Páginas

domingo, 28 de agosto de 2011

<<< A Árvore da Vida (de Terrence Malick, 2011) [2nd try!] >>>



(PROLEGÔMENO: Ontem, 27/08/2011, très fumée, sensibilidade amplificada pelo THC, fui conferir este filme indizivelmente belo. E que ecoa... ecoa em nós por muito tempo depois dos créditos finais. Saindo do cinema em estado de graça, dando muita razão à Cannes por tê-lo laureado com a Palma de Ouro, bati com a cara nesta bagaça tão desagradável chamada São Paulo. Dois tweets, quando cheguei em casa:


 Eduardo Carli 

 Eduardo Carli 


Lembrei-me do Joseph Campbell, em uma das entrevistas d'O Poder do Mito, quando ele diz que a experiência sublime vivenciável num templo de meditação é completamente destroçada quando você vai encarar uma grande metrópole capitalista. A Árvore da Vida é menos um filme que um templo de meditação. E transpor para palavras esta vivência é algo que sinto, de início, condenado a um certo fracasso. Ainda assim, há que se tentar, mesmo o impossível. Eis, pois, alguns rascunhos preliminares sobre um filme que transcende em muito as míseras palavras que possamos rabiscar sobre ele.)

Uma oração é sempre um monólogo. Para que se tornasse diálogo, seria preciso que Deus existisse. Um dos males das demandas emocionais feitas a um interlocutor imaginário é esta: amigos imaginários não retornam ligações. "Onde é que você estava?", pergunta-se a mãe enlutada para os céus silentes, querendo saber o porquê da morte do filho de 19 anos. Mais que isso: quer saber como podem coexistir na mesma realidade estes dois fenômenos tão contraditórios, a morte absurda dos que amamos e uma suposta divindade benigna que deveria fazer o serviço de velar pela felicidade de suas criaturas prediletas. É o "por que me abandonastes?" de Cristo em sua cruz revisitado, vezes e vezes sem conta. E a sensação de abandono não cessará até que cessemos de pedir do Cosmos que nos seja um Pai: não há velhinho de barbas brancas e super-poderes redentores, morando nas nuvens e cuidando de seus filhinhos; o que há no céu são supernovas explodindo, matéria sendo assada na fornalha das estrelas, luz viajando pelos espaços silentes... uma imensidão que não fala.
Malick construiu boa parte de seu filme com retalhos de orações. Mãe e filho, cada um a seu jeito, conversam com o "Altíssimo". Mas o que se escancara nestes discursos são desejos e angústias humanos, sem que haja jamais nenhuma intervenção divina. O Feuerbach, filósofo alemão lido e criticado por Marx, escreveu em A Essência do Cristianismo aquele que considero um dos melhores livros sobre religião já escritos. Ali, a prece é considerada como uma confissão humana de desejos íntimos, um meio de acesso à verdade das ânsias humanas mais recônditas. Ao sentirem-se em estado de radical dependência e temor em relação a poderes superiores, que podem esmagar-nos impiedosamente, as pessoas inclinam-se à fé e pedem clemência aos céus. Fazendo-o, revelam mais sobre a condição humana do que sobre os atributos divinos. Feuerbach: uma oração é um discurso que deve ser interpretado com a chave da antropologia, e não da teologia.

"Please, God, kill him. Make him die." Assim o filho faz sua prece, pedindo ao Pai do Céu para ver-se livre de seu pai na terra. É o Complexo de Édipo, este item já tão massacrado e criticado da psicanálise freudiana, recebendo um outro tratamento. Malick não é simplista: ele põe em cena, de fato, uma criança que, chegando à puberdade, passa a experimentar culposos desejos em relação à sua mãe (lembrem-se daquela cena em que entra de fininho no quarto da mãe para acariciar camisolas e roupas íntimas, para depois, num transe, ir lançar às águas de um riacho o objeto que lhe despertou desejos tão feios...). O pai, militar durão que aposta numa educação autoritária e não tem muito jeito para ternurices e agrados físicos, soa como um ditador do lar que impede a casa de ser um ninho da alegria, da espontaneidade criativa e da partilha de amor (tão odiada é esta figura de autoridade que, a certo momento, o filho, vendo o pai deitado debaixo do carro, pensa em esmagá-lo debaixo do peso; até olha para os lados checando se haveriam testemunhas; acaba por desistir e por pedir em oração que seu desejo assassino se realize).

Malick soube fazer uma espécie de "drama doméstico" ímpar: ao invés de fazê-lo se desenrolar no microcosmo familiar, como em Mike Leigh ou John Cassavetes, ou de ambientá-lo na moldura de uma situação social mais ampla, feito Spike Lee, nos dá a sensação de que estamos observando relações humanas cujo palco é nada menos que o Universo. Jamais Malick tinha feito filme tão ambicioso e grandioso, onde tudo é amplificado e magnificado até atingir, por assim dizer, uma "dimensão cósmica". E me parece até que  A Árvore da Vida, apesar de ser um filme aparentemente a-político, possui uma janela aberta para a Utopia. 

Através da idealização da figura feminina, tornada eficaz pela linda interpretação e presença da belíssima Jessica Chastain, Malick sugere (sem pregação e com tranquilidade) que é preciso "femininizar" nossa cultura, pôr mais yang no nosso yin, mais sensorialidade em nosso racionalismo, mais emoção na nossa razão instrumental, mais doçura em nossa testosterona e mais amor em nossas guerras cotidianas. Os senhores da guerra, os que ordenam bombardeios, os que lutam nos campos de batalha, são sempre homens. A figura paterna dominadora, que manda que os filhos se calem perante à força do chefe e que pune o mínimo rascunho de rebeldia, tem que cair. Um certo heroísmo serve de aura à rebeldia do filho que taca pedras nos vidros dos vizinhos, perambula pela cidade sem freios e confronta a autoridade paterna que a mãe é demasiado dócil para peitar. Mas esta não é uma rebeldia semelhante àquela de Martin Sheen em Badlands - Terra de Ninguém, primeiro filme de Malick, onde os protagonistas saem por aí, em transe psicótico, matando gente à esmo. Aqui a rebeldia é mais sábia: é a expressão de uma vida cuja essência é uma vontade de expansão e de expressão, um conatus (Spinoza) ou uma vontade de Poder (Nietzsche) que não pode ser barrada e obstacularizada sem que surja conflito, cisão, porrada. 

O personagem de Sean Penn, entristecido em meio ao mundo artificial criado pelos humanos, melancólico mesmo diante dos mais imponentes arranha-céus, lamenta ver uma humanidade dominada pela ganância e que perdeu o contato com a Natureza que a circunda. E a palavra religião, é sempre bom lembrar, vem do latim religare: serve como religação do Homem com aquilo que o transcende. Por isso, num certo sentido, o filme de Malick trabalha tentando sanar aquela "crisis of perception" [crise da percepção] de que nos fala Ponto de Mutação (Capra). Tão preocupados estamos em acumular capital que nos esquecemos de contemplar o cosmos. Tão viciados estamos em acreditar nas lorotas das religiões organizadas que não nos entregamos mais à experiência imediata de conexão com o Universo. Tão corrompidos por uma cultura de competitividade e dominação que nem suspeitamos que a fragilidade admitida pode ser fonte de laços de amizade e que cooperar é bem mais inteligente do que saltarmos uns sobre as carótidas dos outros. 

A Árvore da Vida está mais pra ayahuasca que pra hóstia; mais para Gaia que para Javé; mais para hinduísta que para cristão. É um manifesto poético-religioso dos mais lindos que o cinema já cometeu, algo digno de Tarkovsky, Dreyer ou Von Trier fase-Ondas do Destino. É um filme cujo desejo supremo parece ser espalhar encantamento sobre tudo aquilo que nós, esta trupe de cegos e loucos que vagam vendados pelo planeta, negligenciamos. Tal como um girassol tem tropismo pelo Sol, devemos nós ter um tropismo pelo cosmo: de consciências boquiabertas diante da imensidão de tudo, devemos quedar silentes, certos de que a palavra Deus é uma completa miséria quando se trata de descrever verbalmente as verdades complexíssimas e múltiplas da Matéria. 

2 comentários:

  1. "está mais para ayahuasca que para hóstia."

    Hahahaha. Muito bom! Não vi o filme ainda, mas pelo que tenho lido parece que é isso mesmo.

    ResponderExcluir
  2. Boa análise desse filme belíssimo, que por mais que tentemos explicar, deve ser sentido.
    Quem quiser ver Deus numa sala de cinema, não pode perder.

    ResponderExcluir