Seria possível mesclar o clima tétrico dum Macbeth com a ambientação lúdica e onírica de algo do naipe de Alice no País das Maravilhas? O Labirinto do Fauno prova que sim. Neste conto-de-fadas hardcore, uma trama política sanguinolenta, que chega a lembrar as tragédias de Shakespeare, convive com as fantasias infantis fabricadas por Ofélia, garotinha que, tal como Quixote e seus romances de cavalaria, "chapou" de tanto ler historietas com fadas, magos e gnomos... Ao invés de seguir o frenético Coelho Branco, ela segue as ordens de um Fauno; ao invés de Sancho, vai acompanhada por insetinhos transformados em fadas-madrinhas; sua utopia não é Dulcinéia del Toboso, mas tornar-se princesa de um Reino de Sonho...
O filme de Del Toro nos coloca no epicentro de uma guerra civil repleta de crueldades, cujo enredo lembra os banhos de sangue em Ricardo III ou Titus Andronicus. Mas no meio do horror, tentando fazer frente a ele, há a fértil imaginação de uma menina que precisa lidar com experiências brutais utilizando-se de seus poderes fabuladores e míticos... Amadurecer precocemente, em meio aos horrores da guerra, tentando compreender com símbolos a complexidade caótica do real à sua volta: eis o que une O Labirinto do Fauno a outras obras-primas cinematográficas como A Infância de Ivan (Tarkovsky) e Vá e Veja (Klimov).
Estamos na Espanha da primeira metade dos anos 1940, num país fustigado pela Guerra Civil de 1936-1939 e pela 2ª Guerra que então se arrastava. Era um período histórico prá-la-de-sinistro para a Europa: o imperialismo agressivo do III Reich alemão, apoiado por Mussolini e por Franco, empurrava o continente para aquele que seria o maior morticínio da história da humanidade, com seus 60 milhões de mortos em campo-de-batalha e seus Holocaustos, Hiroximas & Auschwitzes - eventos que não parariam mais de envergonhar a espécie e dar razão aos misantrópicos...
O Labirinto centra seu foco na situação espanhola: apesar da vitória oficial do fascismo Franquista no conflito de 36-39, ainda há resistência guerrilheira contra a ditadura militar que se instalou no país. No filme, os militares do regime ditatorial de Franco, sob o comando vilanesco do Coronel Vidal, perseguem com punho duríssimo os comunistas, anarquistas e outros esquerdistas que, embrenhados na mata, tentam começar uma revolução a partir do equivalente deles à Sierra Maestra...
Não é uma guerra cavalheiresca: vale tudo para desestabilizar e desestruturar as forças dos adversários. Os franquistas, a certo ponto do filme, decidem diminuir a refeição da população da região, reduzindo o pão-nosso-de-cada-dia a uma miserável merreca: assim o povo não alimentaria os "rebeldes" com excedentes alimentícios... Na guerra, quando não se pode matar o inimigo a bala, faz-se de tudo para que ele morra de fome!
A tortura a prisioneiros capturados e a execução sumária e sem julgamento são uma constante nas ações dos militares: numa cena de brutalidade chocante, que lembra aquela de Irreversível (Gaspar Noé) em que um extintor de incêndio é usado para estraçar o crânio de uma vítima, o coronel Vidal assassina com fúria dois camponeses, capturados com panfletos do tipo "sem Deus nem patrão!" e que diziam estar somente caçando coelhos na mata...
Num contexto tão terrível, seria natural que uma criança procurasse se refugiar em sua imaginação, tão intragável e traumatizante é aquilo que vivencia no mundo dito "empírico". Mas seria simplismo dizer que a fantasia não passa de fuga da realidade, de um mecanismo de escape, da busca por um refúgio apaziguador nas coloridices do Imaginado... A fantasia infantil, materializada em imagens de um inegável poder e impacto pelo filme de Del Toro, indica ao espectador o quanto a experiência de mundo de Ofélia é uma complexa gangorra entre percepção dolorosa e fabulação visceral. É como se pudéssemos enxergar Ofélia "por dentro", in the inner workings of her mind, enquanto ela entra mais e mais fundo na toca do Coelho, encontrando não um mundo de maravilhas, mas um infindável pesadelo.
A Ofélia de Guillermo Del Toro parece, de modo semelhante à sua xará em Hamlet, uma flor de pureza e inocência que tenta crescer incólume em meio a um lodaçal de sangue e fúria... Ofélia imagina que insetos são fadas-madrinhas e que um fauno, servidor ancestral do Rei dos Subterrâneos, a guiarão por aventuras glorificantes: sonha ser sagrada princesa de alguma outra dimensão, já que nesta onde vive é tratada por seu pai adotivo, o truculento General Vidal, como um pedaço de carne-e-ossos sem direitos, a ser submetida e tratada aos tapas e berros.
Se a realidade é sinistra, as fantasias também adquirem propensão para o sinistro. Vivendo em meio às sujeiras mais enojantes, não surpreende que suas fantasias também envolvam "provas" asquerosas e enlameadas. Num coração dominado pelo medo, as alucinações têm predileção especial pelas paranóias. As fantasias filmadas por Del Toro no Labirinto têm pouco a ver com o método Walt-Disney ou Rede Globo de lidar com o imaginário: ele parece mais próximo de Lynch ou Cronenberg em sua insistência por retratar o "terror corporal": olhos fora do corpo, entranhas vomitadas para fora pela boca, bichos escrotos com quem é preciso lidar em ambientes grotescos... Algumas de suas fantasias consistem em penetrar nas entranhas da Terra - em um local sem luz, repleto de bichos da escuridão, e onde descansam as caveiras dos que um dia viveram... - para concluir as provas que a farão digna de ser coroada...
Ofélia sonha com uma jornada heróica, repleta de perigos, e audaciosa os enfrenta: sem nojo, suja o vestidinho de lama, se embrenha no pântano cheio de insetos e excrementos, à busca de um contato íntimo com um sapo... Entra na caverna do Des-olhado, pega nas mãos o prato onde os globos oculares descansam, até ousa a peraltice de furtar duas uvinhas, já que ninguém estava olhando... Ajeita a mandrágora no leite, alimentada com gotas de sangue, debaixo da cama da mãe adoecida, na esperança de que esta seja uma cura eficaz (seria queimada pela Inquisição por ser uma feiticeira, se fosse séculos atrás!)... Não haveria macumba ou simpatia que Ofélia recusasse na sua tentativa de revigorar a saúde estraçalhada da mãe e superar seu próprio estraçalhamento mental por viver sob o jugo do Autoritarismo Militar...
Se o Labirinto é um filme tão interessante é pois nos convida a refletir sobre as relações promíscuas entre a fantasia e a realidade, que influenciam-se mutuamente a ponto de às vezes ser difícil distinguir a percepção de um fato objetivo do "fantasma" fabricado pela mente. Uma das mais impressionantes filosofagens do Henri Bergson, pensador de primeiríssimo quilate e escritor magnífico (não à toa levou um Prêmio Nobel de Literatura... sem jamais ter escrito romances ou poesias!), concebe a evolução criativa da vida levando em conta a importância seminal, em especial na história evolutiva humana, da utilização daquela faculdade que ele chama de "fonction fabulatrice". Toda a arte, toda a mitologia, todas as primeiras religiões construídas pela humanidade, tudo isso não poderia ter nascido se não fosse por esta potência humana: a "função fabulora", engendradora de mitos, fabricante de deuses, paridora de anjos, imaginadora de quimeras, fantasiadora de faunos...
Em As Duas Fontes da Moral e da Religião, Bergson põe toda a sua vasta erudição a serviço da compreensão dos mecanismos fisiológicos, biológicos e psicológicos da fantasiação. E uma de suas conclusões é que a religião é uma criação da fonction fabulatrice destinada a combater certas "idéias desestabilizadoras" concebidas pela inteligência: tal como a idéia de que a morte é inelutável ou de que os resultados das ações por nós desencadeadas são imprevisíveis.
Nada melhor do que observar esta fabulação ocorrendo numa criança em tempos de sombras para compreender estes mecanismos internos do afeto e da projeção: rodeada pelos horrores de uma guerra suja, Ofélia contrapõe à sua experiência traumática as fabricações fabulosas de sua mente altamente imaginativa, sonhando-se glórias e ascensões que a realidade sinistra lhe insiste em negar. Longe de ser "arbitrária" e desregrada, a fantasiação têm sua função prática e é regida por certas regras morais: quando o Fauno pede que Ofélia sacrifique o bebê, pois só com sangue inocente seria possível realizar o derradeiro "rito de passagem", ela nega-se a isto e prefere oferecer-se (heroicamente) como vítima de holocausto. Sua derradeira fantasia é tipicamente religiosa: imagina-se salva, aprovada, com acesso permitido ao Castelo Dourado de Deus-Pai, depois de ter cumprido as necessárias provas de bravura que foram somente a antesala do Paraíso... Mas é tudo imaginário. No palco obsceno da História, em meio ao militarismo agressivo reinante, Alice tem seu vestidinho de moça rasgado e é deflorada cruelmente num mundo de Macbeths. Tudo o que lhe resta, como prêmio de consolação em sua quase absoluta impotência, é a fantasiação de uma vitória que não obteve - e não obterá.
Ser criança no Oriente Médio não é mole. Crescer entre homens-bomba, tanques-de-guerra, ônibus que explodem, pedágios repletos de soldados armados... que infância é possível em circunstâncias assim? Que adultos sairão de uma atmosfera tão infestada de idolatria ao martírio, onde os heróis são aqueles que morreram na Intifada ou foram destroçados por um ataque terrorista?...
Nos entornos da Cidade Sagrada de Jerusalém, onde o sangue não pára de alimentar o solo sobre o qual caminharam e pregaram tantos profetas, a infância acaba cedo, certamente - e tanto no sentido literal quanto no metafórico. Muitos vão ao túmulo pouco depois de terem saído do berço: tiveram o azar de nascer em meio a fanáticos religiosos que se digladiam em jogos mortais. Os que sobrevivem, são obrigados a amadurecer cedo demais, frequentemente de forma traumática, tendo parentes assassinados ou amigos encarcerados...
A rotina é repleta de olhares hostis, check-points sinistros, temor de explosões súbitas, estigmatizações do diferente, muralhas e arames-farpados que impedem que se forme uma ciranda de crianças de várias cores e origens. Nada de moleza, de vida lúdica, de coloridices! A criançada é chamada para pegar em armas mal abandonou a chupeta. A doutrinação política e religiosa transforma-os em dogmáticos sectários bem cedo. Inculca-se uma noção de identidade construída sobre a raivosa exclusão de um Outro odiado: a educação baseia-se no implante de preconceitos que mandam odiar o Outro - que crê num Deus diferente do nosso. Ao invés dos livros escolares, seguram a Torá ou o Corão em uma mão, e com a mão que sobra seguram a metralhadora ou o estilingue. E, cada um julgando que tem Deus do seu lado, começam a se ofender, se maltratar, se matar...
Tarkovsky, Klimov e René Clément são alguns dos cineastas que já criaram obras de arte memoráveis a partir do tema da Infância-Destroçada-Pela-Guerra. O clássico longa-metragem de estréia de Andrei Tarkovsky, A Infância de Ivan (1962), mostra-nos uma criança toda enlameada nas sujeiras bélicas numa idade em que deveria estar aprendendo o abecedário e a tabuada. Circulando pelos campos-de-batalha, já empedernido pelas experiências duríssimas que foi obrigado a encarar, dá ordens aos outros com o autoritarismo e a pomposidade de um general de exército. Sua vida foi condenada pelas circunstâncias históricas a ser breve, repleta de horrores, com fim bruto. Também o pequeno torturado de Vá e Veja (1985), grotesco relato do Massacre Nazista na Bielo-Rússia (mais de 600 vilarejos foram incendiados e dizimados com todos os seus habitantes...), suporta em seus tenros anos mais dores do que muitos vivem numa vida inteira. Numa clássica cena, ao fim do impactante e perturbador filme de Klimov, o garotinho criva de balas o retrato de Hitler com uma fúria tamanha que não se imaginaria possível de ser abrigada num coração tão jovem. Já em Jeux Inderdits (1952), as crianças não brincam de bola ou de boneca: os ossos e os crânios dos mortos no cemitério, no filme de Clement, é que tornam-se os instrumentos de uma sinistra brincadeira. Pois a guerra dos adultos sempre invade a vida das crianças. Não há guerra onde só morram soldados. E pior: há guerras em que os adultos têm a idéia de aliciar soldados mirins, devidamente lobotomizados no sentido da intolerância sectária.
Promessas de um Novo Mundo (de Justine Arlin, Carlos Bolado e B.Z. Goldberg), um dos melhores documentários sobre o infindável conflito Israel x Palestina, retrata a guerra pela perspectiva das crianças que vivem no centro do turbilhão. Ao invés de retratar com distanciamento, o filme prefere intervir ativamente na realidade: deseja criar laços de afeto entre crianças que foram ensinadas por seus pais que deveriam se odiar. Afinal de contas, não há crianças judias nem crianças muçulmanas, mas meramente crianças, vítimas de uma doutrinação social que lhes transformou em sectárias e preconceituosas. Mas talvez - é esta a utópica aposta do filme! - este processo seja reversível. Talvez um vínculo amigo possa ser estabelecido entre estas crianças que cresceram num mundo que os adultos encheram de arame-farpado, muros de penitenciária e soldados armados nas fronteiras...
A Terra vista do espaço não tem fronteiras: estas não passam de construções humanas, cercas (reais ou psíquicas) que nós construímos para nos separarmos em raças e credos, lá de dentro berrando pra fora: sou do povo eleito, tenho Deus do meu lado, mantenha-se à distância ou te corto a garganta! Que mania têm o ser humano de querer exercer seu poder sobre outros utilizando para isso não só as armas de pólvora e a dinamite, mas as armas mitológicas e as crenças! Quanto arame-farpado as religiões não trazem a este planeta, dividindo homens em seitas e transformando vizinhos em homicidas em guerra!
O Hamas pixa os muros dos territórios palestinos com "lições de vida" como "a sede do solo será saciada com sangue", convidando ao martírio os homens-bomba do futuro... Árabes radicalmente anti-semitas querem um segundo Holocausto e odeiam os judeus e seu Deus a ponto de desejá-los extintos. Enquanto isso, Israel recrudesce contra os seguidores de Alá e Maomé, querendo ter Jerusalém só pra si, feito uma criançona incapaz de dividir o brinquedo. Grotesco! Os fanáticos religiosos só parecem adultos: na verdade não passam de criançonas em trajes militares, birrentas e cheias de violência...
"Quem está certo no combate Israel e Palestina?" A pergunta tão difícil de responder me parece ser tão cabeluda de solucionar justamente pois... nenhum dos lados está certo. Se há alguém a culpar, me parece, não é uma nação ou um povo em particular, mas uma praga maior que os povos e as nações, que se esparrama feito uma contaminação por muitas diferentes latitudes: o fanatismo religioso. Culpar nacionalidades é uma estreiteza que precisamos superar pois nos encerra na cela tão desconfortável e perigosa do nacionalismo e da xenofobia...
Mal chegam a este mundo, os cérebros das crianças recebem por imposição de autoridades parentais e pastorais uma dogmática religiosa que mata no nascedouro a semente do pensamento autônomo. Ao invés do respeito pela arte, pela ciência, pela verdade, ensinam a molecada a obedecer cegamente a argumentos de autoridade. Ao invés de incentivá-las a buscar o conhecimento na mais variada gama de fontes, devorando bibliotecas dos mais variados assuntos, dizem a elas que só devem levar a sério os chamados Livros Sagrados: todas as respostas estão ali, basta decorá-las e depois papagueá-las por aí... E o mais curioso: estes que são chamados de Livros Sagrados serviram como pretexto para uma quantidade de massacres, de morticínios, de jihads, de atos de terrorismo, de tortura e de censura que um 1 milhão de "livros profanos" não é capaz de igualar!
Pode-se acreditar que uma divindade lá em cima nos julga, que um olho no céu testemunha nossos atos, aplaude nossos atos heróicos, franze o cenho quando fazemos merda e promete para o Natal da Morte a resposta quanto à nossa aprovação ou reprova no Exame de Entrada para a Grande Festa da Eternidade... Mas há perigo em acreditar-se julgado pelos céus e não pelos homens. Há perigo em imaginar recompensas celestiais por atos sanguinolentos. Pode-se dizer: "não ligo para o que pensem os homens, Deus mandou-me ser kamikaze, Deus ordenou que eu sequestrasse um avião, explodisse um prédio cheio de civis, pusesse pelos ares com bananas de dinamite coladas ao meu tórax um ônibus cheio de cidadãos que não crêem no Deus em que creio!"
Ouço falar muito sobre pacifismo, muita pregação sobre a necessidade de Paz. Admiro a idéia de resistência pacífica de Gandhi e Tolstói. Mas sinto que muitos desses arautos do pacifismo pegam leve demais quando a questão é analisar o quanto as crenças religiosas estão envolvidas nas guerras e violências da História e do presente. Por isso acho tão seminal e bela a mensagem de Lennon: o pacifismo do Beatle está intimamente conectado ao "imagine no religion"! Concordo plenamente com John: paz e ateísmo são consubstanciais. Como superar a guerra sem superar a divisão sectária da humanidade entre diferentes crenças mutuamente excludentes que não conseguem tolerar umas às outras? Como chegar à "brotherhood of man", o sonho utópico de uma fraternidade humana cantada em "Imagine", sem a superação do Império da Fé e da Superstição? Faith no more! A fé já teve 2 milênios de império e o resultado de seus trabalhos não é lá muito animador: it's an ocean of violence! A isso há de se contrapor o ateísmo, a lucidez, o bom-senso, o diálogo, a solidariedade na busca pela justiça e pela verdade.
Decerto que dizer que a solução para o problema é converter todo mundo ao ateísmo não parece lá uma solução muito... pragmática. Como realizar uma tarefa gigantesca deste tipo? Quem serão os ateus corajosos o suficiente para pôr em prática e conquistar resultados consideráveis? É bem verdade que Daniel Dennett, Christopher Hitchens, Richard Dawkins, Michel Onfray, dentre outros, estão comprando esta briga. Mas talvez subestimemos a fé e seu poder de enganchar personalidades pensando que é plausível uma des-conversão em massa das massas do planeta. "A religião é uma reação defensiva da Natureza contra a inteligência", diz Bergson. Será a inteligência forte o bastante para vencer esta força defensiva dos religiosos? Ou haverão os homens-de-fé de impor pelo fogo, como fizeram tantas vezes na História, um mundo de fábulas sectárias ao invés de um mundo, como queremos nós, guiado pela busca universal pela verdade?
Uma das atitudes mais louváveis que o documentário Promessas de Um Novo Mundo nos mostra é aquela do judeu polonês que fugiu para Israel pois julgava que ali estaria protegido de holocaustos, mas que responde à questão dos gêmeos - "você acredita em Deus ou não?" - com uma idéia que não deve ser incomum entre os sobreviventes dos campos de concentração: "Não acho possível que Deus pudesse ter ficado a assistir aquilo sem fazer nada". Ao mesmo tempo que garante aos pequenos que não quer doutriná-los: "vocês devem tirar suas próprias conclusões". Coisa rara: pois a maioria das crianças é doutrinada desde o berço. Enfiam-lhes no cérebro um monte de dogmas e exigem, palmatórias em riste, ameaças de Inferno na boca, que decorem e propaguem. O resultado? Crianças que são capazes, por exemplo, de manifestar o anti-semitismo mais homicida - como o garoto muçulmano que idolatra a atitude do Hamas e do Hezbollah e que julga que a melhor solução é exterminar os judeus...
“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (SIGMUND FREUD. O Futuro de Uma Ilusão. P. 121)
Freud diagnosticou na religião uma "neurose de massa" que acomete boa parte da humanidade e explicou sua força a partir dos desejos humanos nos quais a religião têm sua fonte. As representações frequentemente alucinatórias e delirantes da fé são criações da fantasia humana para suprir imaginariamente algumas de nossas mais prementes necessidades psíquicas: a religião é um conjunto de fábulas consoladoras que servem para remediar nossa sensação de impotência diante das forças naturais, para nos dar o conforto de um Pai substituto que vela por nós, para nos libertar da angústia trazida pela constatação, pela inteligência, da inevitabilidade da morte. Provêm de nossa fragilidade, nossa angústia, nossa sensação de mortalidade, nossa nostalgia da infância e sua irresponsabilidade... É uma neurose, um infantilismo, um obstáculo ao pleno desenvolvimento da inteligência. E, por incrível que pareça, tratamos as crianças que vêm ao mundo sem o mínimo respeito pelos potenciais criadores de suas mentes quando as entulhamos com dogmas destinados a ressecar o intelecto com os venenos da culpa, do medo e da obediência cega.
Por uma educação atéia, secular, cosmopolita e pluralista! Mantenham vossos rosários e cruzes, vossas Torás e Corões, vossa santa Lavagem Cerebral e Doutrinação Amesquinhante, longe dos cérebros do futuro!
Esta pérola do pastelão no cinema mudo, College (1927), traz Buster Keaton encarnando um CDF, "teacher's pet", que decide tirar o nariz de dentro dos livros e se meter a ser atleta.
A motivação para esta modificação de "persona" - semelhante à de um japinha de óculos, gêniozinho da matemática e da lógica, que resolvesse ficar marombadão feito um halterofilista - é a costumeira: uma paixão por uma moça, cuja conquista equivale a uma epopéia.
O estereótipo do cu-de-ferro que come-ninguém e do atleta-desmiolado que papa todas as cheerleaders serve de pano-de-fundo para mais um Tom & Jerry cinematográfico. Keaton, como de costume, é quem mais sofre com os hematomas, os galos-na-cabeça e as juntas deslocadas. Mas, como de praxe, tudo se encaminha para um happy end.
Nem é preciso dizer, para quem já conhece o vasto currículo de trapalhadas e capotes que Mr. Keaton sempre toma em seus filmes, que o tiro sai pela culatra: a metamorfose de CDF em atleta fracassa. Ele é péssimo em tudo quanto é esporte e literalmente "afunda o time" em toda mínima ocasião que encontre. E na maior inocência.
O desengonço do trapalhão é sem fim: lança o disco e acerta o chapéu de um cavalheiro engravatado; pula no barco para a competição de remo e em segundos a bagaça vira e quase naufraga; na corrida com obstáculos, dá trombada em todos eles; e no baseball só faz cagada. Se fosse jogador de futebol, seria aqueles que só chuta falta lá na bandeirinha de escanteio e tropeça na própria bola assim que tenta um arranque.
Mas é esforçado, teimoso, persistente. Não é um olho roxo ou um ossinho quebrado que vai fazer nosso audaz herói maltratado abandonar sua tarefa épica. Tão acostumado a fazer o ridículo e virar alvo de gozação e chacota, ele nem mais se importa com o que os outros pensem: só tem olhos para a amada. A tentativa pra lá de desastrada de impressioná-la é a razão de todas as suas ações e princípio de todas as suas feridas.
Afinal de contas, é difícil não assistir um filme de Keaton sem sentir por ela uma afeição intensa. Não só pela gratidão que sentimos pelas alegrias que ele nos causou com seus certeiros dons humorísticos (e, como diria Spinoza, a alegria é um aumento de nossa potência-de-existir e a isso sempre nos sentimos gratos). Mas também porque encarna um certo ímpeto romântico-heróico-quixotesco típico daqueles que acreditam que a busca pelo amor tudo justifica, e que todo tombo e hematoma conquistado no processo é uma medalha e um troféu.
“I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.”
(Frida Kahlo)
Há um quadro de Frida Kahlo (1907-1954) que acho particularmente perturbador. A perturbação só aumenta quando sabemos da história de vida da pintora mexicana, que, se foi repleta de experiências intensas e ocorrências pitorescas, também não teve escassez de amargores e feridas. Frida teve a coluna seriamente lesionada, na juventude, num acidente de ônibus. Não ficou paraplégica por um triz. Anos depois, teve que ver aquele que seria seu primogênito no formol: feto abortado de uma mãe que nunca se tornaria. Mais tarde na vida, um de seus pés, gangrenado, precisou ser amputado. Naquela obra perturbadora de que eu falava, Frida pinta seu corpo cravejado por pregos, enquanto seu rosto, com uma expressão extremamente grave, é banhado por lágrimas torrenciais. As célebres sobrancelhas contínuas desenham quase uma gaivota sobre seus olhos. No local onde deveria estar a coluna vertebral, ela pinta, fazendo uma metáfora visual extremamente poética (e extremamente dolorida), uma dessas colunas de concreto greco-romanas concebidas para sustentar altos edifícios - mas ela está arruinada, roída pelo tempo ou por algum terremoto. A tristeza por sentir que seu alicerce está em ruínas, que sua própria coluna não mais a sustenta de pé, extravasa de seu mundo interior, incontenível como uma tempestade, e carrega o canvas com angústia. "Mas pra que preciso de vocês, pernas, se tenho asas que me permitem voar?" - tenta ela consolar-se. Mas antes de morrer, pede que seu corpo seja cremado e escreve:“I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.” Ao modo budista, ela possui apenas a esperança e o desejo de que não exista renascimento e que este corpo tão dolorido possa encontrar seu descanso eterno nas tranquilas pradarias do nada.
Frida, porém, não é uma mulher do queixume, da histeria, da lamentação estéril. Sua vida transposta para o cinema também aparece repleta de excitação, ousadia, experimentação, exuberância e beleza. Não há nada de Maria do Bairro naquela mexicana cheia de vitalidade e espírito, que sabia enxugar uma tequila, cantar e dançar nos cabarés e chegou a experimentar aventuras sexuais das mais variadas, das lésbicas às extra-maritais, das inter-raciais às entre-gerações, chegando a ter inclusive o Trotsky em sua cama. Se há algo de heróico neste destino, talvez esteja principalmente no fato de que esta é uma mulher que não se deixou desanimar pelos golpes brutais que a vida lhe impôs sem que ela os merecesse. Eis o mundo, algo que fere inocentemente, que mata sem culpa, que machuca sem querer, e não há como viver uma vida plena sem o reconhecimento destas múltiplas (e sublimáveis) imperfeições dele. O mundo pode até nos rasgar a carne e nos levar uma perna, mas a dor que sentimos não nos condena ao silêncio, nem necessariamente implica na morte do humor: podemos expressar a dor, ou mesmo rir dela, e, com isso, tornar sublime ou deleitável o que talvez, se nos calássemos, não passaria de uma triste aquiescência diante da bruteza de uma Natureza indiferente. A arte de Frida, me parece, é ao mesmo tempo um protesto e uma celebração da condição humana: um protesto diante da dor imerecida, do sofrimento dos inocentes, das injustas feridas infligidas por forças brutas; mas também uma celebração da "pulsão de primavera" que faz com que nasçam flores na terra onde depositamos nossos cadáveres.
Crianças futuras vão brincar entre as flores dos jardins sob os quais nossos ossos vão estar a descansar.
Há uma cena que acho particularmente emblemática no filme de Julie Taymor e que, me parece, passa a essência de Frida Kahlo: Diego Rivera, tempos depois de conhecer sua futura esposa, quando estão prestes a fazer amor pela primeira vez, é alertado por Frida: "tenho uma cicatriz". Pode-se notar na expressão de Salma Hayek a apreensão, a temerosa ansiedade, enquanto ela vai sendo despida e aguarda o olhar de Diego e a resposta afetiva que o acompanhará. Diante de uma cicatriz, as mais variadas respostas emocionais podem emergir, a maioria delas, imagino, desprazeirosas: uma certa "repulsa" diante do espetáculo da carne macerada, ou uma certa angústia frente à uma prova viva da fragilidade dos corpos e das marcas que os choques e acidentes podem deixar permanentemente nela, ou um calafrio ou arrepio de temor típico de quem imagina "ah! se acontecesse comigo..." Diego Rivera, porém, beija a cicatriz de Frida Kahlo e lhe diz que ela, Frida, é perfeita. Não é à toa que estes dois destinos se entrelaçaram tão intimamente, apesar dos percalços, do divórcio, das tretas, dos estranhamentos: não é qualquer dia que encontramos alguém que nos beije as cicatrizes e que saiba amar-nos como somos, com todas as imperfeições incluídas.
A arte de Frida nos convida a amar o imperfeito, compadecer dos sofrimentos imerecidos, ajudar os camaradas em apuros, marchar nas ruas ao lado dos oprimidos e celebrar, aqui-e-agora, os poderes criativos destes mortais que somos enquanto não nos tornamos ainda os mortos que seremos.
Los Angeles, 2019. Num planeta que parece afundado em trevas eternas, com ruas iluminadas só por letreiros de néon, mega telões publicitários e faróis de automóveis voadores, perambula o solitário exterminador de replicantes Deckard (Harrison Ford). A terceira rocha após o Sol, agora não mais o único planeta habitável da Via Láctea, está superpovoada e imunda, repleta de mercados caóticos onde japas, egípcios, árabes e cyberpunks se misturam na salada de frutas do pós-Globalização Total. Com o desenvolvimento técnico e científico, os progressos da genética eugênica e o domínio enfim conquistado do espaço exterior, a humanidade terráquea se locomove em foguetinhos, mora em arranha-céus imensos, numa cena urbana totalmente verticalizada, e já partiu inclusive em uma empreitada de imperialismo inter-estelar, tendo instalado colônias em outros planetas (mais de 25 anos depois, o Avatar de James Cameron exploraria temática semelhante na invasão imperialista do planeta Pandora dos Navi, mas com resultados artísticos pífios quando comparados com o clássico de Ridley Scott). Apesar de tudo isso, a humanidade ultra-tecnológica não venceu nem a ganância, nem a destruição ambiental, nem a guerra civil, nem a mortalidade.
Uma raça de seres artificiais – os replicantes – foi criada à imagem e semelhança do homem (coitados!) pela Tyrell Corporation, mega-corporação capitalista que vende seus homens-máquina para trabalhar como escravos na “gringa”. Nos outdoors de uma Terra que se assemelha a um formigueiro e que fede à anarquia e decadência, anunciam-se as benesses das colônias espaciais, onde os terráqueos são convidados a passar férias longe do inferninho terráqueo. Deckart é novamente recrutado por seu chefe. Sua missão: encontrar e exterminar quatro replicantes rebeldes, todos da melhor estirpe (Nexus 6), dotados de inteligência artificial, emoções humanas e prazo de validade perto de expirar, que fugiram de sua prisão em algum lugar do cosmos e desembarcaram na Terra com intenções ocultas.
Este seria somente mais um filme babaca a ser exibido no Super Cine se tratasse somente de uma guerrinha entre as máquinas que o homem criou e o policial do Bem que irá, como usualmente, salvar o mundo após derramar muito suor e largar muitos cartuchos de bala pelo caminho. Mas o que interessa em Blade Runner não é tanto a perseguição do caçador aos replicantes – não estamos frente a um filme de ação espetaculoso onde tudo é pretexto pra correria, rajadas de metralhadora e o implacável heroísmo de um americano musculoso. Talvez por isso haja quem xingue o filme por ser muito paradão, cerebral, "filosófico". Vejo nisso muito mais uma virtude do que uma falha. O que interessa de fato é a meditação profunda que o filme nos convida a fazer a respeito dos rumos humanos na era da eugenia, da clonagem, da manipulação de genomas, da mercantilização do DNA, da inteligência artificial e da exploração econômica do espaço exterior. Isso e muito mais faz do filme algo equiparável a 2001 - Uma Odisséia no Espaço (Stanley Kubrick), Solaris (Tarkovsky), Metropolis (Fritz Lang) e Matrix (irmãos Wachowski) como um classicão do sci-fi cult de estratosféricas ambições filosófico-sociológico-científicas.
Blade Runner narra uma espécie de Levante Proletário Futurista, uma Rebelião de Escravos da era espacial-cibernética que vai, aos poucos mas irremediavelmente, tornando-se a nossa era. Os replicantes são os servos/escravos/proletários desta sociedade e sufocam sob o jugo da opressão. São utilizados como bestas de carga, instrumentos do capital, de modo que o trato humano em relação a estas criações biológicas fere um dos preceitos básicos da moral kantiana: “jamais utilizar um ser racional como mero meio para um fim”.
São tempos, não muito diferentes ou distantes dos nossos, onde existem “engenheiros genéticos” que mais parecem “cientistas malucos da era do DNA”, brincando de deus e gerando capetices. São centenas de J. F. Sebastians inventando em laboratório os mais estranhos e aberrantes seres vivos, a seu bel-prazer, todos eles destinados a servir. O filme não cita em nenhum momento, aliás, que haja uma Legislação ou um Código de Ética regendo a engenharia genética, que aparece como que transformada em “negócio privado”, imune ao direito, em que vale-tudo caso os lucros a auferir sejam altos.
O cenário distópico e sombrio imaginado por Philip K. Dick e construído em película por Ridley Scott me parece, por isso, quase uma cautionary tale. Esta “lenda” pós-mô nos mostra um futuro inglório, a ser cuidadosamente evitado, onde a tecnocracia das grandes corporações, mancomunada com uma engenharia genética caída em anarquia, deu merda da grande. "I've seen the future: it's violence" (Leonard Cohen).
Entre os replicantes rebelados e os humanos a hostilidade é tamanha que chega a caracterizar guerra civil. O que fica óbvio é que os replicantes, especialmente o líder do bando, encarnado por Rutger Hauer, estão furiosos. Não são nada “humanistas”: tão mais é pra misantrópicos. Como esquecer da cena, agoniante, dolorosa, quase grotesca, em que a criatura e o Criador (Tyrell) encontram-se e o filho-replicante assassina seu criador furando-lhe os olhos com as próprias mãos? Mata o Criador por tê-los fabricado para serem escravos, sem enxergar neles qualquer “dignidade” além daquela de instrumentos, destinados a uma vida de servidão, temor e esforço, vivida sob o jugo de uma força esmagadora. Mata o Criador por tê-los feito com prazo de validade tão limitado, mas principalmente por não ter compreendido que não se trata, para quem vive a experiência existencial replicante de dentro, de um mero prazo de validade, mas de uma morte tão angustiante, trágica, dolorosa e incompreensível quanto qualquer morte humana.
“All these moments will be lost in time like tears in the rain”. O lamento do replicante poderia muito bem ser o belo queixume de um poeta humano que se queixa, melancólico, da transitoriedade da vida e de tudo dentro dela. Neste momento, a tristeza e a gravidade com que se tinge todo o ser do replicante representa como que uma “epifania” que faz com que Deckard enfim enxergue a profunda unidade entre eles. Não há como considerar como um robô ou um computador-animado uma criatura que chora diante da perspectiva do próprio túmulo, e que olha para suas experiências vividas com o desconsolo de quem suspeita que a morte será como uma tempestade que as dispersará inteiramente, como lágrimas debaixo da chuva.
Edith Piaf, a diva da música francesa que viveu "such a wonderful & tragic life", é idolatrada por Tamsin, personagem da Emily Blunt nesta produção inglesa da BBC Films, My Summer of Love. A turbulenta e sofrida vida amorosa de Piaf, tantas vezes esmiuçada em biografias e filmes, acabou tornando-se algo de mítico, em que fatos comprováveis se misturam a lendas e invencionices, até que não saibamos mais separar o joio da mentira do trigo da verdade.
Tamsin conta para sua amiga Mona, por exemplo, que Piaf teve três maridos e cada um deles morreu "misteriosamente"; e que um deles era um campeão de boxe que foi assassinado por Edith com um garfo (!!!), mas ela nem teria ido parar na prisão pois "na França os CRIMES DE PAIXÃO são perdoáveis". Ao menos é esta a história picante e sangrenta que nos conta Tamsin, já nos fazendo suspeitar que sofre de uma certa mitomania: não somente uma compulsão a mentir, falsear, interpretar, mas uma atração pela mitificação do cotidiano, pela utilização de ficções deslumbrantes que excitem e seduzam... A verdade? Ora, ela é um mero estraga-prazeres que não nos deve impedir de, através do faz-de-conta, construir algo de mais interessante.
"Meu Verão de Amor": é bem verdade que este título não promete muita coisa, de tanto que soa como algo água-com-açúcar, Sessão da Tarde, romancezinho adocicado para moçoilas ingênuas ou pré-adolescentes românticas... Mas quem for a este filme de Pawel Pawlikowski esperando encontrar algo do naipe de Meu Primeiro Amor, aquele lá com o Macaulay Calkin, vai cair bonito do cavalo. O "climão" aqui é muito mais aquele de uma canção de Edith Piaf, uma peça de Ibsen ou um drama de Lars Von Trier. Pois por detrás deste título um tanto kitsch, encontra-se um filme altamente subversivo, onde a rebelião, a insubmissão e as rupturas com valores tradicionais são presenças constantes.
My Summer Of Love, filme ímpio e picante, um dos mais ousados e iconoclásticos filmes da última década (faturou um BAFTA de Melhor Filme Britânico em 2005), desde o princípio e desde o seu título é Ironia Encarnada, jogo de máscaras, simulação, sedução e mistério... Mas que presta tributo, na rebeldia contra a falsidade e o ilusionismo que narra, a um valor moral que costuma ser tão pisoteado pelos sistemas políticos e pelas religiões: a autenticidade.
Conheça Mona (Nathalie Press). Mona é uma adolescente que nunca conheceu o pai e cuja mãe acabou de morrer de câncer. Além do estado de luto pela mãe falecida, seu inferninho doméstico é complementado por uma aporrinhação extra: seu irmão mais velho, que já havia ido para a cadeia por roubos e pancadarias, um cara "esquentadinho" e de índole agressiva, resolveu se "regenerar" e entregar-se aos braços de Jesus Cristo. Constantes reuniões de crentes chatonildos e delirantes encontram-se na casa de Mona, que passa por eles resmungando, como Zaratustra no mercado, que DEUS ESTÁ MORTO.
Mona não engole a "metamorfose" do irmão. Consegue enxergar através das máscaras como se o irmão fosse de vidro, e percebe muito bem que este pretenso born-again Christian prossegue sendo, no fundo, por detrás da pose de abençoado, o mesmo homem truculento e autoritário.
A revolta de Mona contra seu irmão mais velho me parece motivada essencialmente pela indignação que ela sente diante da inautenticidade, da simulação, do fingimento, do faz-de-conta que reconhece no "teatrinho" religioso que o irmão interpreta, no "papel" que ele assume de Criminoso Regenerado Que Caiu de Joelhos Diante de Deus. "YOU'RE A FUCKING FAKE!" - eis o impropério que Mona lhe lança na cara feito um cuspe. A fé do irmão lhe aparece como um truque barato de um falsário sem talento. Quando o irmão, todo "metido" a messias, tem a presunção de se tornar o líder religioso que guiará à comunidade rumo ao Sumo Bem, ele aparece aos olhos de Mona como uma farsa a ser desmascarada, um embuste a ser denunciado, uma impostura a ser derrubada.
É por isso que, me parece, uma grande virtude (ou "valor moral") é discutida e problematizada através desta narrativa envolvente de My Summer of Love: a AUTENTICIDADE. Me refiro àquela virtude que André Comte-Sponville chama de "boa-fé", mas que é conhecida também por honestidade, sinceridade, veracidade. Mona é uma espécie de encarnação da autenticidade. Autêntico é aquele que não mente, não se esconde detrás de máscaras e poses, não interpreta um papel diante do outro, mas quer ter sempre reconhecida sua verdadeira face. Autêntico é também aquele que não aceita ser engambelado, que não se deixa enganar com facilidade, que se revolta quando descobre que lhe mentiram, que prefere reconhecer uma verdade dolorida a crer numa mentira confortável.
Mona conhece, durante o verão, uma bela e misteriosa forasteira, Tamsin. Esta sedutora, cativante e excêntrica beldade morena, interpretada deslumbrantemente pela Emily Blunt, declara-se nietzschiana, atéia, materialista, hedonista, boêmia. Idolatra Edith Piaf e a beleza de seu destino trágico. Bebe vinho com o ardor de quem presta um tributo pagão ao deus Baco ou Dioniso. Toca o violoncelo com um grau de devoção ao instrumento que só alguém apaixonado pela Música consegue manifestar. É também, como ela mesma confessa, uma "fantasista", uma artista, uma Maya a estender ilusões e matrixes sobre os olhos dos mortais...
Estas duas, Mona e Tamsin, irão envolver-se num tórrido love affair lésbico de verão. Um romance EFÊMERO POR PRINCÍPIO, na cabeça de Tamsin, mas... que no coração de Mona não consegue ser sentido apenas "ludicamente"... Um amor de verão é um amor próprio de quem não deseja laços que prendam, mas somente prazeres passageiros cuja delícia é pra ser sorvida, mas depois segue-se em frente, cada um em seu caminho. Um amor concebido como uma temporada de férias longe das mesquinharias do cotidiano, mas com a certeza de que este, o Cotidiano, voltará a reclamar seus direitos e impor sua presença amesquinhante. Mas é possível pré-determinar a validade de um amor? Pode-se prever, fazer um X no calendário, anotar na agenda, programando o dia em que cessará de existir? Se tantos amores que começaram lúdicos terminaram por ficar trágicos, talvez seja por esta essencial imprevisibilidade destes laços e vínculos em nossas vidas-correnteza, que fluem e fluem sempre...
O amor de verão, como o filme o descreve, tem de seus doçuras e belezas, de seus encantos primaveris e deleites sensórios extremos: Mona e Tamsin nadam no rio, transam ao relento deitadas entre violetas, rolam na grama úmida de orvalho; Mona e Tamsin dançam em transe, em completa entrega à música, e dormem na quadra de tênis em meio às taças de vinho esvaziadas; Mona e Tamsin beijam-se e tocam-se e lambem-se funda e molhadamente em cenas calientes que fariam enrubescer uma freirinha.
O "problema" é que Mona, que não tem pai nem mãe, que só tem um irmão violento mascarando-se detrás de uma fé patética, não vai conseguir levar este amor "na esportiva", na leveza, como se fosse coisa desimportante: Mona encontrou alguém em quem crê e confia, alguém a quem diz tudo, sem disfarces nem máscaras. Alguém no ombro de quem ela pode chorar. Alguém que a pode respaldar na fraqueza, fortalecer na revolta, contagiar na alegria e sustentar na tristeza. Alguém com quem fugir, pra longe, pra onde for, ainda que seja pro Egito ou pra Sibéria!
O que começou como brincadeira erótica, lúdicas peraltagens de amigas íntimas, vai tornando-se dramático a ponto de uma declaração de amor tão EXTREMA quanto esta surgir: "Se você me deixar, te mato!", diz Mona a Tamsin, "e na sequência me suicido." Ela fala a sério. E então o filme ganha contornos de tragédia shakespeareana e estas duas moças alçam-se, como personagens, a um status quase de Desdêmonas e Ofélias, de Julietas e Isoldas...
Mona e Tamsin, nos deleitosos delírios de seu amor proibido, juntam-se também para se vingarem e darem o troco contra os homens filhos-da-puta com quem convivem. Poucos filmes na última década retrataram a "masculinidade" com tintas tão negativas, tão carregadamente dark. Os homens, nesta obra de Pawlikowski, só fingem que prestam, mas no fundo são uns fingidos, uns brutos, incapazes de verdadeiros compromissos afetivos, de fidelidade e intimidade profunda. São patriarcas de um reino decadente. Gostariam de continuar reinando como leões sobre leoas submissas e mais aparentadas com ovelhas, mas são a toda hora tripudiados, ridicularizados e debochados por mulheres muito mais inteligentes e espertas do que eles. My Summer of Love é talvez uma das mais belas celebrações da Insubmissão Feminina já a aparecer numa tela de cinema.
Se há uma heroína nesta película, é ela, a insubmissão feminina, em especial aquela de Mona, que ergue-se numa ousadia comovente contra autoridades masculinas mofadas, obsoletas, "peitando" o irmão que se finge de santo e estourando as janelas do carro do pai de Tamsim, que é um marido adúltero. Mona e Tamsim são mulheres que não podem respeitar os homens ao seu redor pois estes são, em sua maioria, uns cretinos, em especial em suas vidas sexuais: são uns "falocêntricos", que só pensam com a cabeça de baixo e tem titica (e fé-em-Deus, é claro!) no lugar do cérebro. Este vínculo que entre elas se estabelece não só as une uma com a outra, mas une ambas contra um Inimigo Comum, o Macho-Man porco-machista-estuprante. O que faz do filme quase um MANIFESTO. Poético, pouco panfletário, mais insidioso do que ostensivo, mas ainda assim... um MANIFESTO feminista.
O problema é que os porcos-machistas-estuprantes-abusadores às vezes acontecem de ser os líderes religiosos da comunidade. De modo que ser feminista ou humanista sem confrontar estas autoridades "messiânicas" é impossível.
Os fiéis que, chefiados pelo irmão de Mona, estão levantando a cruz sobre o monte anunciam uma era terrível para o amor livre tal qual Mona e Tamsin estavam apreciando. A cruz levanta-se especialmente para ameaçar as "bruxas" e "feiticeiras", estas adolescentinhas nietzschianas insubmissas, sexualmente libertadas, de afetividade transbordante, para que voltem a ser obedientes, apáticas, submissas.
Toda uma cultura da penitência, da culpa, do pecado, da submissão, da obediência, toda uma representação da mulher ideal como "santa", "virgem", "impoluta", "submissa", "modesta", a mais dócil das ovelhinhas, está querendo impor-se - e isto num período histórico pós-Nietzsche, pós-Wilhelm Reich, pós-Woodstock, pós-anticoncepcional e pós-camisinha! Isto é o que não se pode aceitar: e estas mulheres se rebelam. E é uma rebelião bela, especialmente aquela de Mona, esta heroína tão sofrida e tão autêntica: uma rebelião daquelas que pretende re-estabelecer a autenticidade, pôr a verdade de volta no trono, devolver ao corpo os seus direitos e aos prazeres terrenos sua inocência, após tantos mercadores de ilusão e falsos messias terem tentado fazer a Lorota e o Faz-de-Conta triunfarem. A fé, aqui, aparece como algo que esconde, como véus de Maya, as inconfessáveis pilantragens de homens cuja opressão contra a mulher protege-se detrás de dogmas religiosos grotescos. E o amor transforma-se num ato de rebelião que pretende protestar contra o império da mentira e da repressão e reinstaurar como valor supremo aquilo que as religiões tanto pisoteiam: uma existência autêntica.