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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

<<< Réquiem para um Sonho (de Darren Aronofsky, 2000) >>>


SONHOS PADRONIZADOS
por Gisele Toassa

Descobri o cinema de Darren Aronofsky e não consigo mais parar. Tomemos Réquiem Para um Sonho (2000). Sara Goldfarb, mulher solitária, simpática, prendada, imagina-se na TV, vestida com seu vestido favorito - o que usara na formatura do filho, Harry. Em sua fantasia, ela está penteada, maquiada e magra, falando animadamente sobre sua amada família para um alegre apresentador de programa de auditório; nela vemos nossas mães e as mães de toda a gente. Seu sonho, tão popular, é alimentado por uma cartinha da emissora de televisão que a convida a participar do programa. Sara captura nossa estima tão rapidamente como a frágil personagem de Mia Farrow em A Rosa Púrpura do Cairo. A montagem de Aronofsky é intensa como a de Eisenstein. O resultado induz um pânico difícil de sanar; como diria Vigotski: ao invés do simples contágio, produz uma ferida.


Faz sentido. Harry é usuário de heroína. Em suas enormes pupilas, sonhamos com ele, repetidamente. O que sonha? Sonha caminhar em um lindo píer na direção de sua amada Marion. Marion, seminua, olha-se no espelho, embriagada por alguma sensação de poder sem contradições, uma ilusão que é ela própria, em certa medida. Tyrone, o terceiro amigo, sonha ser importante. E todos ignoram que a Fortuna encaminhava-os muito mal. Marca-se tal sucessão de cenas kafkianas que só fazem nos mergulhar no lado B de um mundo semidesconhecido, cujo muro entre psicotrópicos legais e ilegais é fundamentalmente a hipocrisia.

Sara fantasia o sonho americano: casa asseada, com cada coisa em seu lugar. A dona, em seu centro, pode exibir à platéia a sua feliz e comportada família, em que drogas e álcool não têm voz nem vez. Mas, que azar! Pela porta dos fundos entram medicamentos. A fim de parecer mais magra na TV, Sara torna-se dependente de anfetaminas. O filme está para nossa cultura medicalizada tal qual os dramas de Ibsen estavam para os tempos revolucionários da burguesia: a verdade sobre uma sociedade em crise, na qual nenhuma ilusão parece se sustentar sem o apelo a poderosos narcóticos ou técnicas médicas, infiltra-se por nossos olhos como as agulhas através do putrefato braço de Harry. Essa verdade genial do filme é a demonstração de que não o desvio, mas sim a forçada normalidade dos personagens - todos, alimentados por este ou aquele sonho americano - é a fonte inexorável de seu horror e destruição, da obsessão sancionada que muitos chamariam de padronização.


Já dizia Espinosa: mais vale multiplicar os desejos para que nosso corpo/mente não se torne refém de uma só paixão. Mais valem os bons encontros que as idéias imaginativas. E um mundo em que as categorias mais desejadas são também as mais vazias de espírito público - dinheiro, riqueza, beleza - essas personagens não podem se gabar de seus bons encontros, nem da atividade de seu corpo, nem de participar da difícil invenção do bem comum, que alguns larápios oportunistas chamaram de política. Os personagens de Aronofsky vagam em um mundo que fabricou a relação entre crime e castigo, a noção de que o vício induz seu próprio fim, e se não induzir, manicômios ou prisões farão o serviço. Penso que essa "higienização" é feita no filme ao alcançar a visibilidade da vida pública, antes de que as velhinhas, amigas de Sara, fiéis companheiras de cadeiras de jardim e torta de maçã, desconfiem do estofo cruel e violento oculto em seus inofensivos programas de auditório - ou, tal como ela, tentem tornar mais real o sonho narcótico que eles veiculam.


TRILHA SONORA ORIGINAL
CLINT MANSELL E KRONOS QUARTET[ download ]

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