Páginas

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O Labirinto do Fauno (Pan's Labyrinth, Espanha, 2006), de Guillermo del Toro




(ALERTA: CONTÊM SPOILERS!)


Seria possível mesclar o clima tétrico dum Macbeth com a ambientação lúdica e onírica de algo do naipe de Alice no País das Maravilhas? O Labirinto do Fauno prova que sim. Neste conto-de-fadas hardcore, uma trama política sanguinolenta, que chega a lembrar as tragédias de Shakespeare, convive com as fantasias infantis fabricadas por Ofélia, garotinha que, tal como Quixote e seus romances de cavalaria, "chapou" de tanto ler historietas com fadas, magos e gnomos... Ao invés de seguir o frenético Coelho Branco, ela segue as ordens de um Fauno; ao invés de Sancho, vai acompanhada por insetinhos transformados em fadas-madrinhas; sua utopia não é Dulcinéia del Toboso, mas tornar-se princesa de um Reino de Sonho...

O filme de Del Toro nos coloca no epicentro de uma guerra civil repleta de crueldades, cujo enredo lembra os banhos de sangue em Ricardo III ou Titus Andronicus. Mas no meio do horror, tentando fazer frente a ele, há a fértil imaginação de uma menina que precisa lidar com experiências brutais utilizando-se de seus poderes fabuladores e míticos... Amadurecer precocemente, em meio aos horrores da guerra, tentando compreender com símbolos a complexidade caótica do real à sua volta: eis o que une O Labirinto do Fauno a outras obras-primas cinematográficas como A Infância de Ivan (Tarkovsky) e Vá e Veja (Klimov).

Estamos na Espanha da primeira metade dos anos 1940, num país fustigado pela Guerra Civil de 1936-1939 e pela 2ª Guerra que então se arrastava. Era um período histórico prá-la-de-sinistro para a Europa: o imperialismo agressivo do III Reich alemão, apoiado por Mussolini e por Franco, empurrava o continente para aquele que seria o maior morticínio da história da humanidade, com seus 60 milhões de mortos em campo-de-batalha e seus Holocaustos, Hiroximas & Auschwitzes - eventos que não parariam mais de envergonhar a espécie e dar razão aos misantrópicos...


O Labirinto centra seu foco na situação espanhola: apesar da vitória oficial do fascismo Franquista no conflito de 36-39, ainda há resistência guerrilheira contra a ditadura militar que se instalou no país. No filme, os militares do regime ditatorial de Franco, sob o comando vilanesco do Coronel Vidal, perseguem com punho duríssimo os comunistas, anarquistas e outros esquerdistas que, embrenhados na mata, tentam começar uma revolução a partir do equivalente deles à Sierra Maestra...

Não é uma guerra cavalheiresca: vale tudo para desestabilizar e desestruturar as forças dos adversários. Os franquistas, a certo ponto do filme, decidem diminuir a refeição da população da região, reduzindo o pão-nosso-de-cada-dia a uma miserável merreca: assim o povo não alimentaria os "rebeldes" com excedentes alimentícios... Na guerra, quando não se pode matar o inimigo a bala, faz-se de tudo para que ele morra de fome!

A tortura a prisioneiros capturados e a execução sumária e sem julgamento são uma constante nas ações dos militares: numa cena de brutalidade chocante, que lembra aquela de Irreversível (Gaspar Noé) em que um extintor de incêndio é usado para estraçar o crânio de uma vítima, o coronel Vidal assassina com fúria dois camponeses, capturados com panfletos do tipo "sem Deus nem patrão!" e que diziam estar somente caçando coelhos na mata... 

Num contexto tão terrível, seria natural que uma criança procurasse se refugiar em sua imaginação, tão intragável e traumatizante é aquilo que vivencia no mundo dito "empírico". Mas seria simplismo dizer que a fantasia não passa de fuga da realidade, de um mecanismo de escape, da busca por um refúgio apaziguador nas coloridices do Imaginado... A fantasia infantil, materializada em imagens de um inegável poder e impacto pelo filme de Del Toro, indica ao espectador o quanto a experiência de mundo de Ofélia é uma complexa gangorra entre percepção dolorosa e fabulação visceral. É como se pudéssemos enxergar Ofélia "por dentro", in the inner workings of her mind, enquanto ela entra mais e mais fundo na toca do Coelho, encontrando não um mundo de maravilhas, mas um infindável pesadelo.

A Ofélia de Guillermo Del Toro parece, de modo semelhante à sua xará em Hamlet, uma flor de pureza e inocência que tenta crescer incólume em meio a um lodaçal de sangue e fúria... Ofélia imagina que insetos são fadas-madrinhas e que um fauno, servidor ancestral do Rei dos Subterrâneos, a guiarão por aventuras glorificantes: sonha ser sagrada princesa de alguma outra dimensão, já que nesta onde vive é tratada por seu pai adotivo, o truculento General Vidal, como um pedaço de carne-e-ossos sem direitos, a ser submetida e tratada aos tapas e berros.


Se a realidade é sinistra, as fantasias também adquirem propensão para o sinistro. Vivendo em meio às sujeiras mais enojantes, não surpreende que suas fantasias também envolvam "provas" asquerosas e enlameadas. Num coração dominado pelo medo, as alucinações têm predileção especial pelas paranóias. As fantasias filmadas por Del Toro no Labirinto têm pouco a ver com o método Walt-Disney ou Rede Globo de lidar com o imaginário: ele parece mais próximo de Lynch ou Cronenberg em sua insistência por retratar o "terror corporal": olhos fora do corpo, entranhas vomitadas para fora pela boca, bichos escrotos com quem é preciso lidar em ambientes grotescos... Algumas de suas fantasias consistem em penetrar nas entranhas da Terra - em um local sem luz, repleto de bichos da escuridão, e onde descansam as caveiras dos que um dia viveram... - para concluir as provas que a farão digna de ser coroada...

Ofélia sonha com uma jornada heróica, repleta de perigos, e audaciosa os enfrenta: sem nojo, suja o vestidinho de lama, se embrenha no pântano cheio de insetos e excrementos, à busca de um contato íntimo com um sapo... Entra na caverna do Des-olhado, pega nas mãos o prato onde os globos oculares descansam, até ousa a peraltice de furtar duas uvinhas, já que ninguém estava olhando... Ajeita a mandrágora no leite, alimentada com gotas de sangue, debaixo da cama da mãe adoecida, na esperança de que esta seja uma cura eficaz (seria queimada pela Inquisição por ser uma feiticeira, se fosse séculos atrás!)... Não haveria macumba ou simpatia que Ofélia recusasse na sua tentativa de revigorar a saúde estraçalhada da mãe e superar seu próprio estraçalhamento mental por viver sob o jugo do Autoritarismo Militar...

Se o Labirinto é um filme tão interessante é pois nos convida a refletir sobre as relações promíscuas entre a fantasia e a realidade, que influenciam-se mutuamente a ponto de às vezes ser difícil distinguir a percepção de um fato objetivo do "fantasma" fabricado pela mente. Uma das mais impressionantes filosofagens do Henri Bergson, pensador de primeiríssimo quilate e escritor magnífico (não à toa levou um Prêmio Nobel de Literatura... sem jamais ter escrito romances ou poesias!), concebe a evolução criativa da vida levando em conta a importância seminal, em especial na história evolutiva humana, da utilização daquela faculdade que ele chama de "fonction fabulatrice". Toda a arte, toda a mitologia, todas as primeiras religiões construídas pela humanidade, tudo isso não poderia ter nascido se não fosse por esta potência humana: a "função fabulora", engendradora de mitos, fabricante de deuses, paridora de anjos, imaginadora de quimeras, fantasiadora de faunos...

Em As Duas Fontes da Moral e da Religião, Bergson põe toda a sua vasta erudição a serviço da compreensão dos mecanismos fisiológicos, biológicos e psicológicos da fantasiação. E uma de suas conclusões é que a religião é uma criação da fonction fabulatrice destinada a combater certas "idéias desestabilizadoras" concebidas pela inteligência: tal como a idéia de que a morte é inelutável ou de que os resultados das ações por nós desencadeadas são imprevisíveis.

Nada melhor do que observar esta fabulação ocorrendo numa criança em tempos de sombras para compreender estes mecanismos internos do afeto e da projeção: rodeada pelos horrores de uma guerra suja, Ofélia contrapõe à sua experiência traumática as fabricações fabulosas de sua mente altamente imaginativa, sonhando-se glórias e ascensões que a realidade sinistra lhe insiste em negar. Longe de ser "arbitrária" e desregrada, a fantasiação têm sua função prática e é regida por certas regras morais: quando o Fauno pede que Ofélia sacrifique o bebê, pois só com sangue inocente seria possível realizar o derradeiro "rito de passagem", ela nega-se a isto e prefere oferecer-se (heroicamente) como vítima de holocausto. Sua derradeira fantasia é tipicamente religiosa: imagina-se salva, aprovada, com acesso permitido ao Castelo Dourado de Deus-Pai, depois de ter cumprido as necessárias provas de bravura que foram somente a antesala do Paraíso... Mas é tudo imaginário. No palco obsceno da História, em meio ao militarismo agressivo reinante, Alice tem seu vestidinho de moça rasgado e é deflorada cruelmente num mundo de Macbeths. Tudo o que lhe resta, como prêmio de consolação em sua quase absoluta impotência, é a fantasiação de uma vitória que não obteve - e não obterá.

2 comentários:

  1. Vc não acha o final "feliz" demais (mesmo que seja só uma fantasia/alucinação)? Eu achei que quebrou um pouco o clima do resto do filme.

    ResponderExcluir
  2. Hmmm... é verdade que a alucinação final da Ofélia é bem "água-com-açúcar", uma idealização altamente kitsch... Mas o filme deixa claro que aquilo se passa só na imaginação da garota. E mostra muito claramente, também, o contraste entre o mundo infantil e os horrores da História, que são bem sombrios... De certo modo, o desenlace é "feliz" porque mostra a derrota dos militares fascistas, a vitória da "Revolução", mas me parece algo que não se parece muito com o tradicional happy end hollywoodiano... especialmente pela trilha de cadáveres que fica pelo caminho. Parece mais com o fim de Macbeth ou Ricardo III! ;)

    ResponderExcluir