“I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.”
(Frida Kahlo)
Há um quadro de Frida Kahlo (1907-1954) que acho particularmente perturbador. A perturbação só aumenta quando sabemos da história de vida da pintora mexicana, que, se foi repleta de experiências intensas e ocorrências pitorescas, também não teve escassez de amargores e feridas. Frida teve a coluna seriamente lesionada, na juventude, num acidente de ônibus. Não ficou paraplégica por um triz. Anos depois, teve que ver aquele que seria seu primogênito no formol: feto abortado de uma mãe que nunca se tornaria. Mais tarde na vida, um de seus pés, gangrenado, precisou ser amputado. Naquela obra perturbadora de que eu falava, Frida pinta seu corpo cravejado por pregos, enquanto seu rosto, com uma expressão extremamente grave, é banhado por lágrimas torrenciais. As célebres sobrancelhas contínuas desenham quase uma gaivota sobre seus olhos. No local onde deveria estar a coluna vertebral, ela pinta, fazendo uma metáfora visual extremamente poética (e extremamente dolorida), uma dessas colunas de concreto greco-romanas concebidas para sustentar altos edifícios - mas ela está arruinada, roída pelo tempo ou por algum terremoto. A tristeza por sentir que seu alicerce está em ruínas, que sua própria coluna não mais a sustenta de pé, extravasa de seu mundo interior, incontenível como uma tempestade, e carrega o canvas com angústia. "Mas pra que preciso de vocês, pernas, se tenho asas que me permitem voar?" - tenta ela consolar-se. Mas antes de morrer, pede que seu corpo seja cremado e escreve:“I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.” Ao modo budista, ela possui apenas a esperança e o desejo de que não exista renascimento e que este corpo tão dolorido possa encontrar seu descanso eterno nas tranquilas pradarias do nada.
Frida, porém, não é uma mulher do queixume, da histeria, da lamentação estéril. Sua vida transposta para o cinema também aparece repleta de excitação, ousadia, experimentação, exuberância e beleza. Não há nada de Maria do Bairro naquela mexicana cheia de vitalidade e espírito, que sabia enxugar uma tequila, cantar e dançar nos cabarés e chegou a experimentar aventuras sexuais das mais variadas, das lésbicas às extra-maritais, das inter-raciais às entre-gerações, chegando a ter inclusive o Trotsky em sua cama. Se há algo de heróico neste destino, talvez esteja principalmente no fato de que esta é uma mulher que não se deixou desanimar pelos golpes brutais que a vida lhe impôs sem que ela os merecesse. Eis o mundo, algo que fere inocentemente, que mata sem culpa, que machuca sem querer, e não há como viver uma vida plena sem o reconhecimento destas múltiplas (e sublimáveis) imperfeições dele. O mundo pode até nos rasgar a carne e nos levar uma perna, mas a dor que sentimos não nos condena ao silêncio, nem necessariamente implica na morte do humor: podemos expressar a dor, ou mesmo rir dela, e, com isso, tornar sublime ou deleitável o que talvez, se nos calássemos, não passaria de uma triste aquiescência diante da bruteza de uma Natureza indiferente. A arte de Frida, me parece, é ao mesmo tempo um protesto e uma celebração da condição humana: um protesto diante da dor imerecida, do sofrimento dos inocentes, das injustas feridas infligidas por forças brutas; mas também uma celebração da "pulsão de primavera" que faz com que nasçam flores na terra onde depositamos nossos cadáveres.
Crianças futuras vão brincar entre as flores dos jardins sob os quais nossos ossos vão estar a descansar.
Há uma cena que acho particularmente emblemática no filme de Julie Taymor e que, me parece, passa a essência de Frida Kahlo: Diego Rivera, tempos depois de conhecer sua futura esposa, quando estão prestes a fazer amor pela primeira vez, é alertado por Frida: "tenho uma cicatriz". Pode-se notar na expressão de Salma Hayek a apreensão, a temerosa ansiedade, enquanto ela vai sendo despida e aguarda o olhar de Diego e a resposta afetiva que o acompanhará. Diante de uma cicatriz, as mais variadas respostas emocionais podem emergir, a maioria delas, imagino, desprazeirosas: uma certa "repulsa" diante do espetáculo da carne macerada, ou uma certa angústia frente à uma prova viva da fragilidade dos corpos e das marcas que os choques e acidentes podem deixar permanentemente nela, ou um calafrio ou arrepio de temor típico de quem imagina "ah! se acontecesse comigo..." Diego Rivera, porém, beija a cicatriz de Frida Kahlo e lhe diz que ela, Frida, é perfeita. Não é à toa que estes dois destinos se entrelaçaram tão intimamente, apesar dos percalços, do divórcio, das tretas, dos estranhamentos: não é qualquer dia que encontramos alguém que nos beije as cicatrizes e que saiba amar-nos como somos, com todas as imperfeições incluídas.
A arte de Frida nos convida a amar o imperfeito, compadecer dos sofrimentos imerecidos, ajudar os camaradas em apuros, marchar nas ruas ao lado dos oprimidos e celebrar, aqui-e-agora, os poderes criativos destes mortais que somos enquanto não nos tornamos ainda os mortos que seremos.
Los Angeles, 2019. Num planeta que parece afundado em trevas eternas, com ruas iluminadas só por letreiros de néon, mega telões publicitários e faróis de automóveis voadores, perambula o solitário exterminador de replicantes Deckard (Harrison Ford). A terceira rocha após o Sol, agora não mais o único planeta habitável da Via Láctea, está superpovoada e imunda, repleta de mercados caóticos onde japas, egípcios, árabes e cyberpunks se misturam na salada de frutas do pós-Globalização Total. Com o desenvolvimento técnico e científico, os progressos da genética eugênica e o domínio enfim conquistado do espaço exterior, a humanidade terráquea se locomove em foguetinhos, mora em arranha-céus imensos, numa cena urbana totalmente verticalizada, e já partiu inclusive em uma empreitada de imperialismo inter-estelar, tendo instalado colônias em outros planetas (mais de 25 anos depois, o Avatar de James Cameron exploraria temática semelhante na invasão imperialista do planeta Pandora dos Navi, mas com resultados artísticos pífios quando comparados com o clássico de Ridley Scott). Apesar de tudo isso, a humanidade ultra-tecnológica não venceu nem a ganância, nem a destruição ambiental, nem a guerra civil, nem a mortalidade.
Uma raça de seres artificiais – os replicantes – foi criada à imagem e semelhança do homem (coitados!) pela Tyrell Corporation, mega-corporação capitalista que vende seus homens-máquina para trabalhar como escravos na “gringa”. Nos outdoors de uma Terra que se assemelha a um formigueiro e que fede à anarquia e decadência, anunciam-se as benesses das colônias espaciais, onde os terráqueos são convidados a passar férias longe do inferninho terráqueo. Deckart é novamente recrutado por seu chefe. Sua missão: encontrar e exterminar quatro replicantes rebeldes, todos da melhor estirpe (Nexus 6), dotados de inteligência artificial, emoções humanas e prazo de validade perto de expirar, que fugiram de sua prisão em algum lugar do cosmos e desembarcaram na Terra com intenções ocultas.
Este seria somente mais um filme babaca a ser exibido no Super Cine se tratasse somente de uma guerrinha entre as máquinas que o homem criou e o policial do Bem que irá, como usualmente, salvar o mundo após derramar muito suor e largar muitos cartuchos de bala pelo caminho. Mas o que interessa em Blade Runner não é tanto a perseguição do caçador aos replicantes – não estamos frente a um filme de ação espetaculoso onde tudo é pretexto pra correria, rajadas de metralhadora e o implacável heroísmo de um americano musculoso. Talvez por isso haja quem xingue o filme por ser muito paradão, cerebral, "filosófico". Vejo nisso muito mais uma virtude do que uma falha. O que interessa de fato é a meditação profunda que o filme nos convida a fazer a respeito dos rumos humanos na era da eugenia, da clonagem, da manipulação de genomas, da mercantilização do DNA, da inteligência artificial e da exploração econômica do espaço exterior. Isso e muito mais faz do filme algo equiparável a 2001 - Uma Odisséia no Espaço (Stanley Kubrick), Solaris (Tarkovsky), Metropolis (Fritz Lang) e Matrix (irmãos Wachowski) como um classicão do sci-fi cult de estratosféricas ambições filosófico-sociológico-científicas.
Blade Runner narra uma espécie de Levante Proletário Futurista, uma Rebelião de Escravos da era espacial-cibernética que vai, aos poucos mas irremediavelmente, tornando-se a nossa era. Os replicantes são os servos/escravos/proletários desta sociedade e sufocam sob o jugo da opressão. São utilizados como bestas de carga, instrumentos do capital, de modo que o trato humano em relação a estas criações biológicas fere um dos preceitos básicos da moral kantiana: “jamais utilizar um ser racional como mero meio para um fim”.
São tempos, não muito diferentes ou distantes dos nossos, onde existem “engenheiros genéticos” que mais parecem “cientistas malucos da era do DNA”, brincando de deus e gerando capetices. São centenas de J. F. Sebastians inventando em laboratório os mais estranhos e aberrantes seres vivos, a seu bel-prazer, todos eles destinados a servir. O filme não cita em nenhum momento, aliás, que haja uma Legislação ou um Código de Ética regendo a engenharia genética, que aparece como que transformada em “negócio privado”, imune ao direito, em que vale-tudo caso os lucros a auferir sejam altos.
O cenário distópico e sombrio imaginado por Philip K. Dick e construído em película por Ridley Scott me parece, por isso, quase uma cautionary tale. Esta “lenda” pós-mô nos mostra um futuro inglório, a ser cuidadosamente evitado, onde a tecnocracia das grandes corporações, mancomunada com uma engenharia genética caída em anarquia, deu merda da grande. "I've seen the future: it's violence" (Leonard Cohen).
Entre os replicantes rebelados e os humanos a hostilidade é tamanha que chega a caracterizar guerra civil. O que fica óbvio é que os replicantes, especialmente o líder do bando, encarnado por Rutger Hauer, estão furiosos. Não são nada “humanistas”: tão mais é pra misantrópicos. Como esquecer da cena, agoniante, dolorosa, quase grotesca, em que a criatura e o Criador (Tyrell) encontram-se e o filho-replicante assassina seu criador furando-lhe os olhos com as próprias mãos? Mata o Criador por tê-los fabricado para serem escravos, sem enxergar neles qualquer “dignidade” além daquela de instrumentos, destinados a uma vida de servidão, temor e esforço, vivida sob o jugo de uma força esmagadora. Mata o Criador por tê-los feito com prazo de validade tão limitado, mas principalmente por não ter compreendido que não se trata, para quem vive a experiência existencial replicante de dentro, de um mero prazo de validade, mas de uma morte tão angustiante, trágica, dolorosa e incompreensível quanto qualquer morte humana.
“All these moments will be lost in time like tears in the rain”. O lamento do replicante poderia muito bem ser o belo queixume de um poeta humano que se queixa, melancólico, da transitoriedade da vida e de tudo dentro dela. Neste momento, a tristeza e a gravidade com que se tinge todo o ser do replicante representa como que uma “epifania” que faz com que Deckard enfim enxergue a profunda unidade entre eles. Não há como considerar como um robô ou um computador-animado uma criatura que chora diante da perspectiva do próprio túmulo, e que olha para suas experiências vividas com o desconsolo de quem suspeita que a morte será como uma tempestade que as dispersará inteiramente, como lágrimas debaixo da chuva.
Edith Piaf, a diva da música francesa que viveu "such a wonderful & tragic life", é idolatrada por Tamsin, personagem da Emily Blunt nesta produção inglesa da BBC Films, My Summer of Love. A turbulenta e sofrida vida amorosa de Piaf, tantas vezes esmiuçada em biografias e filmes, acabou tornando-se algo de mítico, em que fatos comprováveis se misturam a lendas e invencionices, até que não saibamos mais separar o joio da mentira do trigo da verdade.
Tamsin conta para sua amiga Mona, por exemplo, que Piaf teve três maridos e cada um deles morreu "misteriosamente"; e que um deles era um campeão de boxe que foi assassinado por Edith com um garfo (!!!), mas ela nem teria ido parar na prisão pois "na França os CRIMES DE PAIXÃO são perdoáveis". Ao menos é esta a história picante e sangrenta que nos conta Tamsin, já nos fazendo suspeitar que sofre de uma certa mitomania: não somente uma compulsão a mentir, falsear, interpretar, mas uma atração pela mitificação do cotidiano, pela utilização de ficções deslumbrantes que excitem e seduzam... A verdade? Ora, ela é um mero estraga-prazeres que não nos deve impedir de, através do faz-de-conta, construir algo de mais interessante.
"Meu Verão de Amor": é bem verdade que este título não promete muita coisa, de tanto que soa como algo água-com-açúcar, Sessão da Tarde, romancezinho adocicado para moçoilas ingênuas ou pré-adolescentes românticas... Mas quem for a este filme de Pawel Pawlikowski esperando encontrar algo do naipe de Meu Primeiro Amor, aquele lá com o Macaulay Calkin, vai cair bonito do cavalo. O "climão" aqui é muito mais aquele de uma canção de Edith Piaf, uma peça de Ibsen ou um drama de Lars Von Trier. Pois por detrás deste título um tanto kitsch, encontra-se um filme altamente subversivo, onde a rebelião, a insubmissão e as rupturas com valores tradicionais são presenças constantes.
My Summer Of Love, filme ímpio e picante, um dos mais ousados e iconoclásticos filmes da última década (faturou um BAFTA de Melhor Filme Britânico em 2005), desde o princípio e desde o seu título é Ironia Encarnada, jogo de máscaras, simulação, sedução e mistério... Mas que presta tributo, na rebeldia contra a falsidade e o ilusionismo que narra, a um valor moral que costuma ser tão pisoteado pelos sistemas políticos e pelas religiões: a autenticidade.
Conheça Mona (Nathalie Press). Mona é uma adolescente que nunca conheceu o pai e cuja mãe acabou de morrer de câncer. Além do estado de luto pela mãe falecida, seu inferninho doméstico é complementado por uma aporrinhação extra: seu irmão mais velho, que já havia ido para a cadeia por roubos e pancadarias, um cara "esquentadinho" e de índole agressiva, resolveu se "regenerar" e entregar-se aos braços de Jesus Cristo. Constantes reuniões de crentes chatonildos e delirantes encontram-se na casa de Mona, que passa por eles resmungando, como Zaratustra no mercado, que DEUS ESTÁ MORTO.
Mona não engole a "metamorfose" do irmão. Consegue enxergar através das máscaras como se o irmão fosse de vidro, e percebe muito bem que este pretenso born-again Christian prossegue sendo, no fundo, por detrás da pose de abençoado, o mesmo homem truculento e autoritário.
A revolta de Mona contra seu irmão mais velho me parece motivada essencialmente pela indignação que ela sente diante da inautenticidade, da simulação, do fingimento, do faz-de-conta que reconhece no "teatrinho" religioso que o irmão interpreta, no "papel" que ele assume de Criminoso Regenerado Que Caiu de Joelhos Diante de Deus. "YOU'RE A FUCKING FAKE!" - eis o impropério que Mona lhe lança na cara feito um cuspe. A fé do irmão lhe aparece como um truque barato de um falsário sem talento. Quando o irmão, todo "metido" a messias, tem a presunção de se tornar o líder religioso que guiará à comunidade rumo ao Sumo Bem, ele aparece aos olhos de Mona como uma farsa a ser desmascarada, um embuste a ser denunciado, uma impostura a ser derrubada.
É por isso que, me parece, uma grande virtude (ou "valor moral") é discutida e problematizada através desta narrativa envolvente de My Summer of Love: a AUTENTICIDADE. Me refiro àquela virtude que André Comte-Sponville chama de "boa-fé", mas que é conhecida também por honestidade, sinceridade, veracidade. Mona é uma espécie de encarnação da autenticidade. Autêntico é aquele que não mente, não se esconde detrás de máscaras e poses, não interpreta um papel diante do outro, mas quer ter sempre reconhecida sua verdadeira face. Autêntico é também aquele que não aceita ser engambelado, que não se deixa enganar com facilidade, que se revolta quando descobre que lhe mentiram, que prefere reconhecer uma verdade dolorida a crer numa mentira confortável.
Mona conhece, durante o verão, uma bela e misteriosa forasteira, Tamsin. Esta sedutora, cativante e excêntrica beldade morena, interpretada deslumbrantemente pela Emily Blunt, declara-se nietzschiana, atéia, materialista, hedonista, boêmia. Idolatra Edith Piaf e a beleza de seu destino trágico. Bebe vinho com o ardor de quem presta um tributo pagão ao deus Baco ou Dioniso. Toca o violoncelo com um grau de devoção ao instrumento que só alguém apaixonado pela Música consegue manifestar. É também, como ela mesma confessa, uma "fantasista", uma artista, uma Maya a estender ilusões e matrixes sobre os olhos dos mortais...
Estas duas, Mona e Tamsin, irão envolver-se num tórrido love affair lésbico de verão. Um romance EFÊMERO POR PRINCÍPIO, na cabeça de Tamsin, mas... que no coração de Mona não consegue ser sentido apenas "ludicamente"... Um amor de verão é um amor próprio de quem não deseja laços que prendam, mas somente prazeres passageiros cuja delícia é pra ser sorvida, mas depois segue-se em frente, cada um em seu caminho. Um amor concebido como uma temporada de férias longe das mesquinharias do cotidiano, mas com a certeza de que este, o Cotidiano, voltará a reclamar seus direitos e impor sua presença amesquinhante. Mas é possível pré-determinar a validade de um amor? Pode-se prever, fazer um X no calendário, anotar na agenda, programando o dia em que cessará de existir? Se tantos amores que começaram lúdicos terminaram por ficar trágicos, talvez seja por esta essencial imprevisibilidade destes laços e vínculos em nossas vidas-correnteza, que fluem e fluem sempre...
O amor de verão, como o filme o descreve, tem de seus doçuras e belezas, de seus encantos primaveris e deleites sensórios extremos: Mona e Tamsin nadam no rio, transam ao relento deitadas entre violetas, rolam na grama úmida de orvalho; Mona e Tamsin dançam em transe, em completa entrega à música, e dormem na quadra de tênis em meio às taças de vinho esvaziadas; Mona e Tamsin beijam-se e tocam-se e lambem-se funda e molhadamente em cenas calientes que fariam enrubescer uma freirinha.
O "problema" é que Mona, que não tem pai nem mãe, que só tem um irmão violento mascarando-se detrás de uma fé patética, não vai conseguir levar este amor "na esportiva", na leveza, como se fosse coisa desimportante: Mona encontrou alguém em quem crê e confia, alguém a quem diz tudo, sem disfarces nem máscaras. Alguém no ombro de quem ela pode chorar. Alguém que a pode respaldar na fraqueza, fortalecer na revolta, contagiar na alegria e sustentar na tristeza. Alguém com quem fugir, pra longe, pra onde for, ainda que seja pro Egito ou pra Sibéria!
O que começou como brincadeira erótica, lúdicas peraltagens de amigas íntimas, vai tornando-se dramático a ponto de uma declaração de amor tão EXTREMA quanto esta surgir: "Se você me deixar, te mato!", diz Mona a Tamsin, "e na sequência me suicido." Ela fala a sério. E então o filme ganha contornos de tragédia shakespeareana e estas duas moças alçam-se, como personagens, a um status quase de Desdêmonas e Ofélias, de Julietas e Isoldas...
Mona e Tamsin, nos deleitosos delírios de seu amor proibido, juntam-se também para se vingarem e darem o troco contra os homens filhos-da-puta com quem convivem. Poucos filmes na última década retrataram a "masculinidade" com tintas tão negativas, tão carregadamente dark. Os homens, nesta obra de Pawlikowski, só fingem que prestam, mas no fundo são uns fingidos, uns brutos, incapazes de verdadeiros compromissos afetivos, de fidelidade e intimidade profunda. São patriarcas de um reino decadente. Gostariam de continuar reinando como leões sobre leoas submissas e mais aparentadas com ovelhas, mas são a toda hora tripudiados, ridicularizados e debochados por mulheres muito mais inteligentes e espertas do que eles. My Summer of Love é talvez uma das mais belas celebrações da Insubmissão Feminina já a aparecer numa tela de cinema.
Se há uma heroína nesta película, é ela, a insubmissão feminina, em especial aquela de Mona, que ergue-se numa ousadia comovente contra autoridades masculinas mofadas, obsoletas, "peitando" o irmão que se finge de santo e estourando as janelas do carro do pai de Tamsim, que é um marido adúltero. Mona e Tamsim são mulheres que não podem respeitar os homens ao seu redor pois estes são, em sua maioria, uns cretinos, em especial em suas vidas sexuais: são uns "falocêntricos", que só pensam com a cabeça de baixo e tem titica (e fé-em-Deus, é claro!) no lugar do cérebro. Este vínculo que entre elas se estabelece não só as une uma com a outra, mas une ambas contra um Inimigo Comum, o Macho-Man porco-machista-estuprante. O que faz do filme quase um MANIFESTO. Poético, pouco panfletário, mais insidioso do que ostensivo, mas ainda assim... um MANIFESTO feminista.
O problema é que os porcos-machistas-estuprantes-abusadores às vezes acontecem de ser os líderes religiosos da comunidade. De modo que ser feminista ou humanista sem confrontar estas autoridades "messiânicas" é impossível.
Os fiéis que, chefiados pelo irmão de Mona, estão levantando a cruz sobre o monte anunciam uma era terrível para o amor livre tal qual Mona e Tamsin estavam apreciando. A cruz levanta-se especialmente para ameaçar as "bruxas" e "feiticeiras", estas adolescentinhas nietzschianas insubmissas, sexualmente libertadas, de afetividade transbordante, para que voltem a ser obedientes, apáticas, submissas.
Toda uma cultura da penitência, da culpa, do pecado, da submissão, da obediência, toda uma representação da mulher ideal como "santa", "virgem", "impoluta", "submissa", "modesta", a mais dócil das ovelhinhas, está querendo impor-se - e isto num período histórico pós-Nietzsche, pós-Wilhelm Reich, pós-Woodstock, pós-anticoncepcional e pós-camisinha! Isto é o que não se pode aceitar: e estas mulheres se rebelam. E é uma rebelião bela, especialmente aquela de Mona, esta heroína tão sofrida e tão autêntica: uma rebelião daquelas que pretende re-estabelecer a autenticidade, pôr a verdade de volta no trono, devolver ao corpo os seus direitos e aos prazeres terrenos sua inocência, após tantos mercadores de ilusão e falsos messias terem tentado fazer a Lorota e o Faz-de-Conta triunfarem. A fé, aqui, aparece como algo que esconde, como véus de Maya, as inconfessáveis pilantragens de homens cuja opressão contra a mulher protege-se detrás de dogmas religiosos grotescos. E o amor transforma-se num ato de rebelião que pretende protestar contra o império da mentira e da repressão e reinstaurar como valor supremo aquilo que as religiões tanto pisoteiam: uma existência autêntica.
Descobri o cinema de Darren Aronofsky e não consigo mais parar. Tomemos Réquiem Para um Sonho (2000). Sara Goldfarb, mulher solitária, simpática, prendada, imagina-se na TV, vestida com seu vestido favorito - o que usara na formatura do filho, Harry. Em sua fantasia, ela está penteada, maquiada e magra, falando animadamente sobre sua amada família para um alegre apresentador de programa de auditório; nela vemos nossas mães e as mães de toda a gente. Seu sonho, tão popular, é alimentado por uma cartinha da emissora de televisão que a convida a participar do programa. Sara captura nossa estima tão rapidamente como a frágil personagem de Mia Farrow em A Rosa Púrpura do Cairo. A montagem de Aronofsky é intensa como a de Eisenstein. O resultado induz um pânico difícil de sanar; como diria Vigotski: ao invés do simples contágio, produz uma ferida.
Faz sentido. Harry é usuário de heroína. Em suas enormes pupilas, sonhamos com ele, repetidamente. O que sonha? Sonha caminhar em um lindo píer na direção de sua amada Marion. Marion, seminua, olha-se no espelho, embriagada por alguma sensação de poder sem contradições, uma ilusão que é ela própria, em certa medida. Tyrone, o terceiro amigo, sonha ser importante. E todos ignoram que a Fortuna encaminhava-os muito mal. Marca-se tal sucessão de cenas kafkianas que só fazem nos mergulhar no lado B de um mundo semidesconhecido, cujo muro entre psicotrópicos legais e ilegais é fundamentalmente a hipocrisia.
Sara fantasia o sonho americano: casa asseada, com cada coisa em seu lugar. A dona, em seu centro, pode exibir à platéia a sua feliz e comportada família, em que drogas e álcool não têm voz nem vez. Mas, que azar! Pela porta dos fundos entram medicamentos. A fim de parecer mais magra na TV, Sara torna-se dependente de anfetaminas. O filme está para nossa cultura medicalizada tal qual os dramas de Ibsen estavam para os tempos revolucionários da burguesia: a verdade sobre uma sociedade em crise, na qual nenhuma ilusão parece se sustentar sem o apelo a poderosos narcóticos ou técnicas médicas, infiltra-se por nossos olhos como as agulhas através do putrefato braço de Harry. Essa verdade genial do filme é a demonstração de que não o desvio, mas sim a forçada normalidade dos personagens - todos, alimentados por este ou aquele sonho americano - é a fonte inexorável de seu horror e destruição, da obsessão sancionada que muitos chamariam de padronização.
Já dizia Espinosa: mais vale multiplicar os desejos para que nosso corpo/mente não se torne refém de uma só paixão. Mais valem os bons encontros que as idéias imaginativas. E um mundo em que as categorias mais desejadas são também as mais vazias de espírito público - dinheiro, riqueza, beleza - essas personagens não podem se gabar de seus bons encontros, nem da atividade de seu corpo, nem de participar da difícil invenção do bem comum, que alguns larápios oportunistas chamaram de política. Os personagens de Aronofsky vagam em um mundo que fabricou a relação entre crime e castigo, a noção de que o vício induz seu próprio fim, e se não induzir, manicômios ou prisões farão o serviço. Penso que essa "higienização" é feita no filme ao alcançar a visibilidade da vida pública, antes de que as velhinhas, amigas de Sara, fiéis companheiras de cadeiras de jardim e torta de maçã, desconfiem do estofo cruel e violento oculto em seus inofensivos programas de auditório - ou, tal como ela, tentem tornar mais real o sonho narcótico que eles veiculam.
TRILHA SONORA ORIGINAL CLINT MANSELL E KRONOS QUARTET[ download ]
Ah, a Utopia! Não é fácil capturá-la com uma câmera de cinema! A Utopia, por definição, não é algo de empírico: é o que nossos sentidos não podem experenciar. Algo que só se pode enxergar através dos "olhos da imaginação". Ela, a utopia, costuma ser mais uma quimera criada por cérebros e corações febris, em delírios e desenfreios da fantasia humana, do que algo que se encontre, já pronto, em algum canto da realidade objetiva. Pode-se percorrer o mundo em busca de uma realidade que se encaixe, como uma mão numa luva ou uma chave numa fechadura, em nossas molduras ideais,mas pode-se jamais encontrar esta harmonização, este abraço. Quantos perseguidores audazes de utopias não acabaram diante de quimeras desfeitas e ilusões perdidas e poças de sangue? E quantas sociedades que hoje descrevemos como "idílicas" não foram destroçadas justamente pelo "ímpeto utópico" de estrangeiros imperialistas, querendo estabelecer seu way-of-life lá onde ele não foi desejado?
Segundo Eduardo Galeano, ela, utopia, é aquilo que sempre está no horizonte, mas que nossas mãos jamais tocam. Os mais impacientes (aqueles que querem uma utopia que possam estreitar nos braços, num abraço amigo!), hão de perguntar: "mas pra quê serve isto que está sempre remoto, distante, inalcançável?" E Galeano responde: para que caminhemos em sua direção. A utopia é aquilo que, no horizonte distante, nos chama, nos convoca, nos solicita... Dá um sentido para a caminhada. É seta que aponta um rumo. Sem esta bússola, estaríamos perdidos, ou a vida pareceria sem sentido.
Pois bem, mas esta não é a única utopia que pode ser criada: há muitas outras. Tão fértil é o cérebro humano em vontades, em delírios! Há outra utopia, concebida como algo que, ao invés de estar no futuro, ficou no passado. A Idade Dourada estaria atrás de nós, não na frente. Para reencontrá-la, teríamos que, de certo modo, andar na marcha à ré. A recuperação de algo perdido torna-se o que motiva a busca do tesouro. Algum fruto proibido nos fez ser expulsos do Éden primordial e agora precisamos dar um jeito, com nenhum guia a não ser nossa saudade e nosso abandono, para retornar ao seio primevo, onde vivíamos em beatitude... Doces sonhos, e bem retrógados! Mas não será a realidade bem mais amarga do que estas "coloridices" (para usar um termo jóia do Caio Fernando Abreu...)? A propaganda subliminar e escancarada dos otimistas do ideal, sejam eles sonhadores do futuro ou sonhadores do passado, deve nos fazer estar cegos às podridões todas que sujam nossas vidas de miséria, injustiça, avareza, ira e guerra?...
A utopia é material perigoso: pode entorpecer as nossas faculdades racionais, deixar-nos tão inebriados, como que sonhando doidamente de olhos abertos, que não mais enxergamos o poste que está diante de nosso nariz e contra o qual nossos ossos estão em rota de colisão. Quando destrói a lucidez, a utopia pode ser a força que empurra alguém na direção do abismo. Quem caminha demais olhando para as nuvens, um dia despenca no buraco e se estrepa. Mas quem caminha só olhando para o chão também não faz jus ao humano: apega-se ao símio ao invés de aspirar a ir além de si mesmo. Mais ou menos assim falava Zaratustra.
O Novo Mundo e A Árvore da Vida, juntos, delineam os contornos de uma utopia tal qual o cinema não faz desde... desde sei lá quando! Na verdade, não me lembro de alguém que tenha sido, antes de Terrence Malick, um artista do cinematógrafo com uma estética tão utópica. Para entender de quê utopia se trata, me parece, é preciso antes de mais nada desistir de querer compreendê-la só com a cabeça. Malick é uma torrente de sensorialidade! Seus filmes são para ser vistos com os SENTIDOS BOQUIABERTOS, meus caros, e não com um cérebro racional e tirânico que impõe o império da Lógica! Sim: filmes para serem mais sentidos do que raciocinados. O que não significa que não precisem ser compreendidos.
A utopia, Malick faz com que ela encarne nas mulheres que, em ambos os filmes, servem de protótipo de criatura com um relacionamento sábio com o cosmos. São mulheres extremamente sensoriais, que mantêm as portas da percepção sempre descomunalmente abertas e que são capazes de se deliciar com "pouco": os raios de Sol, a carícia do vento, o respingo das gotas de água que regam um jardim verdejante... Estas não são mulheres que caem de joelhos, cabisbaixas e trêmulas, para se submeter a um Deus pintudo, com colhão de sobra. Estas mulheres são servidoras de uma Deusa bem diferente dos velhinhos furiosos do monoteísmo. Vivem em harmonia com uma divindade que concebem como feminina e que toca-nos o corpo e os olhos e a pele a todo o momento, bastando que estejamos atentos. Uma certa Gaia, deusa-Mãe, deusa-Universo, que se confunde com Tudo-Que-Existe, compêndio infinito de forças transbordantes que delicia uma seita dionisíaca e primaveril...
É uma deusa que é pura EXUBERÂNCIA, para usar um termo tão caro a William Blake.
Mas há outra utopia, em rota de colisão com esta, que promete estragar o caldo do idílio com o ruído dos canhões.
Virginia, 1607. A colonização inglesa do que um dia irá se tornar os Estados Unidos da América é descrita pelas lentes de Malick como algo que chega para destruir o modo-de-vida ultra harmônico dos nativos do continente. Há decerto uma idealização tipicamente rousseausísta em ação no filme, com uma certa aura de santidade "desenhada" ao redor da cabeça dos "bons selvagens", especialmente nossa pequena Pocahontas, mulher que exala tanta vitalidade e estarrecimento diante do Mistério de Tudo que não escapa de ser considerada pelos capitães ingleses como um objeto digno do maior amor e devoção.
Toda esta coloridice do idílio indígena será destroçada com a pólvora e as cruzes-do-Cristo que desceram das caravelas junto dos europeus no episódio conhecido como "Descobrimento e Colonização do Novo Mundo", mas que, como Malick não nos esconde, mais se assemelhou a uma Invasão Imperialista Truculenta, seguida de guerra e morticínio, em que os massacres e as vilanias eram a mais cotidiana das realidades. O sangue caiu em borbotões sobre esta terra do Eldorado, tão repleta de biodiversidade e deslumbrâncias, que Malick filma como algo tão imaculado que mais se assemelhava a um outro planeta, ainda não conspurcado pelo capitalismo...
Resta saber: antes da invasão, a coisa eram assim tão bela e harmônica quanto a propaganda subliminar de Malick, este Rousseau da 7ª arte, nos persuade a acreditar? Não haviam bem antes da invasão dos europeus guerras terríveis entre diferentes tribos indígenas? Não haviam mortes cruéis, rituais de tortura, mil e uma perversidades? Será realmente que o sadismo só chegou às Américas por ter sido importado? Eram os americanos pré-colombianos assim tão idílicos e bonitinhos em relação aos truculentos estrangeiros, cegados pela febre do ouro, narcisisticamente desejosos de entesourar capitais imensos, que invadiam estas paragens paradisíacas para destroçá-las com sua ganância e sua falta de escrúpulos?
You flow through me, like a river.(The New World, 2005)
De qualquer modo, Malick nos faz pensar em profundeza sobre Natureza e Cultura, Utopia e Realidade, Homem e Cosmos. Afinal de contas, o que é a Natureza e qual a posição do Homem nela? Somos o ápice e o supra-sumo do imenso processo histórico-natural que nos gerou, os únicos seres capazes de tomarem consciência da imensidão, os olhos e ouvidos da Criação, sem os quais ela careceria completamente de sentido? Ou não passamos de uma espécie dentre outras, tão extinguível quanto os dinossauros, talvez tão estúpida quanto eles em muitos sentidos, e que acabará por destruir suas próprias possibilidades de existência por não compreender conseguir compreender seus limites?...
Em O Novo Mundo, Malick deixa conviverem a utopia encarnada numa Mulher, um cosmos feminilizado e pintado com as cores de uma Gaia panteísta, cheia de dádivas e graças, com as amargas e sanguinolentas realidades da guerra e da conquista imperialista, da luta visceral por poder e domínio, dos furacões de ira e desentendimento que rasgam os homens em pedaços, que os mutilam de seus membros, que os arrancam a preciosa e única vida em meio à violência irracional que urra e uiva...
Há momentos em que Malick consegue ser tão trágico como Shakespeare, mas no geral há, parece-me, um otimismo que corre firme por detrás da narrativa, diferente da irrupção por vezes brutal do absurdo nas tragédias shakespereanas. Os ingleses de Malick, especialmente os dois personagens principais do filme, interpretados por Colin Farrell e Christian Bale, são figuras que nada tem de mesquinhas, que possuem uma certa nobreza, uma certa "envergadura moral", o que contrasta com os ingleses que Shakespeare descrevia com tanto veneno, cinismo e penetrante olhar desvendador de vícios. Vejam, por exemplo, o seguinte trecho de A Tempestade, peça de despedida do bardo inglês, e comparem os tratamentos que são dados ao tema dos forasteiros que são recebidos na Terra Nova...
"...outra tempestade vai se armando... posso escutar a dita cuja cantando no vento. Lá longe a mesma nuvem negra, lá longe uma enorme, mais parece uma garrafa, um caneco imundo com boca de canhão, pronto a derramar seu precioso líquido. Se trovejar e relampejar, não sei onde vou me esconder... Lá longe a mesma nuvem não tem escolha, só pode cair aos montões. O que temos aqui [deparando-se com Caliban, o filho da bruxa Sicorax e escravo de Próspero], um homem ou um peixe? (...) Estivesse eu agora na Inglaterra, e este seria um peixe pintado em um belo cartaz de rua; e os bobalhões em passeio de férias pagariam para vê-lo. Lá na Inglaterra, este monstro passava por humano, e seria mais uma fera estrangeira fazendo a fortuna de um homem. Lá eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto." WILLIAM SHAKESPEARE. A Tempestade. Ato II. Cena II. Pg. 56. Ed. L&PM.
Shakespeare descreve a Natureza como algo tremendo, que ruge e que uiva em tempestades daquelas que Melville descreverá em Moby Dick, séculos depois; os elementos naturais, em Shakespeare, são normalmente descritos como forças irracionais e impiedosas que não se importam com reis e coroas --- tanto que o pobre Rei Lear, enlouquecido, traído por Goneril e Regan, é estapeado com violência por um temporal que não se apieda de Vossa Alteza. Já Malick aposta numa Natureza mais benigna, que possa nos servir como seio materno, se soubermos retornar a ela, e cujas forças são intrinsecamente sábias, ainda que nós, humanos, estejamos cegamente envoltos em discórdias menores e rixas mesquinhas.
Já quanto aos ingleses, que Shakespeare descreve com tintas tão maliciosas ("eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto..."), Malick pega mais leve com eles. É com mais complacência que observa com suas lentes os ingleses de 1600 e pouco, e isto talvez por não tê-los conhecido pessoalmente, como Shakespeare pôde. Tampouco pôde conhecer os indígenas das Américas, o que talvez também explique o retrato tão idealizado que nos oferece deles: foram embelezados por Terrence Malick, que lança um olhar retrospectivo de historiador-filósofo-antropólogo carinhoso que quer aprender com eles mais do que condená-los.
E não serei eu aquele que irá condenar Malick por isso. Afinal de contas, seu filme é de uma extrema beleza, possui cenas de uma poesia visual inegável e nos traz na bandeja uma cintilante Utopia que, ao que me parece, está entre as melhores que há no mercado das idéias: uma Utopia que nada tem de capitalista, mercantilista, individualista ou competitivista; uma Utopia que parece consistir numa comunidade de criaturas que possuam portas da percepção bem abertas para os mistérios cósmicos, que querem manter-se conectadas tanto à terra e às plantas quanto ao Sol e estrelas; que sentem-se como parte da Natureza circundante, e não como dela apartados; que não usam relógios nos pulsos pois preferem contemplar o Tempo passando no correr dos riachos ou nos crepúsculos e alvoradas; e que encontram no amor um meio de reconciliação com o Ser, que cessa de ser condenado, desprezado, recusado, tiranizado, tornando-se aquilo que, através do abraço, faz-se Um conosco.