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sábado, 27 de março de 2010

:: Leia o 1o Capítulo de Budapeste... ::

BUDAPESTE
Chico Buarque

Devia ser proibido

Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase. . . havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que freqüento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha. . . E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai.

Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local. Aumentei o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar para casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo. Eu deveria estar com sono, mas não estava, então enchi a banheira, espalhei uns sais de banho na água morna e me distraí um tempo amontoando espumas. Estava nisso quando, zil, tocaram a campainha, eu ainda me lembrava que campainha em turco é zil. Enrolado na toalha, atendi à porta e topei um velho com uniforme do hotel, uma gilete descartável na mão. Tinha errado de porta, e ao me ver emitiu um ô gutural, como o de um surdo-mudo. Voltei ao banho, depois achei esquisito hotel de luxo empregar um surdo-mudo como mensageiro. Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiornie que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil. Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender.

Já passava de uma quando fui para a cama nu, religuei a tevê, e a mesma mulher da meia-noite, uma loura com maquilagem pesada, apresentava uma reprise do jornal anterior. Percebi que era uma reprise porque já tinha reparado na camponesa de rosto largo que encarava a câmera com os olhos saltados, empunhando um repolho do tamanho da sua cabeça. Balançava ao mesmo tempo a cabeça e o repolho para cima e para baixo, e falava sem dar trégua ao repórter. E espetava os dedos no repolho, e chorava, e esganiçava a voz, e tinha o rosto cada vez mais vermelho e inflado, e enterrava os dez dedos no repolho, e agora meus ombros se retesavam não pelo que eu via, mas no afã de captar ao menos uma palavra. Palavra? Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca. Aos meus ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro. E o avião reapareceu na pista, numa imagem distante, escura, estática, que salientava mais ainda a voz masculina da locução em off. A notícia do avião já pouco me importava, o mistério do avião era ofuscado pelo mistério do idioma que dava a notícia. Vinha eu escutando aqueles sons amalgamados, quando de repente detectei a palavra clandestina, Lufthansa. Sim, Lufthansa, com certeza o locutor a deixara escapar, a palavra alemã infiltrada na parede de palavras húngaras, a brecha que me permitiria destrinchar todo o vocabulário. Ao jornal sucedeu uma mesa-redonda cujos participantes pareciam não se entender, depois um documentário sobre o fundo do mar, com peixes transparentes, e às duas em ponto retornou minha amiga maquilada, que envelhecia de hora em hora. Meteorologia, Parlamento, bolsa de valores, estudantes na rua, shopping center, camponesa com repolho, meu avião, e já me arriscava a reproduzir alguns fonemas a partir de Lufthansa. Aí entrou na tela uma moça de xale vermelho e coque negro, ameaçou falar espanhol, zapeei no susto. Caí num canal em inglês, mais um, outro, um canal alemão, um italiano, e de volta à entrevista com a dançarina andaluza. Cortei o som, me fixei nas legendas, e observando em letras pela primeira vez palavras húngaras, tive a impressão de ver seus esqueletos: ö az álom elötti talajon táncol.

Às seis da manhã, quando o telefone deu o despertar, eu estava sentado na ponta da cama. Logo recitaria em uníssono com o locutor a notícia do avião, uns bons vinte segundos de húngaro. Feito o quê, vesti com desgosto a roupa da véspera, porque só tinham liberado as bagagens de mão, e desci para o lobby, que estava uma babilônia. Quanto mais se desentendiam os vários idiomas, mais se exaltavam os protestos contra o terrorismo, contra a companhia aérea, contra os extras que o hotel cobrava. As vozes só serenaram quando foi aberto o restaurante, para o café-da-manhã gratuito, mas aí o estrago estava feito; fui buscar minhas palavras húngaras na cabeça e só encontrei Lufthansa. Ainda tentei me concentrar, olhei para o chão, andei de lá para cá, e nada. No fundo do salão avistei uma roda de garçons falantes, e pensei que poderia ao menos filar umas palavras deles. Mas ao me perceberem, fizeram brusco silêncio e me intimaram a sentar com três grandalhões de cara eslava, numa mesa cheia de farelos, cascas de frutas, cascas de queijo, mais quatro vidros de iogurte raspados. Restavam intocados na cesta de pães uns similares de broas avermelhadas, na certa uma especialidade nativa, que provei com cautela e por educação. A massa era leve, de um sabor adocicado que com o tempo deixava uma lembrança amargosa. Comi a primeira, a segunda, acabei comendo as quatro porque estava faminto, e a coisa não era de todo ruim, se engolida com chá. Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro. In Hungarian, insisti, e desconfiei que eles tinham ciúme de sua língua, pois o maître não se deu por achado; fez um ô gutural, despejou no meu prato um monte de broas, rejeitadas pelas mesas vizinhas, e bateu as mãos para me apressar, fazendo ver que o restaurante estava vazio. No lobby, uma aeromoça com uma lista e um walkie-talkie na mão gritava Mister Costa! Mister Costa!, e eu era o último a me juntar à legião que se afunilava na esteira rolante, a dez metros da porta do hotel. Deslizamos até o portão de embarque através de um longo e cintilante território livre, um país de língua nenhuma, pátria de algarismos, ícones e logomarcas. Na Polícia Federal um funcionário bigodudo folheava com preguiça cada passaporte, que devolvia sem carimbar. Esvaía-se na pessoa dele minha esperança de ouvir a derradeira voz de um húngaro, pois de sua boca não saía um bom-dia, um muito obrigado, um boa viagem, que dirá um volte sempre. Quem sabe como compensação, ao me instalar na poltrona da classe executiva, me voltou à língua o sabor do pão de abóbora, e agora de novo ele era doce. Apertei o cinto, fechei os olhos, achei que não ia dormir nunca mais na vida, tomei um sonífero e o avião decolou. Cheguei o rosto à janela, estava tudo nublado, a pílula fazia efeito. Quando se abriu um buraco nas nuvens, me pareceu que sobrevoávamos Budapeste, cortada por um rio. O Danúbio, pensei, era o Danúbio mas não era azul, era amarelo, a cidade toda era amarela, os telhados, o asfalto, os parques, engraçado isso, uma cidade amarela, eu pensava que Budapeste fosse cinzenta, mas Budapeste era amarela."

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