua mensagem permanece atualíssima, assim como suas piadas prosseguem deliciosas. Rever este filme hoje é uma deliciosa experiência que nos prova que a leveza pode se conjugar com a crítica, que é possível ser bem-humorado sem ser fútil, e que grandes artistas do século passado souberam, com graça e esperteza, fazer uma necessária crítica aos descalabros do capitalismo. E é de pleno mérito que Carlitos, com sua mescla de desengonço, ingenuidade e romantismo, se sagraria uma das figuras icônicas da cultura no século 20.

Porém, se há algo de "duvidoso" na mensagem do filme, me parece, é que as atitudes sempre trapalhonas de Carlitos poderiam conduzir a uma leitura equivocada que visse nisto --- na sua falta de jeito e de esperteza... --- a causa de sua posição social subalterna. Seria possível ler Tempos Modernos como as desventuras de um indivíduo que, em razão de sua inaptidão pessoal para o trabalho, acaba "condenado" a um estado de outlaw, de semi-mendigo, de ovelha negra.

Decerto que faríamos uma interpretação grosseira e desleal com a obra se tirássemos dela esta conclusão: "aqueles que estão lá embaixo na pirâmide social, em trabalhos manuais extenuantes e mau-pagos, vivendo na miséria e na dura luta pela sobrevivência física, de certo modo merecem seu status por serem inaptos, preguiçosos ou pouco inteligentes". Idéia preconceituosa, típica de burguês ou de aristocrata que não quer perder seus privilégios, e que tende a mascarar um sistema econômico objetivamente injusto e opressor em nome de uma ilusória noção de que "cada um tem o que merece".

Contra esta má leitura possível do filme, eu preferiria destacar que o personagem, se de fato se mostra inadaptado ao trabalho mecanizado, é mais por culpa do sistema que do trabalhador. Pois que trabalhador sensível não se sentiria ultrajado por ser tratado como coisa, explorado como gado, mantido na miséria enquanto os ricos se empanturram de caviar e champanhe? Tempos Modernos é uma crônica da inadaptação e da revolta, e nossa simpatia é convocada a se aliar aos oprimidos. É  também uma sugestão de outras vias humanas mais dignas: a arte e o amor, por exemplo.


O filme enfatiza de modo recorrente o quanto um sujeitinho tão "avoado" e "romântico" acaba por sabotar, mesmo sem querer, o processo produtivo extremamente bem-regrado e calculado da fábrica capitalista. Carlitos é como um pequeno poeta de cartola, lúdico e brincalhão, que não sabe se encaixar no gélido e sério mundo industrializado dos adultos. Ele é sempre aquele "peralta" que põe a descoberto as imperfeições da técnica ao causar uma catástrofe involuntária apoiando-se numa alavanca ou deixando cair a ferramenta em momento inoportuno. Ele é o terror dos burocratas e dos patrões. Demasiado desengonçado para adaptar-se ao trabalho mecanizado, e sonhador demais para aceitar de bom grado ser reduzido a um apertador-de-parafusos de carne-e-osso, ele é um destes que parece condenado a um sistema que sente como estranho a si e seus sentimentos. Um destes que não se resigna a ser usado e que irá, de travessura em travessura, desenhar para si um outro caminho.

Carlitos não deixa de imitar seu criador e personificador, o próprio Charlie Chaplin, quando procura escapar das garras do trabalho mecânico e desumanizante ao tentar uma carreira artística. Ele tenta tornar-se um cantor e um mímico, conquistando sua ascensão social através do showbusiness. Não dá muito certo e ele acaba reenviado, como sempre, à sarjeta. Mas valeu a tentativa. Quando o filme termina, o vemos prestes a recomeçar sua dura luta --- desta vez, acompanhado. E é belo vê-lo caminhando, com os pézinhos abertos e a trouchinha no ombro, ao lado de sua pequena ladra-de-bananas em direção a novas peripécias proletárias. 

E talvez até mesmo uma suprema boa notícia possa ser tirada desta procissão de desventuras e trapalhadas seja essa: se fôssemos todos um pouquinho mais como Carlitos, estaríamos todos ajudando a sabotar o capitalismo. Ótima razão pra ser Carlitos!


[+]: ROTTEN TOMATOES - SAN FRANCISCO CHRONICLE - GIOVANNI ALVES - MARCO SANTANA - ANDRÉA PREVIATITIME - ROGER EBERT - VARIETY -

2 comentários:

  1. Muito bacana a crítica que você fez sobre "Tempos Modernos", o filme é muito bom e consegue retratar com uma certa 'maestria' o capitalismo. um filme que sai bem como comédia e como crítica...
    Muito bom!

    Abs.

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  2. E ae Alan! Este é mesmo um filme onde se mesclam com maestria a comédia e a crítica: o humor também é uma arma de luta! Valeu pelo pitaco e volte sempre.

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