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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

<<< O Novo Mundo (The New World), de Terrence Malick, 2006 >>>


Ah, a Utopia! Não é fácil capturá-la com uma câmera de cinema! A Utopia, por definição, não é algo de empírico: é o que nossos sentidos não podem experenciar. Algo que só se pode enxergar através dos "olhos da imaginação". Ela, a utopia, costuma ser mais uma quimera criada por cérebros e corações febris, em delírios e desenfreios da fantasia humana, do que algo que se encontre, já pronto, em algum canto da realidade objetiva. Pode-se percorrer o mundo em busca de uma realidade que se encaixe, como uma mão numa luva ou uma chave numa fechadura, em nossas molduras ideais,mas pode-se jamais encontrar esta harmonização, este abraço. Quantos perseguidores audazes de utopias não acabaram diante de quimeras desfeitas e ilusões perdidas e poças de sangue? E quantas sociedades que hoje descrevemos como "idílicas" não foram destroçadas justamente pelo "ímpeto utópico" de estrangeiros imperialistas, querendo estabelecer seu way-of-life lá onde ele não foi desejado?

 Segundo Eduardo Galeano, ela, utopia, é aquilo que sempre está no horizonte, mas que nossas mãos jamais tocam. Os mais impacientes (aqueles que querem uma utopia que possam estreitar nos braços, num abraço amigo!), hão de perguntar: "mas pra quê serve isto que está sempre remoto, distante, inalcançável?" E Galeano responde: para que caminhemos em sua direção. A utopia é aquilo que, no horizonte distante, nos chama, nos convoca, nos solicita... Dá um sentido para a caminhada. É seta que aponta um rumo. Sem esta bússola, estaríamos perdidos, ou a vida pareceria sem sentido.

Pois bem, mas esta não é a única utopia que pode ser criada: há muitas outras. Tão fértil é o cérebro humano em vontades, em delírios! Há outra utopia, concebida como algo que, ao invés de estar no futuro, ficou no passado. A Idade Dourada estaria atrás de nós, não na frente. Para reencontrá-la, teríamos que, de certo modo, andar na marcha à ré. A recuperação de algo perdido torna-se o que motiva a busca do tesouro. Algum fruto proibido nos fez ser expulsos do Éden primordial e agora precisamos dar um jeito, com nenhum guia a não ser nossa saudade e nosso abandono, para retornar ao seio primevo, onde vivíamos em beatitude... Doces sonhos, e bem retrógados! Mas não será a realidade bem mais amarga do que estas "coloridices" (para usar um termo jóia do Caio Fernando Abreu...)? A propaganda subliminar e escancarada dos otimistas do ideal, sejam eles sonhadores do futuro ou sonhadores do passado, deve nos fazer estar cegos às podridões todas que sujam nossas vidas de miséria, injustiça, avareza, ira e guerra?...

A utopia é material perigoso: pode entorpecer as nossas faculdades racionais, deixar-nos tão inebriados, como que sonhando doidamente de olhos abertos, que não mais enxergamos o poste que está diante de nosso nariz e contra o qual nossos ossos estão em rota de colisão. Quando destrói a lucidez, a utopia pode ser a força que empurra alguém na direção do abismo. Quem caminha demais olhando para as nuvens, um dia despenca no buraco e se estrepa. Mas quem caminha só olhando para o chão também não faz jus ao humano: apega-se ao símio ao invés de aspirar a ir além de si mesmo. Mais ou menos assim falava Zaratustra.


O Novo Mundo e A Árvore da Vida, juntos, delineam os contornos de uma utopia tal qual o cinema não faz desde... desde sei lá quando! Na verdade, não me lembro de alguém que tenha sido, antes de Terrence Malick, um artista do cinematógrafo com uma estética tão utópica. Para entender de quê utopia se trata, me parece, é preciso antes de mais nada desistir de querer compreendê-la só com a cabeça. Malick é uma torrente de sensorialidade! Seus filmes são para ser vistos com os SENTIDOS BOQUIABERTOS, meus caros, e não com um cérebro racional e tirânico que impõe o império da Lógica! Sim: filmes para serem mais sentidos do que raciocinados. O que não significa que não precisem ser compreendidos.

A utopia, Malick faz com que ela encarne nas mulheres que, em ambos os filmes, servem de protótipo de criatura com um relacionamento sábio com o cosmos. São mulheres extremamente sensoriais, que mantêm as portas da percepção sempre descomunalmente abertas e que são capazes de se deliciar com "pouco": os raios de Sol, a carícia do vento, o respingo das gotas de água que regam um jardim verdejante... Estas não são mulheres que caem de joelhos, cabisbaixas e trêmulas, para se submeter a um Deus pintudo, com colhão de sobra. Estas mulheres são servidoras de uma Deusa bem diferente dos velhinhos furiosos do monoteísmo. Vivem em harmonia com uma divindade que concebem como feminina e que toca-nos o corpo e os olhos e a pele a todo o momento, bastando que estejamos atentos. Uma certa Gaia, deusa-Mãe, deusa-Universo, que se confunde com Tudo-Que-Existe, compêndio infinito de forças transbordantes que delicia uma seita dionisíaca e primaveril...

É uma deusa que é pura EXUBERÂNCIA, para usar um termo tão caro a William Blake.


Mas há outra utopia, em rota de colisão com esta, que promete estragar o caldo do idílio com o ruído dos canhões.

Virginia, 1607. A colonização inglesa do que um dia irá se tornar os Estados Unidos da América é descrita pelas lentes de Malick como algo que chega para destruir o modo-de-vida ultra harmônico dos nativos do continente. Há decerto uma idealização tipicamente rousseausísta em ação no filme, com uma certa aura de santidade "desenhada" ao redor da cabeça dos "bons selvagens", especialmente nossa pequena Pocahontas, mulher que exala tanta vitalidade e estarrecimento diante do Mistério de Tudo que não escapa de ser considerada pelos capitães ingleses como um objeto digno do maior amor e devoção.

Toda esta coloridice do idílio indígena será destroçada com a pólvora e as cruzes-do-Cristo que desceram das caravelas junto dos europeus no episódio conhecido como "Descobrimento e Colonização do Novo Mundo", mas que, como Malick não nos esconde, mais se assemelhou a uma Invasão Imperialista Truculenta, seguida de guerra e morticínio, em que os massacres e as vilanias eram a mais cotidiana das realidades. O sangue caiu em borbotões sobre esta terra do Eldorado, tão repleta de biodiversidade e deslumbrâncias, que Malick filma como algo tão imaculado que mais se assemelhava a um outro planeta, ainda não conspurcado pelo capitalismo...

Resta saber: antes da invasão, a coisa eram assim tão bela e harmônica quanto a propaganda subliminar de Malick, este Rousseau da 7ª arte, nos persuade a acreditar? Não haviam bem antes da invasão dos europeus  guerras terríveis entre diferentes tribos indígenas? Não haviam mortes cruéis, rituais de tortura, mil e uma perversidades? Será realmente que o sadismo só chegou às Américas por ter sido importado? Eram os americanos pré-colombianos assim tão idílicos e bonitinhos em relação aos truculentos estrangeiros, cegados pela febre do ouro, narcisisticamente desejosos de entesourar capitais imensos, que invadiam estas paragens paradisíacas para destroçá-las com sua ganância e sua falta de escrúpulos?



You flow through me, like a river. (The New World, 2005)

You flow through me, like a river. (The New World, 2005)


De qualquer modo, Malick nos faz pensar em profundeza sobre Natureza e Cultura, Utopia e Realidade, Homem e Cosmos. Afinal de contas, o que é a Natureza e qual a posição do Homem nela? Somos o ápice e o supra-sumo do imenso processo histórico-natural que nos gerou, os únicos seres capazes de tomarem consciência da imensidão, os olhos e ouvidos da Criação, sem os quais ela careceria completamente de sentido? Ou não passamos de uma espécie dentre outras, tão extinguível quanto os dinossauros, talvez tão estúpida quanto eles em muitos sentidos, e que acabará por destruir suas próprias possibilidades de existência por não compreender conseguir compreender seus limites?...

Em O Novo Mundo, Malick deixa conviverem a utopia encarnada numa Mulher, um cosmos feminilizado e pintado com as cores de uma Gaia panteísta, cheia de dádivas e graças, com as amargas e sanguinolentas realidades da guerra e da conquista imperialista, da luta visceral por poder e domínio, dos furacões de ira e desentendimento que rasgam os homens em pedaços, que os mutilam de seus membros, que os arrancam a preciosa e única vida em meio à violência irracional que urra e uiva... 

Há momentos em que Malick consegue ser tão trágico como Shakespeare, mas no geral há, parece-me, um otimismo que corre firme por detrás da narrativa, diferente da irrupção por vezes brutal do absurdo nas tragédias shakespereanas. Os ingleses de Malick, especialmente os dois personagens principais do filme, interpretados por Colin Farrell e Christian Bale, são figuras que nada tem de mesquinhas, que possuem uma certa nobreza, uma certa "envergadura moral", o que contrasta com os ingleses que Shakespeare descrevia com tanto veneno, cinismo e penetrante olhar desvendador de vícios. Vejam, por exemplo, o seguinte trecho de A Tempestade, peça de despedida do bardo inglês, e comparem os tratamentos que são dados ao tema dos forasteiros que são recebidos na Terra Nova...


"...outra tempestade vai se armando... posso escutar a dita cuja cantando no vento. Lá longe a mesma nuvem negra, lá longe uma enorme, mais parece uma garrafa, um caneco imundo com boca de canhão, pronto a derramar seu precioso líquido. Se trovejar e relampejar, não sei onde vou me esconder... Lá longe a mesma nuvem não tem escolha, só pode cair aos montões. O que temos aqui [deparando-se com Caliban, o filho da bruxa Sicorax e escravo de Próspero], um homem ou um peixe? (...) Estivesse eu agora na Inglaterra, e este seria um peixe pintado em um belo cartaz de rua; e os bobalhões em passeio de férias pagariam para vê-lo. Lá na Inglaterra, este monstro passava por humano, e seria mais uma fera estrangeira fazendo a fortuna de um homem. Lá eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto." WILLIAM SHAKESPEARE. A Tempestade. Ato II. Cena II. Pg. 56. Ed. L&PM.

Shakespeare descreve a Natureza como algo tremendo, que ruge e que uiva em tempestades daquelas que Melville descreverá em Moby Dick, séculos depois; os elementos naturais, em Shakespeare, são normalmente descritos como forças irracionais e impiedosas que não se importam com reis e coroas --- tanto que o pobre Rei Lear, enlouquecido, traído por Goneril e Regan, é estapeado com violência por um temporal que não se apieda de Vossa Alteza. Já Malick aposta numa Natureza mais benigna, que possa nos servir como seio materno, se soubermos retornar a ela, e cujas forças são intrinsecamente sábias, ainda que nós, humanos, estejamos cegamente envoltos em discórdias menores e rixas mesquinhas. 

Já quanto aos ingleses, que Shakespeare descreve com tintas tão maliciosas ("eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto..."), Malick pega mais leve com eles. É com mais complacência que observa com suas lentes os ingleses de 1600 e pouco, e isto talvez por não tê-los conhecido pessoalmente, como Shakespeare pôde. Tampouco pôde conhecer os indígenas das Américas, o que talvez também explique o retrato tão idealizado que nos oferece deles: foram embelezados por Terrence Malick, que lança um olhar retrospectivo de historiador-filósofo-antropólogo carinhoso que quer aprender com eles mais do que condená-los.

E não serei eu aquele que irá condenar Malick por isso. Afinal de contas, seu filme é de uma extrema beleza, possui cenas de uma poesia visual inegável e nos traz na bandeja uma cintilante Utopia que, ao que me parece, está entre as melhores que há no mercado das idéias: uma Utopia que nada tem de capitalista, mercantilista, individualista ou competitivista; uma Utopia que parece consistir numa comunidade de criaturas que possuam portas da percepção bem abertas para os mistérios cósmicos, que querem manter-se conectadas tanto à terra e às plantas quanto ao Sol e estrelas; que sentem-se como parte da Natureza circundante, e não como dela apartados; que não usam relógios nos pulsos pois preferem contemplar o Tempo passando no correr dos riachos ou nos crepúsculos e alvoradas; e que encontram no amor um meio de reconciliação com o Ser, que cessa de ser condenado, desprezado, recusado, tiranizado, tornando-se aquilo que, através do abraço, faz-se Um conosco.

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