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sábado, 27 de março de 2010

:: Budapeste ::


:: LÍNGUAS QUE O DIABO RESPEITA ::

Budapeste, elogiado romance de Chico Buarque, emigra para a telona em adaptação classuda de Walter Carvalho

Por Eduardo Carli de Moraes


Budapeste é talvez um dos ápices do percurso literário de Chico Buarque. Lançado em 2003, pela Companhia das Letras, o romance arrancou entusiásticos comentários de muitas sumidades da intelectualidade. José Saramago louvou-o: “Chico ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro.” Veríssimo, após elogiar a “prosa depurada” e a “construção engenhosa”, também derreteu-se em loas, dizendo que chegamos ao fim do livro “lamentando que não haja mais” e “assombrados pelo sortilégio deste mestre de juntar palavras”. Já José Miguel Wisnik sugeriu, com muita propriedade, que “no exato momento em que termina, transforma-se em poesia”.

Como adaptá-lo para a telona sem trair o espírito de um livro tão instigante, complexo e bem bolado? O diretor Walter Carvalho, que já tinha assinado a direção do documentário Janela da Alma (com João Jardim) e a cine-biografia musical Cazuza – O Tempo Não Para (com Sandra Werneck), realiza sim uma tentativa bem-cuidada, que prima pela técnica e que transporta com razoável fidelidade o mundo imaginado por Chico, ainda que com certos deslizes e equívocos (que logo mais comentamos).

“Como dar vida aos livros? Como voltar a vê-los como uma via real para a boa vida e não apenas como papel e tinta conversíveis em dólar?” , pergunta-se Jurandir Freire Costa (em artigo para a Folha de São Paulo, 7/2/99). Budapeste é uma obra que nos deixa obcecados e preocupados com a mesma dúvida, e um tanto desconsolados com a resposta que nós dá o atual estado de coisas.

Pois aqui as podridões no submundo da literatura são trazidos à tona: autorias duvidosas, campanhas de marketing apelativas, “tenebrosas transações” de bastidores, noites de autógrafo espetaculosas e festas de lançamento repletas de câmeras, champanhe caro e caviar... Um cenário repleto de êxitos literários efêmeros e voláteis parece erguido com o fim de ser um velado questionamento, mas que nunca descamba para uma crítica de artilharia pesada, a uma Sociedade do Espetáculo que criou livrarias que mais parecem templos do consumo e que fez se disseminarem como a peste os best-sellers e os livros de “auto-ajuda” (que ajudam muito mais a conta bancária de seus autores e editoras do que transmitem qualquer “sabedoria” aos leito--- ops! consumidores.).

Mas a maior alfinetada às picaretagens do mundo literário é a própria profissão de Costa (encarnado no filme pelo excelente Leonardo Medeiros): ele é um ghostwriter, ou “escritor anônimo”. Trampando numa agência que oferece plena “confidencialidade”, ele topa escrever de tudo por encomenda: de teses de doutorado a livros de poesia, de auto-biografias a cartas de amor, passando até por discursos políticos e ameaças de suicídio – escritos que faz menos pela grana que pelo “exercício de estilo”.

No romance, esta faceta crítica é mais intensa e peçonhenta que no filme, no qual aparece um tanto atenuada e escondida detrás da “história de amor” que domina o primeiro plano. No livro, por exemplo, quando Costa vai ao lançamento do volume de poesias em húngaro que escreveu para outro assiná-lo, comenta enfezado que aquilo é um “rega-bofe para privilegiados!”. Sem falar que em seu livro Chico, provocando pesado, faz até o presidente da Academia Brasileira de Letras ser um cliente da Agência de Escritores Fantasma!

Costa é um autor ressentido por ser um mero “Gasparzinho” e está faminto por palmas. Mostra-se sempre ansioso por destronar os falsos ídolos que se ergueram à glória literária com luz de empréstimo e pena alugada. Budapeste faz uma análise em minúcias de uma personalidade cindida entre o conforto de criar nos bastidores e a vontade de estar brilhando em cima do palco. Sua profissão gera nele um intenso desejo de vanglória, que é tão ardente por ter sido tão reprimido por tantos anos pela obrigação profissional de permanecer nas sombras do anonimato. “Eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que palavras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, era como progredir de sombra…”, escreve Chico.

Há em Costa um anseio por reconhecimento que não pode confessar-se e que só se satisfaz de contrabando e às migalhas. Sua própria esposa, Vanda (interpretada por Giovana Antonelli), lê muitos artigos de jornal e livros de sucesso, sem saber que seu marido é o autor deles: “Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando.” (103)

Os momentos de maior carga dramática no filme de Carvalho são aqueles em que o “gabarola” que há em Costa sai de sua casca e exige para si os holofotes e as salvas de palmas. Como na cena em que ele, num rompante de ciúme, feito Otelo prestes a estrangular Desdêmona, arranca a esposa dos braços de um pseudo-escritor e desfaz a farsa a altos brados, no meio de uma festa. “Sou eu o autor do livro, não ele!”, esbraveja, como uma criança birrenta que quer a bênção da professora, dizendo que o colega que tirou 10 colou dele a prova inteira…

Budapeste, apesar de seu nome, não deixa de ser também uma obra sobre o Rio de Janeiro. Chico narra, com muito conhecimento de causa, várias cenas-marco do panorama carioca. Oferenda de lírios à Iemanjá debaixo dos foguetórios. Marchinhas de carnaval que emergem das ruas e disputam com o som dos televisores. Gringos deslumbrados que se enamoram de mulatas e seus indecorosos bronzeados. Jovens suburbanos, de cabeça raspada e profusas tatuagens, que talvez sejam “desses skinheads que gostam de encher as bichas de porrada”. Caminhadas infindáveis, de Leblon a Copacabana, que faz um literato avoado que os vendedores ambulantes provocam: “e aí, meu, tá à toa na vida?”

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AMANDO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA

Deveria ser proibido debochar de quem se aventura a amar em língua estrangeira. José Costa, protagonista de Budapeste, é um desses que se lança a este desafio cheio de percalços. Mergulhando numa cultura estranha, como um alienígena que pousa no planeta incógnito de outro idioma, enfrenta tanto as agruras de um mundo literário corrompido quanto as feridas e glórias de um vínculo amoroso difícil, em que o sentimento precisa dar um jeito de saltar pelo abismo de uma linguagem comum que falta, a princípio, mas que vai se inventando conforme se caminha.

Escapando de um casamento opressivo no Brasil, Costa parte para uma aventura sentimental-literária em Budapeste. O filme (e o livro) é um relato de sua batalha para assimilar uma cultura estranha e adquirir uma nova língua – e uma das mais esdrúxulas e pouco familiares que existem para um brasileiro. Mesmo os budapestinos reconhecem o enrosco de seu idioma: “O húngaro é a única língua que o diabo respeita”.

Costa nos dá a impressão de ser um homem que ama desbravar os mistérios das línguas estranhas e que acha que “desembarcar em país de língua desconhecida dá sempre uma sensação boa”, escreve Chico, “como se a vida fosse partir do zero".

Kriska (Gabriella Hámori) é a paixão que ele acha em solo húngaro. Branca, bela e amante da disciplina, torna-se sua professorinha dedicada e exigente: “nas primeiras aulas, me fazia passar sede porque eu falava água sem acertar a prosódia”, escreve Chico. Não se sabe se a paixão é maior pela mulher ou pelo idioma, mas estas não são obsessões que se excluem: uma alimenta a outra. Quando está prestes a se aventurar no corpo estrangeiro de Kriska, ele pensa: “me comovia sabendo que em breve conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, o nome delas.”

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LOST IN TRANSLATION

Agora, vamos aos paralelos livro-filme e as virtudes e defeitos da adaptação...

A prosa de Chico, ecoando sua poesia musical, possui muitos elementos brincalhões e lúdicos, com uma veia cômica muito afiada, o que não transparece quase nada na adaptação cinematográfica. Um pouco na linha de Monteiro Lobato, Guimarães Rosa ou Adélia Prado, Chico adora usar termos, tanto do linguajar chulo e popular quanto do português mais parnasiano e livresco, que soam divertidos, inauditos e coceguentos. Pesquei de Budapeste, só a título de exemplo, alguns exemplares: arraia-miúda, embevecido, ressabiado, brutamontes, mentecaptos, caquético, lépido, encasquetado, atarantado…

Em Chico, o avião faz pouso forçado porque “deu um bode”, o chefe é um “vampiro que chupa talento” e a apresentadora de TV é uma “papagaia”. No exílio , o que mais maltrata o personagem é a saudade da língua materna, que faz com que Costa ligue para o Brasil só pelo prazer de deixar, numa secretária eletrônica, gostosuras do brasilianês – “marimbondos”, “adstringências” e “Guanabaras”, palavras que gringo algum tem o prazer de pronunciar! Apesar do livro estar repleto dessas guloseimas linguísticas – o leitor descobre fascinado que “tartaruga em alemão é sapo com escudo” e é apresentado a moças com “vestido maria-mijona”! – no filme o banquete linguístico é bem mais pobre e menos requintado.

Mas, se fosse só isso, o problema seria pequeno e indigno de reproches mais inflamados. O problema é que o filme comete mais graves pecados. Não se sai “tesourando” e modificando o espírito da linguagem de um livro, ao transpô-lo para o cinema, com impunidade artística e sem entornar um pouco o caldo. No fundo, a impressão que fica é que o cinema idealiza e tenta tornar “elevado” o que a literatura de Chico trata de modo pé-no-chão, irônico e cáustico.

O filme morre de medo da feiúra, enquanto Chico em seu livro é frequentemente “punk” e obsceno – falando, por exemplo, em “comedor de merda”, “chupador de pica”, “beijar no cangote”, “se esbaldar no sex shop” e “falar peito, boceta e cu em dialeto”. Um bom bocado dessa linguagem ofensiva e forte é limado de um filme que se pretende refinado e sublime, mas que por isso trai bastante o espírito lúdico e brincalhão da apimentada escrita buarquista.

Através de uma fotografia majestosa e bela, o filme torna a cidade húngara algo elevado e altamente estético – e o deleite que nos causam nos olhos certas tomadas não surpreendem, já que Carvalho se notabilizou por magníficos trabalhos como diretor de fotografia em filmes como Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado.

Mas a Budapeste que Chico imaginou me parece bem menos acolhedora e maternal do que aquela que vemos na tela: seu Costa fica sem-teto e com cartões de crédito confiscados, zanzando por espeluncas e becos mau-iluminados, como um dejeto latino-americano indesejado. É uma figura um tanto trágica, que tem suspeita de pneumonia, só arranja trampo de subalterno e quase se suicida no Danúbio. Esses extremos maus bocados por que passa aparecem bem atenuados no filme de Carvalho, fazendo o personagem perder um pouco de seu caminhar trôpego e quase trágico. Tanto que fica a impressão de que o filme exagera na glicose e na água-com-açúquice em momentos em que o livro é trash feito um romance de Henry Miller.

No livro, Kriska também nos aparece muito mais como uma porra-louca indelicada, hedonista e maluquete, que vive tomando altos porres de vermute e convidando à sua cama vários homens semi-desconhecidos. Nada a ver com a anjinha fofurete que vemos na telona. Ela, no filme, também não aparece com a densidade que possui no livro, quando é por horas radiografada pelo narrador com ironia fina, à la Milan Kundera: “A fim de me segurar comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha”, escreve Chico.

O livro também passa longe de ser uma história de amor adocicada e terna, em que Kriska seria um porto seguro para um estrangeiro desnorteado, como fica a parecer na adaptação sentimentalizada que fez Carvalho. O que Chico descreve não é, de modo nenhum, uma relação amorosa alegre, sadia e radiosa que conduz a um happy end de conto-de-fada. Há no romance uma série de momentos em que o tom é de hostilidade, angústia e desnorteio muito mais que de harmonioso encontro. Cito Chico para referendar o dito: “Acho que Kriska só me fez entrar em casa porque não queria problemas com a polícia, caso eu viesse a falecer no seu portão”; “súbito me acometeu um espasmo, uma sensação de estrangulamento, uns arquejos violentos, eu soluçava como grunhe um porco…”; “esperei que me cuspisse na boca e me arranhasse a cara, depois me enfiasse aquelas unhas nos olhos e os arrancasse das órbitas, eu tudo suportaria…”.

Só por estes trechos já nota-se que a relação entre Kriska e Costa, que o cinema tenta transformar (sem muito sucesso) num bonitoso caso-de-amor açúcarado, é de fato uma tensa gangorra, em que lábios emudecem “palavras caídas em desuso de tão atrozes” (pg. 151) e o homem é capaz dos gestos mais brutais – como quando espatifa o prato de espaguete contra a parede quando não recebe os mimos que mudamente pede. O que em Chico é quase um Trópico de Câncer trashão e trágico e debochado, torna-se no cinema um Encontros e Desencontros adocicado com um pano-de-fundo cult e literário. Se for pra escolher, pois, fiquem com o livro. Ainda que o filme mereça ser visto e nos auxilie a penetrar no rico palácio de um dos grandes romances brasileiros dos últimos anos.

Budapeste, afinal, é uma obra sobre a podridão de um mundo literário espetacularizado, que Chico Buarque, sendo ídolo nacional e mito vivo, deve ter sofrido na pele quando procurou migrar da poesia cantada para a escrita romanceada. É uma obra que descreve arrebatados ímpetos de ciúme e vanglória muito mau-canalizados, e que Chico só não transforma em tragédias shakespearianas, dignas de figurarem em Otelo, pois têm muita paixão pelo deboche e pelo hilário para que recaia no melodramático. E é também, sobretudo, uma obra sobre amores trôpegos que tentam, muitas vezes em vão, vencer o abismo de desconhecimento causado pela solidão e por tudo que se perde na tradução.

:: Leia o 1o Capítulo de Budapeste... ::

BUDAPESTE
Chico Buarque

Devia ser proibido

Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase. . . havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que freqüento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha. . . E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai.

Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local. Aumentei o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar para casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo. Eu deveria estar com sono, mas não estava, então enchi a banheira, espalhei uns sais de banho na água morna e me distraí um tempo amontoando espumas. Estava nisso quando, zil, tocaram a campainha, eu ainda me lembrava que campainha em turco é zil. Enrolado na toalha, atendi à porta e topei um velho com uniforme do hotel, uma gilete descartável na mão. Tinha errado de porta, e ao me ver emitiu um ô gutural, como o de um surdo-mudo. Voltei ao banho, depois achei esquisito hotel de luxo empregar um surdo-mudo como mensageiro. Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiornie que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil. Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender.

Já passava de uma quando fui para a cama nu, religuei a tevê, e a mesma mulher da meia-noite, uma loura com maquilagem pesada, apresentava uma reprise do jornal anterior. Percebi que era uma reprise porque já tinha reparado na camponesa de rosto largo que encarava a câmera com os olhos saltados, empunhando um repolho do tamanho da sua cabeça. Balançava ao mesmo tempo a cabeça e o repolho para cima e para baixo, e falava sem dar trégua ao repórter. E espetava os dedos no repolho, e chorava, e esganiçava a voz, e tinha o rosto cada vez mais vermelho e inflado, e enterrava os dez dedos no repolho, e agora meus ombros se retesavam não pelo que eu via, mas no afã de captar ao menos uma palavra. Palavra? Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca. Aos meus ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro. E o avião reapareceu na pista, numa imagem distante, escura, estática, que salientava mais ainda a voz masculina da locução em off. A notícia do avião já pouco me importava, o mistério do avião era ofuscado pelo mistério do idioma que dava a notícia. Vinha eu escutando aqueles sons amalgamados, quando de repente detectei a palavra clandestina, Lufthansa. Sim, Lufthansa, com certeza o locutor a deixara escapar, a palavra alemã infiltrada na parede de palavras húngaras, a brecha que me permitiria destrinchar todo o vocabulário. Ao jornal sucedeu uma mesa-redonda cujos participantes pareciam não se entender, depois um documentário sobre o fundo do mar, com peixes transparentes, e às duas em ponto retornou minha amiga maquilada, que envelhecia de hora em hora. Meteorologia, Parlamento, bolsa de valores, estudantes na rua, shopping center, camponesa com repolho, meu avião, e já me arriscava a reproduzir alguns fonemas a partir de Lufthansa. Aí entrou na tela uma moça de xale vermelho e coque negro, ameaçou falar espanhol, zapeei no susto. Caí num canal em inglês, mais um, outro, um canal alemão, um italiano, e de volta à entrevista com a dançarina andaluza. Cortei o som, me fixei nas legendas, e observando em letras pela primeira vez palavras húngaras, tive a impressão de ver seus esqueletos: ö az álom elötti talajon táncol.

Às seis da manhã, quando o telefone deu o despertar, eu estava sentado na ponta da cama. Logo recitaria em uníssono com o locutor a notícia do avião, uns bons vinte segundos de húngaro. Feito o quê, vesti com desgosto a roupa da véspera, porque só tinham liberado as bagagens de mão, e desci para o lobby, que estava uma babilônia. Quanto mais se desentendiam os vários idiomas, mais se exaltavam os protestos contra o terrorismo, contra a companhia aérea, contra os extras que o hotel cobrava. As vozes só serenaram quando foi aberto o restaurante, para o café-da-manhã gratuito, mas aí o estrago estava feito; fui buscar minhas palavras húngaras na cabeça e só encontrei Lufthansa. Ainda tentei me concentrar, olhei para o chão, andei de lá para cá, e nada. No fundo do salão avistei uma roda de garçons falantes, e pensei que poderia ao menos filar umas palavras deles. Mas ao me perceberem, fizeram brusco silêncio e me intimaram a sentar com três grandalhões de cara eslava, numa mesa cheia de farelos, cascas de frutas, cascas de queijo, mais quatro vidros de iogurte raspados. Restavam intocados na cesta de pães uns similares de broas avermelhadas, na certa uma especialidade nativa, que provei com cautela e por educação. A massa era leve, de um sabor adocicado que com o tempo deixava uma lembrança amargosa. Comi a primeira, a segunda, acabei comendo as quatro porque estava faminto, e a coisa não era de todo ruim, se engolida com chá. Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro. In Hungarian, insisti, e desconfiei que eles tinham ciúme de sua língua, pois o maître não se deu por achado; fez um ô gutural, despejou no meu prato um monte de broas, rejeitadas pelas mesas vizinhas, e bateu as mãos para me apressar, fazendo ver que o restaurante estava vazio. No lobby, uma aeromoça com uma lista e um walkie-talkie na mão gritava Mister Costa! Mister Costa!, e eu era o último a me juntar à legião que se afunilava na esteira rolante, a dez metros da porta do hotel. Deslizamos até o portão de embarque através de um longo e cintilante território livre, um país de língua nenhuma, pátria de algarismos, ícones e logomarcas. Na Polícia Federal um funcionário bigodudo folheava com preguiça cada passaporte, que devolvia sem carimbar. Esvaía-se na pessoa dele minha esperança de ouvir a derradeira voz de um húngaro, pois de sua boca não saía um bom-dia, um muito obrigado, um boa viagem, que dirá um volte sempre. Quem sabe como compensação, ao me instalar na poltrona da classe executiva, me voltou à língua o sabor do pão de abóbora, e agora de novo ele era doce. Apertei o cinto, fechei os olhos, achei que não ia dormir nunca mais na vida, tomei um sonífero e o avião decolou. Cheguei o rosto à janela, estava tudo nublado, a pílula fazia efeito. Quando se abriu um buraco nas nuvens, me pareceu que sobrevoávamos Budapeste, cortada por um rio. O Danúbio, pensei, era o Danúbio mas não era azul, era amarelo, a cidade toda era amarela, os telhados, o asfalto, os parques, engraçado isso, uma cidade amarela, eu pensava que Budapeste fosse cinzenta, mas Budapeste era amarela."

terça-feira, 23 de março de 2010

:: we'll always have Paris! ::


:: CIRURGIÕES DA MEMÓRIA ::
Casablanca (Michael Curtiz, 1942)

"...a nada são prometidas a permanência e a duração, nem mesmo à dor." - MARCEL PROUST, À Sombra das Raparigas em Flor (Vol. I, pg. 482, ed. Ediouro)


Quando Heráclito dizia que não se banha duas vezes no mesmo rio, pois nem as águas nem o banhista são os mesmos no segundo mergulho, quis sublinhar , através de uma imagem memoravel, que TUDO, em última análise, é uma correnteza. Até mesmo as rochas, as montanhas, os palácios, os animais empalhados e as estátuas ("Les Statues Meurent Aussi", chama-se um belo filme de Alain Resnais...) são correntezas! Sim: as lagoas e as pirâmides também fluem, mesmo que de modo não tão visível quanto no caso exemplar (pois ultra-pedagógico) dos rios. E é isso que faz de toda e qualquer coisa no universo, e não somente os rios e Raul, sejam uma "metamorfose ambulante". Em suma: quando o filósofo afirmava que "tudo flui", ele não tava de brincadeira: o "TUDO" era pra valer!

Nossa Consciência, ainda que muitos disso não se dêem conta, também trabalha em regime de fluxo perpétuo. Só dentro da mente é que forjamos crenças (como a da "identidade pessoal imutável", da "alma imortal" ou do "eu" adamantino que seria o mesmo no bebê e no velho)... com quê tentamos nos convencer de que há alguma verdadeira permanência ou durabilidade. Quando não há!

Uma lembrança, por exemplo: taí algo que os ingênuos podem acreditar que não muda, sendo como uma "foto" que retêm "para sempre" o que foi "realmente" um determinado "instante" (e quantos problemas filosóficos não levantam essas expressões: "realmente", "para sempre" e "instante"!). Uma vez tirada e retida essa “foto” que é a lembrança, que supõe-se um verossímil retrato do real, pronto – "tirou, tá tirada". Mas não!

Casablanca
nos faz pensar que a memória é um constante retocar, re-interpretar, re-alocar, re-significar, re-pesar e re-valorizar o nosso acervo de "fotos internas". Estas que, tanto quanto as fotos "materiais", também podem sofrer processos semelhantes ao desbotar, se rasgar, acumular pó, perder o viço, mudar de cor, perder ou ganhar encanto, ser mordidas pelo cachorro ou despedaçadas pelas crianças...

Essa noção da Memória como um Imenso Depósito onde guarda-se, tal como foi, o que um dia foi presente, como um Álbum de Fotografias que só possui retratos exatos e verazes de como foi nossa caminhada, é problemática e muito provavelmente falsa. Os afetos, os desejos, as esperanças e o intenso desejo de felicidade podem fazer com que a verossimilhança e a lucidez percam a batalha para o retoque, o kitsch e as lembranças inventadas.

A memória humana se insere, pois, neste "tudo flui" de que falava Heráclito: é mutante e transformante, oscila e varia conforme o presente. Está aí um adicional de fragilidade a este deus-de-pés-de-barro tão frágil e ferível que é o amor: não só ameaçado pelo desgaste, pelos atritos, pelo tédio, pela solidão, pela morte, pelas brigas, pelos ciúmes, pela possessividade, pelo sadismo e por tantas outras forças que o atacam, têm ainda que cuidar para que não perca os bens que viveu e que agora estão retidos nos frágeis frascos da memória.

É um pouco este, acho eu, o drama emocional que emoldura um dos grandes filmes da história do cinema, Casablanca. Ali, a memória de um tórrido affair romântico em Paris, entre o celebérrimo casal Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, não cessa de modificar-se, feito um camaleão do passado, conforme o presente se desenrola. Como um tapete adentrando o salão escuro do futuro.


Quando ele primeiro revê a ex-amante em Casablanca, ao som de “As Time Goes By”, conhecemos um homem amargo, ferido, inundado por mágoas, que parecia ainda trazer no peito a chaga sangrenta de ter sido, anos e anos atrás, um homem que espera, na chuva, e em vão, pela mulher que ama. A cena é um dos mais memoráveis momentos de um galã hollywoodiano hooked by the blues, submerso na terrível melancolia de uma rejeição incompreensível, ensopado (de chuva ou de lágrimas?) naquela estação de trem que mais se parece uma sala de tortura a céu aberto. Os minutos rareando que soam como punhaladas sequenciais no coração de uma esperança agonizante. Um amor que morre sufocado pela ausência intensamente desejada da mulher que se queria presente. Essa ferida não será facilmente superada. Bogart, quando o clássico de Michael Curtiz começa, é um bruto, um beberrão e um ser humano de pedra – e que ficou assim empedernido devido a um coração partido e jamais cicatrizado.


A noção de tempo, para o Rick ao início de Casablanca, está reduzida à estaca do momento por fobia ao trauma passado. Ele mesmo diz, quando lhe perguntam sobre ontem: “isso está tão distante que nem me lembro”. Ou quando lhe perguntam sobre o que fará à noite, retruca: “I never plan that far ahead”. Ou seja, ele está reduzido a seus cigarros, sua rabugice e seu pub marroquino repleto de intrigas, trambiques, passaportes falsos e jogos suspeitos, não querendo voltar o pescoço para olhar no rosto de um dolorento passado. E talvez conseguisse manter a porta deste porão trancada, se a visita da ex-amante não redespertasse dentro dele uma memória submersa, mas que ele descobre ainda não curada.

Claro que sua primeira reação é vingar-se da mulher que o abandonou, causando-lhe tanta dor e humilhação, gerando um trauma que até então ele jamais superara. Casablanca retrata uma espécie de terapia a dois, feita no grande palco caótico de um mundo imerso na 2a Guerra Mundial, em que ambos procuram, de certo modo, remendar uma lembrança que rasgou-se e tornou-se um hematoma dentro do grande salão da memória.

Pois todos temos lembranças que possuem gangrenas, lembranças que têm vírus e bactérias, lembranças que estão apodrecendo, lembranças que assombram nossos pedadelos ou que nos pesam nos ombros da alma travestidas de culpas... Nossa sorte é que não é preciso ser neurocirurgião para fazer uma benigna operação de remoção de um tumor da memória! O passado, de fato, não pode ser mudado; mas nossa memória dele, sim. Nossa interpretação sobre seu sentido, sim. O peso sentimental e existencial que possui para nós, sim. E temos alguma outra relação com o passado, a não ser através de nossas lembranças? E que miséria e que ninharia não são! Nosso minúsculo passado pessoal, essa miseriazinha de pequenas lembranças que possuímos, que é isso perto da enormidade da História real?!? E não falo de tudo o que ocorreu e foi registrado em todos os livros de História do mundo... Porque a imensa maioria das coisas que ocorreu jamais foi parar num livro de História!!! O império do Esquecimento é incomensuravelmente maior e mais vasto e poderoso que o pobre e débil reino da Memória. E a nossa memória pessoal é gotícula mísera no Grande Oceano do Acontecido.

No filme, há o retrato de um Milagre Psicológico: a Regeneração de uma Memória. Ou melhor: uma transformação radical de um memória que, antes guardada como uma chaga e um tormento, passa a ser abraçada com ternura e gratidão. E, neste caso, o agente benigno que opera essa doce cirurgia é ninguém menos que a Verdade – apresentada como algo deveras redentor. The truth shall set you free. Este homem, que sofre por não saber porque foi abandonado, torna-se, ao contato redentor com a verdade, ao assimilá-la através da compreensão, quase que completamente curado (ao menos da mágoa: que dizer do bem-mal que agora o acometerá, a saudade?).

Ele entende que ela "não fez por mal", que não quis machucá-lo e que tinha ótimas razões para não fugir com ele da França, que acabara de ser invadida pelos nazistas. Casablanca, apesar de não ser um desses espécimes hollywoodianos com um happy end ruim de doer (pelo contrário! quer desfecho mais brilhante que aquele?), é sim uma obra com um desfecho feliz. Um fim que redime não só o personagem de Bogart, que acaba tornando-se um benfeitor que contribui para a fuga de um luminar do movimento de resistência internacional ao nazi-fascimo. Mas um fim que também redime a moça, que pôde até ser considerada pelo espectador como um adúltera arrependida, uma mulher-perdida que corneou o marido e depois quebrou o coração do amante, mas que acaba tendo seu comportamento explicado, desculpado, angelizado – no fim, ela também é “super do Bem”! Não traiu de verdade o marido: pensava que ele estava morto. Não quis machucar o amante, condenando-o à esperar debaixo da tempestade na estação: mas era impossível partir, tendo descoberto que o esposa, que amava, ressurgia das cinzas, por assim dizer, e readeria ao mundo dos vivos.



Casablanca, além do retrato sócio-político de tempos conturbados, numa cidade marroquina repleta de refugiados, é a descrição de um milagre psíquico: uma terapêutica que se consuma numa completa Redenção do Passado. Quando Bogart diz à Bergman, numa das frases mais antológicas da história da sétima arte, "We'll always have Paris!", ele não está somente sendo um romântico bobalhão, mas está sim dando um testemunho da cura que se operou em sua memória atormentada. Pois quando o filme começa ele não "tinha" Paris: o caso em Paris era um açoite, uma borboada, uma punhalada, um temível esqueleto no armário, uma lembrança gangrenada que ele, se pudesse, preferiria ver amputada.

Se o transportássemos para o mundo imaginado por Charlie Kaufman, ele certamente contrataria a Lacuna Inc. para solicitar a remoção cirúrgica dessa aventura sentimental desastrada, só para ter a glória de sentir "o brilho eterno de uma mente sem lembranças". Ao fim de Casablanca, porém, como efeito do reencontro com a ex-amante, ele "ganha" Paris de volta, com todo seu brilho e frescor, como uma memória digna de ser guardada e louvada. É como se todo o seu passado, que ele antes queria esquecer e manter preso nos porões da mente como uma fera em sua jaula, ressurgisse após um banho redentor brilhando como uma pérola rara. Um milagre que não é dos menores feitos que só o amor, quando aquecido pelo sol da verdade, é capaz de realizar.

DOWNLOAD DA TRILHA SONORA:


DOWNLOAD DO FILME EM TORRENT:
Pirate Bay

sábado, 20 de março de 2010

:: Buk is on the Table ::

"Um homem ou é um poeta ou é um pneu furado". Palavras do grande Poeta com Culhões, Charles Bukowski, figura central deste Born Into This, excelente documentário sobre a vida e a obra do escritor dos bebuns e das sarjetas. Não achou na locadora? Não estresse que a net foi feita pra isso: voilà um tiragosto abaixo e o jantar completo pra baixar for free aqui! Na sequência, a íntegra do poema (aliás genial!) que é citado na cena selecionada.




Born like this
Into this
As the chalk faces smile
As Mrs. Death laughs
As the elevators break
As political landscapes dissolve
As the supermarket bag boy holds a college degree
As the oily fish spit out their oily prey
As the sun is masked
We are
Born like this
Into this
Into these carefully mad wars
Into the sight of broken factory windows of emptiness
Into bars where people no longer speak to each other
Into fist fights that end as shootings and knifings
Born into this
Into hospitals which are so expensive that it’s cheaper to die
Into lawyers who charge so much it’s cheaper to plead guilty
Into a country where the jails are full and the madhouses closed
Into a place where the masses elevate fools into rich heroes
Born into this
Walking and living through this
Dying because of this
Muted because of this
Castrated
Debauched
Disinherited
Because of this
Fooled by this
Used by this
Pissed on by this
Made crazy and sick by this
Made violent
Made inhuman
By this
The heart is blackened
The fingers reach for the throat
The gun
The knife
The bomb
The fingers reach toward an unresponsive god
The fingers reach for the bottle
The pill
The powder
We are born into this sorrowful deadliness
We are born into a government 60 years in debt
That soon will be unable to even pay the interest on that debt
And the banks will burn
Money will be useless
There will be open and unpunished murder in the streets
It will be guns and roving mobs
Land will be useless
Food will become a diminishing return
Nuclear power will be taken over by the many
Explosions will continually shake the earth
Radiated robot men will stalk each other
The rich and the chosen will watch from space platforms
Dante’s Inferno will be made to look like a children’s playground
The sun will not be seen and it will always be night
Trees will die
All vegetation will die
Radiated men will eat the flesh of radiated men
The sea will be poisoned
The lakes and rivers will vanish
Rain will be the new gold
The rotting bodies of men and animals will stink in the dark wind
The last few survivors will be overtaken by new and hideous diseases
And the space platforms will be destroyed by attrition
The petering out of supplies
The natural effect of general decay
And there will be the most beautiful silence never heard
Born out of that.
The sun still hidden there
Awaiting the next chapter.

quinta-feira, 4 de março de 2010

:: O Iluminado ::


:: O ILUMINADO ::
de Stanley Kubrick
(The Shining, 1980)




Na verdade não entendo porque se apela tanto pro "Sobrenatural" em filmes de terror; a Natureza e a Realidade já não possuem um vasto estoque de material horrífico pronto para ser explorado, para o bem do susto e da terrificação do público? Na real, nem mesmo vejo muito sentido na própria palavra "sobrenatural", que me parece vir contaminada com um preconceito idealista/platônico/cristão: aquele de quem julga que existe uma "outra dimensão" que transcende esta que conhecemos, onde viveriam os deuses, os anjos-da-guarda, os capetas, os conceitos eternos e imutáveis, entre outras falcatruas. Pura superstição! E a superstição, dizia Spinoza, é só o "asilo da ignorância", além de ser também uma parteira de medos. Talvez se explique este constante "apelo ao sobrenatural" nos "filmes de medo" por isso, pois: são justamente os supersticiosos as criaturas mais temerosas. E explorar emocionalmente estes temores, brincar com eles, às vezes expô-los ao ridículo ou fazê-los mostrarem sua cara num grito, é uma das tarefas a que o cinema de horror se propõe... É uma hipótese.

Eu nunca consegui curtir a literatura de Stephen King e seus best-sellers furrecas que exploram superstições populares mais para fins de auto-enriquecimento do autor do que qualquer outra coisa. E por muito tempo achei estranho que um artista de tanta magnitude quanto Stanley Kubrick tenha escolhido filmar a obra dum autor deste naipe (não chega nem a ser um pica-fumo...). Ainda mais sabendo que K. trampou sobre material muito mais interessante provido por autores bem mais "refinados" como um Burgess (Laranja Mecânica), um Schnitlzer (De Olhos Bem Fechados) ou um Nabokov (Lolita) --- sem falar que seu filme anterior, Barry Lyndon, era uma adaptação de um romance inglês "clássico" do século 19 escrito por Thackeray.
Mas hoje considero seu Iluminado, como já se tornou canônico, um dos clássicos supremos do cinema de terror. Com uma ressalva: a parte "sobrenatural" de O Iluminado é a que eu gosto menos --- o talento de "vidente" do garotinho ou as "assombrações" que vagam pelo hotel (e em especial na suíte fatídica onde o sangue das gêmeas foi derramado), me fedem muito à superstição barata Kinguiana, material de novelas de susto tosqueira, para serem dignas de Kubrick...


Este, porém, fez de O Iluminado uma obra que retrata horrores domésticos reais que ocorrem em um casamento em crise que vai descambando para a violência extrema, descendo numa espiral demencial. Graças à ausência de Deus, este filme fede à realidade! Descreve de modo eloquente, poderoso e inesquecível o desagregamento psíquico causado pelo excesso de isolamento e por um relacionamento afetivo que se torna envenenado por falta de "arejamento" e "ventilação". Kubrick, enfim, fez um filme que fala profundamente sobre as realidades terrenas, a ponto de ser fácil perdoar os deslizes que o filme dá para a superstição extra-terrena...
Jack Torrance (numa performance sensacional de Jack Nicholson, que sempre dá um bom louquinho [é só ver Um Estranho no Ninho]) é com certeza um dos psicopatas mais notáveis do cinema --- tão memorável quanto Hannibal Lecter. E com este personagem Kubrick prossegue sua investigação sobre a gênese e os comportamentos desviantes de "mentes perversas e sádicas" (tema que já o tinha ocupado em Doutor Fantástico, Laranja Mecânica e Nascido Para Matar) .

>>> OS MALEFÍCIOS DO ISOLAMENTO
Desde a entrevista em que Jack Torrance “vende seu peixe” para os donos do hotel, garantindo que é o cara perfeito pro trampo, percebe-se que a situação em que ele vai se meter já deixou outros homens antes dele com a mente em frangalhos. É uma situação com um imenso potencial de enlouquecer até o mais são e controlado dos homens: morar por 6 meses num imenso hotel vazio, no meio do nada, ilhado por montes de gelo, num local tão inacessível às autoridades que bem poderia ser um mega-iglu na vastidão da Antártida... Quem de nós não ficaria pinéu?!
Aquele hotel simboliza o isolamento absoluto, um ermitério obrigatório, onde não se adquire a sabedoria dum Zaratustra mas onde são geradas reações psicóticas. "The movie is not about ghosts but about madness and the energies it sets loose in an isolated situation primed to magnify them", escreve Roger Ebert. Sim: O Iluminado não nos assusta tanto por causa de suas "assombrações" (que podem ser vistas como meras alucinações dos personagens), mas sim pela assustadora irrupção de violência psicótica real naquela conjuntura tão endoidecente.
Claro que, para qualquer casal, passar por uma experiência dessas é uma prova cruel, já que lança o relacionamento numa espécie de "estado algematório". Em outras palavras, e para usar uma expressão do poeta francês René Crevel, aqueles dois estão "condenados à escravatura recíproca de todos os instantes". Que casamento sobreviveria se os "pombinhos", por mais que se amassem perdidamente, fossem trancados no mesmo espaço físico por 6 longos meses de nevasca, como dois pássaros na mesma gaiola? O que o ocorre é similar ao que rola na clássica peça de Jean Paul Sartre, “Entre Quatro Paredes”, na qual um dos personagens a certo ponto ralha contra a obrigatoriedade daquelas companhias compulsórias com a frase clássica: “O inferno são os outros”...


>>> WRITER'S BLOCK IS THE DEVIL'S PLAYTHING

Supostamente isolado ali para dar à luz alguma obra literária sensacional, Jack Torrance fracassa radicalmente em seus intentos --- e seu pseudo-livro traz somente algumas centenas de páginas onde se lê a mesma frase (“All work and no play makes Jack a dull boy”). Frase engraçada, se não surgisse num contexto tão violento, e que parece apontar para o velho dito popular: “Mãos desocupadas são a oficina do diabo".
Sua pretensão de sentar-se frente à máquina de escrever pelo longo inverno para produzir uma obra-prima literária é talvez mais um sonho de criar sem ter o talento para tanto. Ao invés de se concentrar na sua criação (rascunhando capítulos ou lendo outros autores em busca de inspiração, p. ex.) vemos Jack Torrance num período de completa secura e "apatia" criativa. Não tenho dúvida que isso tenha culpa no cartório na gestação de sua psicose. Esta frustração do artista falhado (e que se entedia no seu fracasso), sua irritação com o surgimento deste writer's block, são outros elementos (fora o isolamento e a crise conjugal) que vão se somando no caldeirão de sua loucura, que lentamente ferve...
Simbólico disso é que ele, que passa os dias tacando uma bolinha de tênis na parede, ao invés de reconhecer-se como único culpado por sua "infertilidade literária", teima em ralhar com a esposa --- como se fosse por culpa dela (de suas intromissões que quebram sua concentração, p. ex.) que o livro não sai da cachola.

>>> CONCERTO DE ALUCINAÇÕES
Em O Iluminado há também uma espécie de concerto polifônico de alucinações, em que cada um dos três personagens principais delira a seu modo --- sendo que são, no caso da esposa e do filho, essencialmente delírios de temor e, no caso de Jack, fantasias sexuais e destrutivas.

Wendy (Shelley Duvall, com seu jeito frágil e temeroso) é quem mais se apavora no filme --- e menos com "histórias de fantasma" do que com as “estranhas transformações”, quase bestiais, que acometem seu marido durante o “exílio glacial”. O filme não nos dá elementos para julgar o tamanho do contraste entre o relacionamento antes da temporada no hotel e a crise conjugal severíssima que se instala ali. Mas, a julgar pelo pavor que Wendy demonstra, algo de muito sensível e delicado foi rompido em sua psique, algum rasgo cruel foi realizado contra a imagem que tinha do marido, a ponto dela, como um animalzinho acuado, procurar defender-se dum homem que se transforma para ela num predador. Poucos filmes que eu conheço demonstram tão bem o quanto o temor é um elemento potencializador da agressividade.

Wendy nos aparece no filme como uma mulher ferida pela selvageria de seu cônjugue, incapaz de suportar por mais tempo uma convivência que tornou-se envenenada, e que teme pela vida de sua cria frente à progressão da “doença” que diagnostica em Jack (mas que talvez seja “amplificada” por sua paranóia: ela imagina que Jack é mais perigoso do que é em virtude de todos os ferimentos que ele andou lhe infligindo, e por isso o ataca fisicamente antes dele ter lhe tocado um dedo, quase que como um revide/represália).

É Wendy quem ataca primeiro, lembram-se? Ao menos o primeiro ataque físico parte dela: sentindo-se ameaçada pelo marido, depois de recuar de costas pelo longo salão, debaixo das "provocações morais" de Jack (“você não tem nenhuma idéia de ética e moral? Não sabe que assinei um contrato que me responsabiliza por este hotel? Não significa nada para você meu dever profissional?”), ela manda uma cacetada na cabeça dele com um taco de baseball, fazendo-o despencar escadaria abaixo. Depois o tranca na despensa e tenta fugir com o filho. O segundo ataque físico bem-sucedido também é dela: uma facada na mão de Jack que, depois de ter destruído a porta a machadadas, tenta girar a chave do banheiro onde ela se esconde.

O personagem da criança também é crucial como uma espécie de “ponto” de onde o temor surge e se espalha como uma epidemia. Privada da convivência com pimpolhos de sua idade, dirigindo seu triciclo por acabrunhantes corredores cheios de eco, o pequeno não tem escolha a não ser virar um joguete de sua própria imaginação. É a criança quem tem “visões” sangrentas, supostamente proféticas, em que uma cachoeira de sangue subitamente jorra por detrás das portas e arrasta todos os finos móveis numa enxurrada vermelha. É ele que imagina “acontecimentos macabros” na suíte 271 e que se depara com as estranhas gêmeas, assassinadas pelo pai décadas atrás no mesmo local, vagando por ali como espíritos zombeteiros de uma casa mal-assombrada...

Também, pudera: se a imaginação da criança é capaz de representar cenas tão horríficas e acabrunhantes, é pois o insensível paizão semeou na mente do pequeno as raízes deste temor. No carro, quando estão chegando no hotel, ele conta a história de um grupo de pessoas que ficou completamente “ilhada” por uma tempestade de neve e que teve que recorrer ao canibalismo para sobreviver. A mãe protesta contra a atitude do marido de compartilhar um conto tão da cripta com o fedelho, mas o pai, desdenhoso e irônico, brinca: “Não se preocupe, ele já viu tudo sobre canibalismo na televisão”.

Jack também delira, mas seus delírios são menos paranóicos e mais hedonistas, revelando suas tendências para o alcoolismo e o adultério, sem falar em seus temores quanto à degenerescência da mulher. Ele sonha ser o predileto do bartender, a quem servem-se uísques gratuitos. Fantasia com uma mulher nua e deslumbrante, que emerge da banheira e o convida, sem palavras, a usufruir de seu corpo. Ele sonha com uma “tirania” de seu poder e de seus caprichos, em que a esposinha submissa ficaria longe do seu sagrado “palácio de trabalho” e acataria todas as “medidas corretivas” que ele tenciona lhe aplicar.

>>> COMPLEXO DE ÉDIPO (DE NOVO NÃÃÃÃO!)

Também me parece que um certo desconforto angustioso surge no filho em sua relação com o pai e está na gênese do enlouquecimento coletivo que se processa ali. Talvez seja o Complexo de Édipo, apesar de ser já um clichêzão querer apelar mais uma vez para o “ás na manga” de tantos psicanalistas para explicar as tretas familiares. Mas persigamos a hipótese: talvez o menininho, muito afeiçoado à sua mãe, vendo seu pai como um rival um tanto "bruto" (sabe-se ainda que ele é um ex-alcóolatra e já machucou a criança no passado...), manifeste sua predileção pela mãe a ponto de irritar o seu "velho" nas profundezas de seu ser.

Muito simbólico disso é aquela terrificante perseguição final, em que a criancinha corre pelas vielas de gelo do labirinto, perseguida por um Pai-Monstro, quase um Bicho-Papão, com uma machadinha afiada em punhos, e que vem bufando como um búfalo, pronto para o infanticídio... E não tenho dúvidas de que, naqueles momentos terríveis, o que o pequeno mais queria reencontrar era o conforto do regaço materno. Se, na formulação clássica do Complexo de Édipo, é a criança quem deseja assassinar o pai para ter o amor da mãe inteiro para si, em O Iluminado ele se manifesta como um ódio do pai dirigido contra a criança que inconscientemente o odeia. Há poucas cenas na história do cinema, que eu me lembre, que mostrem de modo tão angustiante o "Labirinto da Família" quando este atinge perigosos extremos de demência.

Kubrick explora a imagem do labirinto de modo brilhante --- não só literalmente, como um espaço físico onde cenas importantes se desenrolam, mas metaforicamente. Uma cena chave é aquela em que Jack observa, soberano e patriarcal, uma maquete do labirinto. A câmera de Kubrick penetra nele e, num truque de magia fílmica digna de Mélies, somos levados ao labirinto real onde Wendy e a criança, no "idílico" início das férias no hotel, acabam por se perder. O Overlook Hotel inteiro, conforme o filme progride, vai se tornando um imenso labirinto onde a esta família em crise vai se perder...


>>>> METÁFORA DO MASSACRE INDÍGENA?

Pra muitos vai soar como pura forçação-de-barra e invencione de crítico maluco, mas há quem afirme de pé-junto que O Iluminado é na verdade uma imensa metáfora sobre o genocídio dos Nativos Americanos que foram dizimados quando o EUA se constituía como nação.

É a tese sustentada num artigo do San Francisco Chnonicle, de 1987, em que Bill Blakemore argumenta (de modo até bem convincente) que a obra de Kubrick está repleta de alusões cifradas ao sangrento passado americano e que a obra é sobre "o assassinato de uma raça e as consequências deste assassinato".

Lembremos que, segundo o filme nos conta, o gigantesco e luxuoso hotel foi construído sobre "an indian burial ground" (um cemitério indígena) e que sofreu ataques dos "selvagens" quando estava sendo construído. Os chiquérrimos bailes do 4 de Julho que se desenrolaram naquele espaço são outra alusão a um episódio histórico - o Dia de Independência dos Estados Unidos - que possui um significado não muito celebratório para os indígenas. Isso seria um modo poético de Kubrick apontar que toda a suntuosidade e luxo dos edifícios americanos ergue-se sobre os ossos dos índios que foram assassinados. A fachada de alta civilização e de nobreza só esconde a barbárie que a precedeu. Walter Benjamin: "Todo monumento da cultura é um monumento da barbárie".
Quando o menino vê aquela enxurrada de sangue descendo pelas fendas do elevador e tornando-se um caudaloso rio que banha os móveis e tapetes finos do Overlook Hotel, todo decorado com arte indígena, talvez a "percepção extra-temporal" do pimpolho-vidente não seja exatamente profética, como temos a tendência a achar, mas muito mais uma "vidência do passado". "We never hear the rushing blood", escreve Blakemore. "It is a mute nightmare. It is the blood upon which this nation, like most nations, was built".

É bem significativo, também, que esta hospedaria-para-ricaços, este monolítico hotel 5-estrelas, chame-se "Overlook" --- palavra que pode significar uma "passada de olhos" ou uma "panorâmica" (sobre a paisagem, por exemplo), mas que também possui o significado de algo não-notado, reprimido, recalcado, subestimado.

Subestimação e recalcamento: foi justamente o tratamento recebido pelos horrores cometidos contra as populações nativas da América do Norte na época da colonização inglesa, como bem aponta Blakemore: "The Shining is explicitly about America's general inability to admit to the gravity of the genocide of the Indians - or, more exactly, its ability to 'overlook' that genocide."
E aí, fez algum sentido?
assista o making of:
baixe a trilha sonora:
Ligeti, Bartók, Penderecki etc.
--- 84 MB, 15 faixas ---
http://www.mediafire.com/?gwynl3ri3lz