"Somente quem tem o caos dentro de si
pode dar à luz uma estrela bailarina."
Nietzsche (Assim Falou Zaratustra)
[1] A oposição entre o cisne branco e o negro me fez pensar nos princípios
apolíneo e
dionisíaco tão matutados por Nietzsche. A "metamorfose" que é exigida de Nina para que possa encarnar o cisne negro - luxuriante, pródigo, arrebatador... - exige uma injeção de
"êxtase dionisíaco" no sangue em doses cavalares. Ela precisa entrar
em guerra contra si mesma e suas tendências apolíneas ("comportadinhas"): deixar de ser frágil, resignada, acovardada, ascética, metódica, auto-controlada, excessivamente racional, e permitir-se uma fecunda "loucura" auto-transformadora. Como bem sabem os
poetas, às vezes enlouquecer é
enloucrescer. Nada mais simbólico disso do que a poética imagem das penas negras emergindo das feridas sangrentas. O parto de Dionísio não se dará sem um pouco de derramamento de sangue!...
[2] Outra: me comoveu a celebração dos poderes redentores das
rupturas com a normalidade. A
rebelião, no caso de Nina, é necessária para seu amadurecimento, para que ela rompa com seu infantilismo kitsch: ela só poderá encarnar o cisne negro depois de jogar no lixo, num arroubo de rebeldia adolescente tardia, os bichinhos de pelúcia e o quartinho de filhinha-da-mamãe, todo
pink. A criancinha trêmula vai caindo por terra conforme exige-se dela um "salto" psíquico que a tornaria apta a encarnar no palco algo tão oposto ao que ela é. Nina vai ter que mergulhar no pântano da
vida podreira -
raves regadas a
ecstasy e sexo casual, um meio social onde vige brutal competição pela fama... - para enterrar a boa-moça carolinha que era. Antes conformada a um papel submisso em relação à mãe superprotetora e
control-freak, Nina enfim embarca nos turbilhões da vida adulta e nos mistérios da expressão artística genuína. Depois do conforto branco do ninho, a aventura sombria e terrificante do vôo solo.
[3] O contraste entre os dois cisnes é também símbolo para uma
diferença de atitude sexual: o cisne branco é recatado, reprimido, virginal; o negro é experenciado, libertino, sensual, sem travas. Uma das primeiras "lições de casa" que Leroy, o diretor do espetáculo, faz à sua discípula é: "masturbe-se!" Ele a fulmina com questões constrangedoras ("você é virgem? gosta de fazer amor?"), como se sugerisse que ela só poderia encarnar a personagem se pudesse se tornar menos "coroinha", se desse vazão aos seus
charmes eróticos sub-utilizados, se encarnasse a
femme fatale sedutora e impiedosa... Também Lily, quando leva Nina à balada, faz de tudo para que a amiga aprenda a tirar a calcinha com menos encanação ("live a little!"). A mensagem, em suma, seria: a libertação psicológica passa necessariamente pela
liberação da piriquita. Wilhelm Reich não discordaria.
[4] Gosto que o filme, apesar de trabalhar intensamente com a metáfora císnica, opondo de modo enfático o "jeito-de-ser" do cisne branco e do negro, não faça disso um maniqueísmo. Dizer que a desrepressão da sexualidade, a rebelião contra a família e o aventurar-se no vasto caótico mundo é entrar para os domínios sombrios do "Mal" é apenas um preconceito cristão, como poderia dizer Nietzsche; pode ser que muito mais "sombrio" e "maléfico" do que a encarnação do cisne negro seja a resignação ao destino de cordeirinho inofensivo, que carrega mudo suas cruzes. A força transbordante e impetuosa do cisne negro que dança em êxtase é muito mais gloriosa do que a desgraçada queda suicida do cisne branco. A ascensão entusiasmante de Dionísio em contraste com a melancólica aspiração pelo chão do Cisne Cristão. Gosto que o filme de Aronofsky, fiel a um certo nietzschianismo, não sustente que o branco é a encarnação do Bem e o negro do Mal; ao contrário, sugere-se que o Artista realmente expressivo nasce de uma capacidade para
sintetizar estes dois princípios, transitar entre eles, numa circulação ousada pelos domínios de Apolo e Dionísio, de Cristo e de Baco, de sofrimento e de êxtase... Não se trata de escolher um lado na exclusão do outro, mas ter a disponibilidade para ser habitado tanto por cisnes brancos quanto por negros... O homem integral, mescla de anjo e demônio, santo e besta, nunca estacionado em nenhum desses pólos, sempre atraído por ambos, cambaleia pela Terra no desnorteio desses obscuros magnetismos...
[5] Prato cheio para psicanálises, o filme decerto descreve uma personalidade sob um grau de tensão descomunal, resvalando para a alucinação, a esquizofrenia, a psicose, a auto-mutilação... Me fez refletir: algum grande artista pode ter
temor da insanidade, ou este "medo de ficar louco" é justamente aquilo que impede que, nas "pessoas normais", o artista venha à tona? Me lembro do príncipe Míchkin de Dostoiévski, em seus ataques epiléticos em momentos de hiper-sensibilidade e de transe místico... e de Artaud, de Van Gogh, de Arnaldo Baptista, do próprio Nietzsche... Tantos indícios de que grandes
mananciais artísticos jorram quando o sujeito abandona sua "normopatia", enfrenta seu pavor de enlouquecer e se dirige para os abismos! Me parece que
Black Swan simboliza um pouco isto: a tentativa de
auto-transcendência, a luta por ascender ao máximo de expressividade artística, através de um perigoso (mas potencialmente frutífero!) flerte com a insânia.
[6] A confusão psíquica de Nina é muito bem explorada através das inserções de alucinações, fantasias, atos falhos. Um paralelo com
Clube da Luta é facilmente traçável:
Tyler Durden também era uma espécie de cisne negro (todo ímpeto, arroubo, catarse e sex appeal) que incendiava a pasmaceira acomodada e rotineira do personagem de Edward Norton (aparentemente bem adaptado à sociedade de consumo, produtivo, funcional...). O "eu real" e o "eu ideal" , a máscara social e as obscuras e secretas tendências íntimas, mesclavam-se na percepção subjetiva até que não se sabia mais quem agia, se o homem ou sua sombra imaginária... Também Nina passa o filme inteiro assombrada pela presença fantasmática de um "ideal" que ela sente-se impelida a encarnar. Se ela não se tornar semelhante ao cisne negro, ideal dionisíaco e tyler-durdeniano, ela não só deixará de se alçar aos píncaros da celebridade, sendo substituída e relegada, como despencará em sua própria auto-estima e se considerará um completo fracasso humano. O filme de Aronofsky, apesar de seus elementos trágicos, não parece querer que derrubemos lágrimas pela morte do cisne branco, mas muito mais que nos inflamemos de admiração pela auto-superação da dançarina que, em heróica conquista, ao cabo de duros sacrifícios, encarna um deslumbrante e fatal Cisne Negro.
[7] Enloucrescer é viver!
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