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domingo, 20 de fevereiro de 2011

<<< Cisne Negro (Black Swan, Darren Aronofsky, 2011) >>>


"Somente quem tem o caos dentro de si
pode dar à luz uma estrela bailarina."
Nietzsche (Assim Falou Zaratustra)


[1] A oposição entre o cisne branco e o negro me fez pensar nos princípios apolíneo e dionisíaco tão matutados por Nietzsche. A "metamorfose" que é exigida de Nina para que possa encarnar o cisne negro - luxuriante, pródigo, arrebatador... - exige uma injeção de "êxtase dionisíaco" no sangue em doses cavalares. Ela precisa entrar em guerra contra si mesma e suas tendências apolíneas ("comportadinhas"): deixar de ser frágil, resignada, acovardada, ascética, metódica, auto-controlada, excessivamente racional, e permitir-se uma fecunda "loucura" auto-transformadora. Como bem sabem os poetas, às vezes enlouquecer é enloucrescer. Nada mais simbólico disso do que a poética imagem das penas negras emergindo das feridas sangrentas. O parto de Dionísio não se dará sem um pouco de derramamento de sangue!...

[2] Outra: me comoveu a celebração dos poderes redentores das rupturas com a normalidade. A rebelião, no caso de Nina, é necessária para seu amadurecimento, para que ela rompa com seu infantilismo kitsch: ela só poderá encarnar o cisne negro depois de jogar no lixo, num arroubo de rebeldia adolescente tardia, os bichinhos de pelúcia e o quartinho de filhinha-da-mamãe, todo pink. A criancinha trêmula vai caindo por terra conforme exige-se dela um "salto" psíquico que a tornaria apta a encarnar no palco algo tão oposto ao que ela é. Nina vai ter que mergulhar no pântano da vida podreira - raves regadas a ecstasy e sexo casual, um meio social onde vige brutal competição pela fama... - para enterrar a boa-moça carolinha que era. Antes conformada a um papel submisso em relação à mãe superprotetora e control-freak, Nina enfim embarca nos turbilhões da vida adulta e nos mistérios da expressão artística genuína. Depois do conforto branco do ninho, a aventura sombria e terrificante do vôo solo.

[3] O contraste entre os dois cisnes é também símbolo para uma diferença de atitude sexual: o cisne branco é recatado, reprimido, virginal; o negro é experenciado, libertino, sensual, sem travas. Uma das primeiras "lições de casa" que Leroy, o diretor do espetáculo, faz à sua discípula é: "masturbe-se!"  Ele a fulmina com questões constrangedoras ("você é virgem? gosta de fazer amor?"), como se sugerisse que ela só poderia encarnar a personagem se pudesse se tornar menos "coroinha", se desse vazão aos seus charmes eróticos sub-utilizados, se encarnasse a femme fatale sedutora e impiedosa... Também Lily, quando leva Nina à balada, faz de tudo para que a amiga aprenda a tirar a calcinha com menos encanação ("live a little!"). A mensagem, em suma, seria: a libertação psicológica passa necessariamente pela liberação da piriquita. Wilhelm Reich não discordaria.


[4] Gosto que o filme, apesar de trabalhar intensamente com a metáfora císnica, opondo de modo enfático o "jeito-de-ser" do cisne branco e do negro, não faça disso um maniqueísmo. Dizer que a desrepressão da sexualidade, a rebelião contra a família e o aventurar-se no vasto caótico mundo é entrar para os domínios sombrios do "Mal" é apenas um preconceito cristão, como poderia dizer Nietzsche; pode ser que muito mais "sombrio" e "maléfico" do que a encarnação do cisne negro seja a resignação ao destino de cordeirinho inofensivo, que carrega mudo suas cruzes. A força transbordante e impetuosa do cisne negro que dança em êxtase é muito mais gloriosa do que a  desgraçada queda suicida do cisne branco. A ascensão entusiasmante de Dionísio em contraste com a melancólica aspiração pelo chão do Cisne Cristão. Gosto que o filme de Aronofsky, fiel a um certo nietzschianismo, não sustente que o branco é a encarnação do Bem e o negro do Mal; ao contrário, sugere-se que o Artista realmente expressivo nasce de uma capacidade para sintetizar estes dois princípios, transitar entre eles, numa circulação ousada pelos domínios de Apolo e Dionísio, de Cristo e de Baco, de sofrimento e de êxtase... Não se trata de escolher um lado na exclusão do outro, mas ter a disponibilidade para ser habitado tanto por cisnes brancos quanto por negros... O homem integral, mescla de anjo e demônio, santo e besta, nunca estacionado em nenhum desses pólos, sempre atraído por ambos, cambaleia pela Terra no desnorteio desses obscuros magnetismos...



[5] Prato cheio para psicanálises, o filme decerto descreve uma personalidade sob um grau de tensão descomunal, resvalando para a alucinação, a esquizofrenia, a psicose, a auto-mutilação... Me fez refletir: algum grande artista pode ter temor da insanidade, ou este "medo de ficar louco" é justamente aquilo que impede que, nas "pessoas normais", o artista venha à tona? Me lembro do príncipe Míchkin de Dostoiévski, em seus ataques epiléticos em momentos de hiper-sensibilidade e de transe místico... e de Artaud, de Van Gogh, de Arnaldo Baptista, do próprio Nietzsche... Tantos indícios de que grandes mananciais artísticos jorram quando o sujeito abandona sua "normopatia", enfrenta seu pavor de enlouquecer e se dirige para os abismos! Me parece que Black Swan simboliza um pouco isto: a tentativa de auto-transcendência, a luta por ascender ao máximo de expressividade artística, através de um perigoso (mas potencialmente frutífero!) flerte com a insânia.

[6] A confusão psíquica de Nina é muito bem explorada através das inserções de alucinações, fantasias, atos falhos. Um paralelo com Clube da Luta é facilmente traçável: Tyler Durden  também era uma espécie de cisne negro (todo ímpeto, arroubo, catarse e sex appeal) que incendiava a pasmaceira acomodada e rotineira do personagem de Edward Norton (aparentemente bem adaptado à sociedade de consumo, produtivo, funcional...). O "eu real" e o "eu ideal" , a máscara social e as obscuras e secretas tendências íntimas, mesclavam-se na percepção subjetiva até que não se sabia mais quem agia, se o homem ou sua sombra imaginária... Também Nina passa o filme inteiro assombrada pela presença fantasmática de um "ideal" que ela sente-se impelida a encarnar. Se ela não se tornar semelhante ao cisne negro, ideal dionisíaco e tyler-durdeniano, ela não só deixará de se alçar aos píncaros da celebridade, sendo substituída e relegada, como despencará em sua própria auto-estima e se considerará um completo fracasso humano. O filme de Aronofsky, apesar de seus elementos trágicos, não parece querer que derrubemos lágrimas pela morte do cisne branco, mas  muito mais que nos inflamemos de admiração pela auto-superação da dançarina que, em heróica conquista, ao cabo de duros sacrifícios, encarna um deslumbrante e fatal Cisne Negro.

[7] Enloucrescer é viver!


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7 comentários:

  1. Pareceu que no filme o diretor da companhia tenta extrapolar essa "perfeição" que ela buscava (e até alcançava quando interpretava o Cisne Branco) através apenas da técnica e dos treinos supervisionados pela mãe. Ele busca transcender a "racionalidade" com que ela encara o balé (e a vida também) através do sexo.

    Não que o sexo seja a única porta de saída para a vida de caxias que ela levava. Mas achei que o final, com ela caída, sangrando, em êxtase pelo sucesso de sua interpretação, remete muito a perda da virgindade, o rompimento do hímem, a transformação dela em garota para mulher.

    Não é a toa que a maneira como o Aronofsky dirige a sequência dela dançando como Cisne Negro na noite do debute, traz uma intensidade semelhante a um orgasmo. Inclusive, o momento em que ela sai brevemente do palco, com os olhos vermelhos e com respiração ofegante, é de uma sexualidade estranhamente bela.

    Gostei muito do filme. E o texto é muito bom! Troca de idéias sobre filmes são ótimos por nos trazer novas idéias.

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  2. Vou trabalhar esse filme na minha tese...

    Abraço

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  3. Muito bem apontado, Roger. O cisne branco manchado de sangue talvez remeta mesmo a um rompimento de hímen, a um amadurecimento que não se atingiria sem um pouco de dor... "no pain, no gain". É como se o filme descrevesse a jornada que leva uma garota frígida e tímida, que ainda não tinha se apoderado de seu próprio corpo, transformada numa exuberante fonte de sensualidade transbordante. Até mesmo a concepção que ela tem do que significa a "perfeição" sai transformada: não mais o controle total dos próprios movimentos, a performance impecável e irretocável, mas sim o êxtase, o transe, a entrega... Por isso eu "viajei" no texto que o "arco" que ela descreve vai do cristianismo ao paganismo, de Cristo a Dionísio... :)

    Thiago: interessante! Fiquei curioso pra saber mais o que vc vai investigar nessa tese. Se tiver a fim, conte mais: educmoraes@hotmail.com.

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  4. que inveja! Gostaria de ter escrito isso, haha. Eu procurava palavras pra defender Cisne Negro de acusações infatis que ouvi por aí, agora encontrei.

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  5. Considero este blog um achado. Difícil encontrar autores com tanta perspicácia, quando o assunto é estética. A análise estética atualmente se restringe ao apontamento de fatores formais (apolíneos), enquanto que o transbordamento de vida, a intensidade de paixão e o sentido filosófico, psicológico profundo são ignorados ou reduzidos a estereótipos ou emocionalismos. Sua abordagem é ótima, e seu verbo poderoso. Obrigado.

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  6. Caro Isaac, agradeço pelas tuas palavras tão lisonjeiras e tonificantes e que são um incentivo a mais para prosseguir com este projeto (que às vezes fica abandonado às moscas por algumas semanas...) de unir cinema e filosofia - e usando não somente as lentes de Apolo, mas também a embriaguez de Dionísio. Fico feliz que tenha gostado deste estetoscópio estético aplicado às entranhas destas obras de arte e te convido a voltar sempre e prosseguir deixando "pegadas" e impressões sempre que quiser. Obrigado e até mais!

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  7. Eduardo, passeando pelo Face descobri seu blog e como ele trata tão profissionalmente temas culturais, passou a meu favorito. Tenho a mania de analisar alguns filmes que gosto também e posso concordar em tudo com o Isaac Sousa acima. Apesar que o meu foco fica mais do cotidiano, numa fala mais informal, como se pode ver na publicação sobre O Cisne Negro que fiz (http://aposentadativa.blogspot.com.br/search?q=cisne+). Ler seus escritos vem ampliando meu referencial. Agradecida.

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