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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

:: Zelig ::

de Woody Allen (1983)

por Eduardo Carli de Moraes

“...se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente a maioria os prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes. (...) Na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.” --- HERMAN HESSE, O Lobo da Estepe

"Cada grupo exige uma transformação interna mais ou menos radical das pessoas que o compõem. Consideremos as metamorfoses pelas quais um homem pode passar no decorrer de um dia, ao se transladar de uma modalidade social à outra - pai de família, fragmento numa multidão, funcionário de uma organização, amigo. Trata-se não apenas de diferentes papéis - cada qual é um passado, presente e futuro inteiros, oferecendo diferentes opções e obstáculos, diferentes graus de mudança ou inércia, diferentes espécies de proximidade e distância, diferentes conjuntos de direitos e obrigações, diferentes compromissos e promessas. Não conheço teoria do indivíduo que o reconheça plenamente. Somos tentados a iniciar com a noção de uma suposta personalidade básica..." --- R.D. LAING, A Política da Experiência e a Ave-do-paraíso


Na gíria falamos em “mariazinha-vai-com-as-outras”. Em linguajar bíblico, de “ir com o rebanho”. No trânsito muitas vezes tratamos de “seguir o fluxo”. E na escola e no exército nos ensinam a andar ordeiramente “em linha indiana”. São vários modos de falar do processo psíquico que faz com que um indivíduo se dissolva, se dilua e se aniquile na massa, exatamente como um camaleão amedrontado que se funde no ambiente para enganar seu predador.

Leonard Zelig, tragi-cômico herói criado e encarnado por Woody Allen neste falso documentário, um de seus filmes mais encantadores e geniais, é assim: um amedrontado camaleão humano. Assume a forma de qualquer pessoa com quem esteja: nas festas da alta-sociedade, em meio a socialites e mauricinhos, fala como se fosse um aristocrata; mas pode ser encontrado na cozinha falando com sotaque do povão, como um legítimo proletário, ao papear com a faxineira.

Coloque-o na presença de um índio da Amazônia e em poucos instantes ele estará falando em tupi-guarani e fazendo a dança-da-chuva. Na companhia de um gordo, sua pança incha. Junto de um chinês, seu olhinhos ficam puxados e ele se põe numa postura búdica. "Wanting only to be liked, he distorted himself without measure." (F. Scott Fitzgerald)

A cada ser humano que ele encontra, Zelig se transforma para adaptar-se ao que imagina ser o desejo do outro --- na ingênua e delirante crença de que será amado ao tornar-se o mais idêntico possível àquele que tem diante de si, sem imaginar que a alteridade não é o obstáculo mas a condição para a partilha verdadeira e para o amor genuíno.

Para sublinhar que não se trata de mero fingimento ou atuação da parte de seu herói, Woody Allen transforma Zelig num prodígio da natureza, numa criatura com super-poderes, atingindo pela caricatura um retrato psicológico que seria impossível de realizar através do realismo. Pois Zelig, decerto, é muito parecido com cada um de nós, em nossa persona social, sempre um tanto mutante: somos uma pessoa com nossos pais, outra com os amigos no boteco, outra com a namorada na cama, outra frente ao padre na igreja, outra se estivéssemos diante do presidente da república... Temos todos uma personalidade “plástica”, capaz de se adaptar ao meio-ambiente (e principalmente aos outros que nele se encontram). Por isso Zelig é apenas um homem normal ao extremo e o filme não passa de uma grande tragicomédia do conformismo, que vai nos apresentando a todos os malefícios da normopatia --- ao mesmo tempo que sugere também um modo de superação da inautenticidade. Pois, como diz Bruno Bettleheim, Zelig não é nada além do “ultimate conformist”.


INFINITAS PERSONAS


Quais as causas deste “estranho fenômeno”, Leonard Zelig, que constitui um quebra-cabeça para a Ciência? Teria ele um tumor cerebral? Uma mutação genética? Uma disfunção nas glândulas? Ou teria adoecido por excesso de comida mexicana? Isso não se elucida. A única "especialista" que se aprofunda no caso é a Dra Fletcher (Mia Farrow), que aposta que o problema dele era mais psicológico que fisiológico, e empreende um longo processo terapêutico, cheio de percalços, na tentativa de restituir Zelig a si mesmo.

Quando Zelig e sua doutora se isolam numa cabana na mata para um tratamento analítico longe das massas e dos papparazzi, é difícil não lembrar de Persona --- ainda mais considerando que Allen sempre se declarou um fã incondicional de Bergman. Elizabeth Vogler, no clássico sueco de 1966, é subitamente acometida por uma estranha patologoia psíquica que a deixa absolutamente muda, uma “neura” que certamente tem uma certa relação com a “lizzardia” de Zelig.

Vogler sente-se inautêntica, incapaz de ser ela mesma, como se toda palavra que saísse de sua boca fosse uma mentira, uma concessão a outra pessoa, um afastar-se de seu próprio centro; ela se cala para poder parar de mentir. Zelig, por sua vez, também é radicalmente inautêntico, pois cada pessoa com quem entra em contato serve para ele apenas como um modelo a imitar, uma forma alheia a assumir, um personagem a encarnar. Seu rosto é perpetuamente recoberto por uma infinidade de máscaras. Ele é um ator de mil personagens que jamais soube qual deles é o verdadeiro - se é que ele existe. Ele jamais afirma sua própria opinião ou assume sua própria diferença. Como uma esponja, assume provisoriamente os valores, os pensamentos, os sentimentos, as posturas corporais e as expressões faciais da pessoa com quem está imediatamente, tornando-se assim mera marionete do outro. Como um eterno puxa-saco existencial, torna-se vítima de seu temor excessivo de desagradar e de um desejo de amor tão intenso que o torna um falsário. Por isso Persona e Zelig podem ser vistas como duas grandes obras que, com um certo temperinho existencialista (que talvez não desagradaria a Sartre), demonstram vidas afundadas na inautenticidade e batalhando para dela escapulir.

A doutora Fletcher vê mais do que uma metáfora poética no paralelo entre Zelig e um camaleão. Sua tese “psicanalítica” é a seguinte: "Like the lizard, that is endowed by nature with a marvellous protective device that enables it to change color and blend in with its immediate surroundings, Zelig, too, protects himsef by becoming whoever he is around." Sua atitude não passa de um mecanismo de defesa através do qual ele procura se proteger dos ferimentos que as relações humanas poderiam lhe impor. O processo de “cura” passará, pois, por uma tentativa de torná-lo menos dependente da valoração alheia, mais confiante em si mesmo e capaz de externar seu ser com mais coragem, menos polidez, com uma espontaneidade não-calculada.

Allen dá um genial salto do pessoal ao coletivo ao sublinhar que não somente somos todos um pouco como Zelig, mas frisando ainda o potencial político danoso do "lizzardismo" (aproximando-se aqui das teses de Reich e sua Psicologia de Massas do Fascismo). Pois um homem que não tem individualidade própria, que se submete cegamente à autoridade-do-Outro, que quer ser um espécime idêntico a outros milhões, está prontinho para ser recrutado como soldadinho dos fascismos e totalitarismos. Não é à toa – nem é piada boba – o fato de Zelig, quando tem uma recaída em sua doença, vai parar na Berlim que sofre com a depressão econômica e se alista como um dos braços direitos de Hitler. “He craved to be loved, but there was something in him that desired immersion in the mass and anonymity”, comenta Saul Bellow. “Fascism offered Zelig that kind of opportunity. ”

Mas que não se confunda isso com um elogio do indivualismo, o que com certeza está longe das intenções de Woody Allen (que, pelo contrário, aponta muito bem a falta de substancialidade do eu, numa tese que é quase budista e que Hesse tão bem expôs no "Lobo da Estepe"). Pois o indivíduo que sente-se orgulhoso por ser "único", que vive inebriado com seu próprio narcisismo e que jamais abre-se a um renovador contato com o outro, achando que ser original importa mais do que saber amar, é outro doente mental que, a golpes de solidão e mal-estar, talvez aprenda que não há felicidade alguma na impermeabilidade.

Falando nos termos da ética aristotélica, poderíamos dizer que entre os dois excessos – o diluir-se completamente na massa e o ser impermeável a qualquer influência vinda de outra pessoa – encontra-se a virtude. Virtude esta que eu chamaria, de bom grado, de “empatia”, sem a qual não há amor, amizade ou caridade.

A ilusão de que existe um eu único, uma identidade imutável, uma personalidade "fixa" por trás de todas suas manifestações e comportamentos, desaba nesta amplificação do carrossel do eu que se processa em Zelig - e que a cultura pop já celebrou em David Bowie e Raul Seixas, por exemplo. A "metamorfose ambulante" não é uma escolha --- é uma imposição da vida. Somos mutantes, queiramos ou não. É como naquela belíssima cena d'O Lobo da Estepe, o clássico de Herman Hesse filmado magistralmente por Fred Haines em 1974, em que Harry Haller, o Steppenwolf, logo após ter adentrado os bizarros domínios do Teatro Mágico ("For Madmen Only", lê-se na entrada...), fixa um espelho camaleão. O rosto de Max Von Sydow (um dos atores prediletos de Bergman, em um de seus mais deslumbrantes papéis) não se fixa. O espelho se transforma em um filme onde passeiam várias expressões e rostos. Como ele se liberta do fascínio horrendo daquele fluxo doentio, daquele ataque esquizofrênico? Pelo riso! Desencanando... Deixando de querer ser um e aceitando o fato de ser muitos...

We gotta laugh our way to freedom!

FREAK SHOW

O filme traz ainda uma desconstrução cômica radical do star-system americano, incessantemente caçoado através desta bisonha celebridade que é Leonard Zelig. Sua história vira melodrama de Hollywood, canção de Cole Porter e um estilo-de-dança popular abraçado até por Josephine Baker --- sem falar de um argumento de consumo para que se vendam camelões nos pet shops e livros inspirados no Chameleon Man nas livraria.

Americanos aos milhares atravessam centenas de milhas para passar os olhos sobre o Camaleão Humano, o pop-star da hora. “He's a sight to behold for tourists and children”, comenta o narrador por cima de imagens de trânsito engarrafado pelos fãs que vão em romaria rumo ao ídolo --- “to peek at this new wonderment”.

Zelig, enfim, é um freak que a mídia adora explorar. Ele está na primeira página dos jornais pois é um “furo nato”, nem exigindo aumento e exagero para que a história pegue. “You just told the truth, and it sold papers! It never happened before”, comenta um jornalista.

Citando jocosamente o clássico de Orson Welles Cidadão Kane em vários momentos, Woody Allen faz de seu Leonard Zelig uma estrela-da-mídia que revela o quanto a cultura-de-massas é um circo demencial (irmanando-se, neste sentido, a outros clássicos do cinema como Network, de Sidney Lumet, e The Front Page, de Billy Wilder).

Na Jazz Age tudo na mídia já é efêmero e já começou o frênesi da informação descartável que hoje conhecemos tão bem. O narrador aponta a gangorra entre a excitação e a apatia, a velocidade da informação e a falta de memória: “The thrill-hungry public soon becomes apathetic. Fresh scandals appear and make headlines. A population glutted with diversion is quick to forget.”

Allen denuncia – e nos fazendo dar muita risada no processo! - a paixão dos telespectadores americanos por freak-shows numa provocação certeira, de certo modo prenunciando uma das temáticas que será explorada com artilharia pesada, décadas depois (se bem que com menos delicadeza e mais escracho), nos Simpsons e no South Park.

David Lynch, com seu O Homem Elefante, ou Todd Solondz, com todos os seres bizarros de Palíndromos ou Felicidade, já trataram em suas obras deste fenômeno que poderíamos chamar de “a curiosidade macabra do público”.

HAPPY END?

“His sickness was in the root of his salvation”
SAUL BELLOW


Na raiz da patológica lizzardia de Lenny está, como a Dra Fletcher tão bem percebe, uma carência afetiva. O resgate da história familiar de Zelig que o filme faz nos convida a imaginar uma grande desgraceira sentimental --- sim: uma infância traumática, como os psicanalistas adoram ter em mãos para explicar doenças mentais. Os Zelig moravam sobre uma pista de boliche, mas era a pista de boliche que reclamava do excesso de barulho. Vítima de anti-semitas na escola, o "judeuzinho" era alvo recorrente dos bullies. Em casa, era frequentemente trancado no armário --- e os pais se trancavam junto com ele nos dias em que estavam mais bravos. Na cama de agonia, o pai lhe comunica que a vida não passa de um "meaningless nightmare of suffering" [um pesadelo de sofrimento sem sentido].

Também com a religião não tem boas relações. Sente grande decepção pelo rabino, a quem ele perguntou um dia o sentido-da-vida. "Ele me respondeu qual o sentido da vida, mas me disse em hebraico”, comenta Zelig. “E aí quis me cobrar 600 dólares pelas aulas de hebraico." Mais tarde na vida, é crucificado pelo cristãos por não respeitar os sagrados laços do matrimônio (pois fez filhos em várias mães solteiras...). Uma tiazona da Liga das Senhoras Católicas até pede: "lynch the little hebe!" (linchem o hebreuzinho).


Donde uma certa melancolia, em Zelig, que num arroubo de sinceridade ele confessa nos termos mais simples: "I'm nobody. I'm nothing." Nos agridoces momentos de crise de identidade, quando começa a se delinear uma relação amorosa com a doutora, o narrador descreve seu vazio: "He only wanted to fit in, to belong, to go unseen by his enemies and be loved. But he neither fits nor belongs, is supervised by enemies and remains uncared for".

Este homenzinho carente, faminto por amor mas incapaz de conseguir nenhum, adota as atitudes mais extremas “to blend in”, se transformando numa grande poser. “O Zelig é um fingidor / Que finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente” --- parafraseando Pessoa. Sua salvação, é claro, só poderia estar num relacionamento íntimo que possibilitasse o desabrochar de sua autenticidade, o que ele encontra plenamente na Dra Fletcher, cujo doce trabalho em relação ao “paciente” que transformou-se em ser-amado é "provide love and affection" e "unconditional positive regard". Vale frisar que o casal na tela soa tão genuíno pelo fato de Woody Allen e Mia Farrow terem sido lovebirds na assim-chamada “vida real”.

No fim das contas, Zelig termina com um doce final feliz, dos mais joviais que Woody já criou, e que é de um romantismo-realista (não: não vejo absurdo...) que sempre achei adorável( e que prossegue desenhando um sorriso duradouro no fundo de mim, ainda que eu já tenha assistido este filme umas 5 ou 6 vezes...).

Óbvio que Woody Allen não gosta nada dos roliúdianismos sentimentalóides, ou seja, aqueles happy-ends extremamente adocicados e espetaculosos, com beijo na boca arrebatado e fogos de artifício ao fundo. Mas a “moral da história” em Zelig não deixa de ser afirmativa do amor e de seus imensos poderes terapêuticos. É o amor de uma mulher que salva Leonard Zelig de sua bizarra psicopatologia --- que o fizera presa de tantas metamorfoses incontroláveis e que havia-lhe trazido tantas desventuras em termos de processos judiciais, filhos bastardos, acusações de bigamia e problemas com a polícia por causa da extração não-autorizada de dentes e apêndices. Depois da servidão ao outro, a libertação da partilha. Depois do carrossel do eu e do desfile das máscaras, a nudez da verdade. Depois do frenético freak show repleto de requintes fake e kitsch, o repouso na autenticidade. Afinal de contas, “não foi a aprovação de muitos, mas o amor de uma única mulher que mudou sua vida”.

domingo, 24 de janeiro de 2010

:: duas dúzias de woodys ::


Leonard Zelig
, o camaleão humano,
em umas vinte de suas encarnações:

- click para ver maior -

Uma cobaia de manicômio

Um militante dos direitos civis dos negros

Um obeso comparando panças


Um china na casa-de-banhos

Um psicanalista freudiano, fumando à maneira vienesense

Um desses sujeitos importantes que usa bigodinhos...

Um bufão bochechudo


Um dramaturgo moderno, mó truta do Eugene O'Neil


Um trompeteiro de big-band


Um gângster com sua gangue e seus charutos cubanos

Um rabino debaixo de tentação pesada

Um magnata das comunicações, mó amigo do Cidadão Kane

Um garoto-propaganda de cigarros Camel

Um comanche que John Wayne poupou da morte

Um desses marqueses chiques (e míopes) que curte costeletas.

Um herói nacional (por ter voado de ponta-cabeça sobre o Atlântico)

Um donjuanesco mariachi (arriba!)

Um tiozão sacana rodeado de misses

Um desses engomadinhos que faz discursos públicos

Um homem com a mulher que ama

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

:: A Primeira Página ::

"A Primeira Página"
de Billy Wilder

[The Front Page, EUA, 1974]

"Full of wonderful comedic business, throw-away lines and some effortless ensemble set pieces, The Front Page bristles with its collection of talents on both sides of the camera. As is often the case with good comedy, the basic material is darkly dramatic, but the story telling style and the angle of approach to it is pure delight. It's that Billy Wilder touch of hurtful grains of truth inside every comic scene." --- URBAN CINEFILE

"Ao lado da medicina e da prostituição, o jornalismo é a carreira que melhor familiariza a criatura humana com as misérias da sua condição." --- LÊDO IVO


O mestre Billy Wilder já cometeu outros clássicos que rivalizam em hilariedade com este (como Quanto Mais Quente Melhor, O Pecado Mora ao Lado e Se Meu Apartamento Falasse), mas poucos de seus grandes filmes arrancam risadas através dum cinismo tão ácido. Baseado na peça de Hecht e MacArthur, esta história de A Primeira Página já havia sido filmada duas vezes em Hollywood - inclusive por Howard Hawks no clássico Jejum De Amor (His Girl Friday), estrelado por Cary Grant - mas recebeu aqui um tratamento de classe, de resultado delicioso, nas mãos da trupe diabolicamente afiada Wilder-Lemmon-Matthau.

O enforcamento iminente de um suposto agitador comunista é o ponto de partida para uma metralhadora giratória de chacotas que não poupa ninguém, desde a puta até o governador, mas cujo alvo maior é a imprensa. Numa press room demencial, regada à bourbon e pôquer, já com os tíquetes para a execução nos bolsos, os jornalistas se bicam por um "furo" enquanto o mundo pega fogo com a fuga imprevista do condenado (que, segredinho de alguns, está bem ali, escondido na escrivaninha...).

São tempos noiados na América dos anos 20 (mas que já soa como aquela da Guerra Fria): a caça às bruxas comunistas, devoradoras de criancinhas, ganha ares de cruzada. Os "tigres bolcheviques" estão "saindo do esgoto como ratos, subindo pelos mastros, para devorar nossa star spangled banner", diz a patriotada papagaiada pelo xerife. E nada melhor para faturar uns votos, às beiras da eleição, do que um bom espetáculo sinistro onde quebra-se exemplarmente o pescoço de um "vermelho"!

Todas as autoridades responsáveis pelo caso são sistematicamente ridicularizadas: o xerife otário que empresta sua arma para a pessoa errada e com isso permite que o prisioneiro escape; a polícia, que vaga como barata tonta pelas ruas perseguindo freiras inocentes e dando tiros em zeladores cegos; o prefeito filho-da-puta que ignora o documento que oferece clemência ao réu e manda o mensageiro do governador pra zona; o jornalistinha novato que mija nas calças ao primeiro tiroteio, molhando o precioso filme fotográfico; sem falar naquele alienista, mais lunático que o prisioneiro cuja sanidade mental ele tem a função de averiguar...

Mas o ápice cômico fica a cargo da genial duplinha Jack Lemmon e Walter Matthau --- que juntos tem um potencial para nos fazer cascar o bico que rivaliza fácil com o de Chaplin, Keaton, Allen ou quaisquer outros grandes comediantes da história do cinema. Eles vivem aqui uma relação de amor-e-ódio entre o editor-chefe metido-a-todo-poderoso Burns (Matthau) e seu jornalista predileto Hildy (Lemmon). O problema é que este último pretende casar-se com uma pianista (uma adorável Susan Sarandon em começo de carreira) e se mandar pra Filadélfia, deixando órfão seu pobre editor.

Mas o desquite profissional não será tão fácil. Aqueles dois, apesar de se bicarem o tempo todo, possuem uma relação de mútua dependência como se fossem... marido e mulher. E Burns não vai conceder fácil o divórcio a seu mais lucrativo súdito. Para impedi-lo de vazar, vai realizar sucessivos atentados contra o noivado. Isso inclui fingir-se de agente penitenciário, visitando a noiva para informá-la que seu pombinho, preso anos atrás por comportamento obsceno e atentado ao pudor, não pode deixar o Estado por estar sob liberdade condicional. Tudo lorota, é claro. Inclui também o nobre conselho: "Case-se com contrabandista, case-se com um dealer de cassino, case-se com um trombadinha, mas nunca se case com um jornalista!"


O editor Burns tem lá suas semelhanças com o Mr. Burns de Springfield, nos levando a suspeitar que Matt Groening tenha pescado em Wilder alguma inspiração para a criação dos Simpsons. Ele é ranzinza, ganancioso, sem escrúpulos e louco pra ter um pau-mandado puxa-saco que siga todas suas ordens feito um Smithers. Quando, por sorte, vê-se na posse do foragido, quer gabar-se do feito em seu jornal, sagrando-se como salvador da pátria.

Quando Hildy relega o elogio ao heroísmo do jornal para o segundo parágrafo, Burns esbraveja que passou anos ensinando-o como escrever um lead --- e demonstrando plena consciência das atitudes de grande parte do público leitor, pergunta: "Who the hell is gonna read the second paragraph?" Julgando tudo pelo potencial de venda, diz não dar a mínima pro terremoto na Guatemala ("I don't care if there is a 100.000 dead!"), mas que é melhor manter aquela matéria bonitinhas sobre pinguins ("É de interesse humano").

Já seu mascote editorial Hildy, que entra em transe frente à máquina de escrever a ponto de esquecer seu iminente casamento, mostrando-se mais apaixonado pelo "furo" que caiu em seu colo do que pela bela loira que o espera no táxi com passagens para a Filadélfia, oscila entre o ódio e a paixão pelo jornalismo. Por um lado, sabe que trabalha-se até a exaustão para produzir um jornal que, no dia seguinte à sua publicação, será usado para embrulhar o peixe (ou coisa pior: o cocô do cachorro). Por outro, é viciado neste jogo, bem mais excitante que pôquer, de competir com os outros jornalistas pela manchete mais bombástica e as declarações mais arrebatadoras. "I'm beggining to think all newspaper-men have a disease", comenta a noiva, antes de deixar a sala de imprensa como se saísse do manicômio...

O filme ainda traz algumas das mais hilárias piadas-de-psicanálise, tão caras a Woody Allen, que o cinema já nos presenteou. Quando Earl Williams é entrevistado para que sua "sanidade" seja atestada, e ele possa ser enforcado sem neuras, nos deparamos com um psicanalista lunático, feito um mau discípulo de Freud, cuja ortodoxia o leva a crer no Complexo de Édipo como se fosse a verdade sagrada.

Quando o réu declara "tive uma infância perfeitamente normal", o médico rebate com sua "opinião científica": "á-há! Você queria matar o seu pai e transar com a sua mãe!" Logo em seguida, na "reconstituição do crime", sugere que o policial, quando puxou a arma (que é "obviamente" um símbolo fálico), lembrou o réu de seu pai --- e por isso foi atacado e morto. O simplismo grotesco destas interpretações serve como uma implícita zombaria à ortodoxia freudiana - e não à toa Williams se vira para o xerife e comenta sobre o médico: "Ele é maluco!"

É uma das cenas mais hilárias de um filme repleto delas. Quando o psicanalista pede a seu entrevistado que faça exatamente como fez na cena do assassinato, o efeito cômico da pergunta do réu ("Exactly?!") é genial. Não à toa o médico acaba tomando um tiro nos bagos ("nas bolas do amor", como zoa algum dos jornalistas) e volta à Viena para escrever seu livro "A Felicidade Da Impotência".

Tudo por aqui é um grande circo, quase surreal, e não se sabe ao certo se é a imprensa a culpada por criá-lo ou se ela só está lá para registrar um endoidecimento social pré-existente. Wilder e sua turma, lidando com assuntos graves e temáticas espinhudas, utilizam uma ácida ironia como meio de banhar em óleo fervente a estupidez humana em todas as suas formas. Ao invés do aplauso às autoridades, aposta na caçoada sem fim. Aqui, o humor é um método de desmascaramento de vícios, preconceitos e interesses-de-classe que, apesar das hipérboles e caricaturas que utiliza em seu procedimento, possui como fator constante as "hurtful grains of truth inside every comic scene" de que fala a matéria do Urban Cinefile. É o que diferencia uma comédia genial de um pastelão e um grande gênio cômico de um mero palhaço.


EM CARTAZ EM SÃO PAULO NA MOSTRA
"COMÉDIAS CLÁSSICAS" NO CINUSP

Câmpus da USP - Capital
Rua do Anfiteatro, 181 - Colméia - Favo 4
Próximo ao CRUSP e ao Bandeijão Central

Quinta - 21/01 - 19h
Sexta - 22/01 - 16h
Entrada Gratuita

domingo, 17 de janeiro de 2010

:: Crumb ::


:: ROBERT CRUMB ::

"Robert Crumb has shocked, entertained, titillated and challenged the imaginations (and the inhibitions) of comics fans the world over. In truth, alternative comics as we know them today might never have come about without R. Crumb’s influence — the acknowledged “Father” of the underground comics could also be considered the “Grandfather” of alternative comics. --- THE WACKY WORLD OF R. CRUMB"

"His status as the bull-goose legend of underground cartooning meant that in the early '90s he was able to trade six of his sketchbooks for a house in the South of France. But Crumb's career has never been about maximizing financial possibilities -- that would mean signing on with mainstream pop culture, which Crumb, of course, despises. In fact, Crumb's repeated rejection of commercial opportunities (he once turned down an offer to do a Rolling Stones album cover because he hated the band) marks him as one of the last remaining exemplars of the egalitarian '60s hippie ethos he came to represent for so many people. There's only one problem with this -- Crumb despised the '60s hippie ethos he came to represent for so many people. And the '70s sucked even worse and he's not that enthused about drawing and he really hates Bruce Springsteen. "The only burning passion I'm sure I have," he once said, "is the passion for sex."" --- SALON


"Crumb" (1994), documentário de Terry Zwigoff sobre a vida e a obra do Robert Crumb, é uma iguaria fina tanto para aficionados pelo cara quanto para leigos (que ao fim do filme estarão certamente tarados por conhecer as HQs do mestre). Zwigoff é célebre por suas adaptações de quadrinhos pra telona: além de ter assinado a direção de Ghost World, de Daniel Clowes, (primeiro filme estrelado pela Scarlett Johansson), também fez Fritz The Cat, do próprio Crumb.

O documentário, apesar de ser um puta dum tributo/homenagem ao Robertinho Migalha, é ótimo por não se reduzir à pagação-de-pau. Terry, além de biografar sem cu-doce o Crumb e sua família, coleta declarações de muita gente que desce o cacete no cara chamando-o de machista, racista, pessimista, misantrópico, perverso, pornográfico, sexista, entre outros xingamentos piores que não fica bem compartilhar aqui, neste espaço-de-família que é o Depredando o Cinema.


Mas Crumb demonstra ser uma figuraça: dum bom-humor imperturbável, uma sinceridade totalmente desconcertante e um jeito-de-ser todo peculiar. Este é um daqueles filmes que nos faz desejar que ele durasse umas 4 ou 5 horas --- só pra poder ficar na presença daquelas pessoas tão cool que tão ali na tela... E é o tipo de filme que prova que certos seres humanos são muito mais fascinantes do que qualquer personagem de ficção jamais vai conseguir ser. Sim: Robert Crumb, o homem, chega a ser uma figuraça mais figura que qualquer de seus personagens...

A Família Crumb, que temos a impagável honra de conhecer, é também uma das mais bizarras que eu já conheci - rivaliza com os Osbournes, os Simpsons, ou os malucos do Sitcom do François Ozon. É só dizer que um dos irmãos Crumb tentou se suicidar tomando uma frasco inteiro de LUSTRA-MÓVEIS. Amarelou na última hora e gritou pra mamãe que precisava ir pro hospital ter o estômago esvaziado. Exemplinho dois: o outro irmão Crumb é um lunático zen-esquizofrênico que passa horas "meditando" sentado numa CAMA DE PREGOS e mastigando um barbante (!!). Foi isso o que eu achei o mais engraçado de tudo: o Robert Crumb, uma figura pra lá de bizonha, é o mais normalzinho da sua família.

Também fiquei com a impressão de que o Crumb é mais que um cara que desenhou uns quadrinhos: ele é um Artista com A maiúsculo, que usou seus dons para o desenho para expressar, sem concessões e sem polidez ("I'm not here to be polite!"), tudo o que sentia, mesmo suas fantasias sexuais mais bizarras e seus medos inconscientes mais inconfessáveis. A certo ponto do filme, ele confessa: "Não tenho nada para dizer em minha defesa. Só espero que dizer a verdade sobre mim possa ajudar alguém de alguma maneira..." Foi isso o que Crumb fez em seus quadrinhos: registrou com perfeição seus estados mentais, suas obsessões, suas manias, suas taras; lançou pro papel toda sua alma, inclusive as partes mais imundas.

Deu pra perceber muito bem que o cara tá longe de ser um modelo de virtude, mas os grandes artistas raramente o são, ao contrário do que muitos pensam --- e mesmo assim merecem ter suas obras experimentadas, ainda que como homens fossem pouco admiráveis. Como lembra bem um dos entrevistados do documentário, um cara como o Céline, mesmo que tenha sido um anti-semita fervoroso e um simpatizante do fascismo, não deixa de ser um dos grandes escritores do século 20. Do mesmo modo, o Crumb, que consegue ser altamente misantrópico e obsceno, não deixa de ser por isso um dos grandes artistas da história das HQs.

Descolamos abaixo um torrent do doc de Terry Zwigoff. Também descolamos os scans do álbum Blues (lançado no Brasil via Conrad). Além disso, disponibilizamos o álbum musical "Robert Crumb's Heroes of Blues, Jazz & Country", CD que acompanha o livro de mesmo nome no qual Crumb reuniu mais de 100 retratos de músicos e cantores do século 20. São só gravações poeirentas de 1930 e lá-vai-fumaça: pepitas selecionadas especialmente pelo cara e que constituem um mui-responsa "prediletas da casa". Pra quem quer ir além de Robert Johnson, Leadbelly e Hank Williams e explorar mais a fundo as raízes profundas da música norte-americana. Voilà!




DOC EM TORRENT [ 1.4 GB, 2 CDs ]


DISCO:
http://www.mediafire.com/?mluewojnhmm
[ 21 faixas, 192 kps, 80 mb ]

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

:: M.A.S.H. ::



M.A.S.H.
de Robert Altman
(1970)

"Quanto mais rude fosse a piada, maior a chance de aparecer no filme. Quanto mais obscena a piada, melhor. Pois não havia nada mais obsceno do que esses jovens sendo despedaçados e mandados para esse lugar para serem remendados e mandados de volta à batalha. Pra mim essa era a obscenidade!" (ALTMAN)

Mesmo em Hollywood, há quem tenha os culhões. O mestre Robert Altman era um semi-desconhecido dentro do showbizz roliudiano lá por 1969 e já adentrava os portões da toda-poderosa Fox pra dirigir um roteiro que tinha sido recusado por uma dúzia de outros diretores. Com orçamento “apertado” (“só” umas 3 milhões de doletas...) e um elenco de atores desconhecidos (uma dúzia deles estreavam no cinema), Altman se lançou ao projeto sob os olhares de desconfiança e ceticismo - pra não dizer hostilidade declarada - dos figurões do estúdio.

Na mesma época, a Fox estava produzindo dois outros longa-metragens de guerra (Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer, e Patton, de Franklin J. Schaffner) tidos como prioritários: ofereciam à empresa perspectivas de lucro muito mais convidativas. Na maciota, com pouca grana e muitos capitalistas sedentos querendo arrancar-lhe o pescoço fora, Altman, em uma das atitudes mais heróicas e corajosas dum cineasta dentro da engrenagem hollywoodiana, filmou seu genial manifesto anti-guerra M.A.S.H.

O ano era 1969 e os Estados Unidos da América, mascarando seu imperialismo arrogante com a fachada da “defesa dos valores ocidentais”, despejava bombas, com sua arrogância costumeira, sobre um pequeno país asiático que tivera a ousadia de tentar o comunismo. Crime imperdoável. Com a Guerra do Vietnã a todo vapor e as mortes dos soldados em ascensão frente à tenacidade dos vietcongues, os protestos pacifistas iam gradativamente aumentando.

Os hippies, dançando ao som do rock and roll e se sujando na lama de Woodstock, pronunciavam em altos brados: make love, not war. As manifestações anti-guerra ganhavam voz também entre artistas de muito peso na cultura mundial - John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, que espalhavam por aí os outdoors que garantiam: war is over (if you want it) e convidavam as massas a cantar “Give Peace a Chance”.

Nesse contexto, Altman soltou uma obra recheada de humor negro e obscenidades, destilando um desrespeito generalizado contra todo tipo de autoridade, ridicularizando toda a classe militar e pintando um retrato da insanidade doentia que se apossa das mentes em tempos de guerra.

Sem olhar para os méritos artísticos do filme, M.A.S.H. já é um notável por causa do estrago que causou e pelas mudanças que trouxe: além de ter sido o primeiro filme a ousar utilizar a famosa four-letter-word ("I'll blow your fucking head off"), teve um faturamento de bilheteria considerável, recebeu 5 indicações ao Oscar (vencendo o de roteiro), levou pra casa a Palme D'Or em Cannes, serviu de inspiração pr'uma série de TV homônima que durou 11 temporadas (e ganhou quase 100 Emmys), colocou Altman direto na história do cinema como um dos mais instigantes e irreverentes cineastas americanos e... (por que não?) ajudou a parar a guerra.

SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA...

O enredo do filme, no entanto, não se desenrola no Vietnã. O roteiro de Ring Lardner Jr. foi inspirado num romance de Richard Hooker, um médico que serviu na Guerra da Coréia no início dos anos 50. Uma pequena contextualização histórica pode ser útil aqui, já que o filme não a faz de maneira alguma, praticamente eliminando (propositalmente) qualquer referência à Coréia.

Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, o derrotado Japão deixou de controlar a Coréia e os exércitos de ocupação invadiram o país quase simultaneamente, os americanos pelo Sul, os soviéticos pelo Norte, rasgando a nação em dois. Em 1948 os soviéticos abandonaram o país e no ano seguinte foi a vez dos americanos também puxarem o carro. Em junho de 1950, exércitos norte-coreanos invadiram os territórios do Sul, tomando posse de Seul e de grande parte da Coréia do Sul.

Respondendo rapidamente a pedidos da ONU por assistência médica e militar na Coréia, o presidente Truman mobilizou o exército norte-americano pra território coreano, onde foram instalados uma série de hospitais improvisados pra atender os feridos em campo de batalha.

Os M.A.S.H.s - Mobile Army Surgical Hospital - atendiam principalmente aos casos mais graves: gente que não teria chance de sobreviver a uma dificultosa viagem a um hospital fixo através das precárias estradas do país. Os helicópteros, utilizados para driblar as dificuldades rodoviárias, eram carregados com os corpos sangrentos e mutilados dos moribundos no front e os despejavam aos borbotões nas unidades M.A.S.H.

Com a escalada da violência e o consequente aumento de demanda por médicos, o exército americano passou a convocar jovens estudantes de medicina, muitos deles com somente 1 ou 2 anos de treinamento cirúrgico, e os enviava para trabalhar em condições precárias e com péssimo equipamento nas terríveis mesas de operação dos M.A.S.H.s coreanos. Mesmo com o armistício de julho de 53, que conquistou uma tênue paz na Coréia, estima-se que mais de 35.000 soldados americanos permaneceram aquartelados na Coréia do Sul por mais de 45 anos após o cessar-fogo. O último M.A.S.H. foi desativado em 1997.

O filme de Altman, transpirando um realismo bem verossímil, nos colocará ficticiamente dentro de um dos acampamentos do M.A.S.H. Porém, o diretor procurou propositalmente eliminar qualquer referência à história da Guerra da Coréia e evitou ao máximo até mesmo colocar personagens coreanos no filme, na tentativa de fazer com que o público tivesse a ilusão de que aquilo se desenrolava no Vietnã. Donald Sutherland disse que a Guerra da Coréia era somente "uma metáfora atrás da qual eles se escondiam", talvez um artifício para escapar da censura, mas que a intenção manifesta do filme era ser despejado nos EUA de 1970 como uma obra anti-Guerra do Vietnã. Bem útil para este intento que coreanos e vietnamitas tenham, ambos, olhinhos puxados!


NO CAOS E NO IMPROVISO

Robert Altman tinha visões tão subversivas e um modo de trabalho tão fora do comum que teve uma série de problemas durante as filmagens e pós-produção. Com pouquíssimo respeito pelo roteiro, o diretor deixava rédeas soltas para que os atores improvisassem as falas e sugerissem toda uma série de detalhes e acontecimentos que não estavam previstos. Alguns depoimentos de atores afirmam que 80% do filme é improvisado. Esses mesmos depoimentos pintam o retrato dum set de filmagem dominado pelo caos, onde ninguém além de Altman sabia exatamente o que estava acontecendo, com os atores entregues à sua própria criatividade enquanto as câmeras dançavam ao redor.

Os dois atores principais, Donald Sutherland e Eliott Gould, vendo com ceticismo o comportamento extravagante do diretor, entraram em sérias desavenças com Altman, algo que chegou a comprometer a realização do filme. "Nós achávamos que Bob deveria ser internado numa instituição para pessoas mentalmente desequilibradas. Porque era obviamente doidice o que ele estava fazendo", disse Sutherland. Também o roteirista Ring Lardner Jr. sentiu-se ultrajado quando viu o filme finalizado ao notar que PRATICAMENTE NADA do que havia escrito no roteiro aparecia no filme. Por ironia, Lardner iria vencer o Oscar de Melhor Roteiro no ano seguinte e, subitamente, ao perceber-se alçado à glória pela genialidade de Altman, rapidamente tratou de se referir ao diretor com mais carinho e gentileza...

No acampamento M.A.S.H. colocado em primeiro plano pelo filme, os feridos nos campos de batalha são trazidos às pressas, normalmente mutilados e empapados de sangue, com hematomas horrendos, fraturas expostas e feridas purulentas, para serem submetidos a operações de emergência. A dramaticidade da situação, absolutamente trágica, é contraposta pela atitude dos médicos e cirurgiões, que não levam nada à sério e tratam tudo na base da chacota. A tragédia e a comédia dão as mãos.

Hawkeye (Donald Sutherland) e Trapper John (Elliott Gould) são dois porras-loucas que se afogam em martinis, piadas sujas, humor negro e xavecos passados às colegas de trabalho. Enquanto abrem os corpos dos feridos e costuram suas entranhas, com as mãos banhadas em sangue e tripas, batem um papo como se estivessem no boteco, fazem gracinhas sobre os membros decepados dos feridos, comentam sobre as qualidades anatômicas das enfermeiras... A vida no acampamento é envolvida num ambiente de imoralidade, de vale-tudo, de foda-se todas as regras e todas as autoridades. E viva o pôquer, as bebedeiras, o sexo casual e o futebol americano na lama.

Toda uma série de alvos são sistematicamente ridicularizados e caçoados. Qualquer pessoa que se leve a sério ou que acredite convictamente em suas crenças (Burns rezando ajoelhado e sendo ridicularizado), que pretenda “fazer cenas” (Hot Lips depois da travessura do chuveiro), que tenha a ambição de estar fazendo algo de importante ou dramático (o "suicídio" de Painless), é sempre destroçada pelo sarcasmo cáustico e destrutivo dos médicos. Não há para eles nenhuma pessoa merecedora de respeito. "Costurando e cortando no campo de batalha, operando enquanto bombas e balas explodem à sua volta, revidando com risadas entre amputações e penicilina", os médicos constroem um mecanismo para suportar a realidade intolerável onde estão afogados.

Altman declarou que o principal tema em M.A.S.H. é a insanidade. Obviamente, o cineasta se mostrou tremendamente preocupado com os rumores de que a Fox iria censurar as cenas tétricas de operação, nas quais a tela era tingida de sangue jorrante e cadáveres abertos sendo cavocados pelos bisturis dos médicos. Se aquelas cenas tivessem sido excluídas, a obra perderia toda sua relevância, todo seu poder, e se transformaria numa comédia banal e fútil sobre personagens que fazem piada de tudo, até das desgraceiras mais terríveis.


Mas é o horror de experimentar um cotidiano desfile de corpos humanos destroçados, de entrar em contato direto e constante com o terror da guerra, que obriga os médicos a criarem maneiras de escapar da realidade através da diversão, da futilidade, do esporte, do álcool, do papo furado. São táticas de sobrevivência. Grandes artifícios utilizados para erguer um pesado muro de repressão que esconda o insuportável terror que está a se desenrolar. Estou certo de que Altman não está fazendo um elogio tácito ao comportamento imoral, foda-se tudo, de seus personagens, mas registrando mecanismos psíquicos de fuga de uma realidade demasiado tenebrosa e chocante para ser tragada. "A leviandade desses rapazes era um meio para que eles pudessem sobreviver!", declarou o diretor.

E não só a futilidade dos médicos é descrita, comoparece haver também uma espécie de provocação latente do próprio filme aos espectadores. Afinal, M.A.S.H. se apresenta como uma comédia engraçadíssima, onde estão presentes alguns dos diálogos mais espertos e divertidos da história do cinema, mas ao mesmo tempo esboça uma espécie de crítica à trivialidade como uma espécie de covardia moral.

É como se Altman, após fazer um de seus personagens dizer algo de comicidade irresistível, se virasse pra nós e perguntasse: “mas por que é que você está rindo, pilantra? Os cadáveres estão se amontoando e os corpos continuam sendo costurados e remendados, e vocês vão na mesma onda desses médicos babacas em sua perseguição incessante de uma sagrada cegueira?”

O público inevitavelmente ri do filme, mas ganha de presente uma certa culpa, uma certa acusação: da mesma maneira que os personagens se entregam à futilidade para se esquecerem que estão num campo de batalha, também o público que frequenta os cinemas comerciais normalmente se entrega às gargalhadas e ao entretenimento escapista para evitar olhar uma realidade que não tem coragem de encarar de frente.

Ainda que M.A.S.H. não faz críticas explícitas à Hollywood como outro clássico de Altman, O Jogador, pode ser interpretado como um certo jogo dúbio com o público: que recebe o entretenimento todo sujo de sangue, que recebe o sangue todo recoberto pelo riso. Como diz o cartaz francês: eis um “filme sangrento de onde jorra o riso!” Além do eloquente manifesto anti-bélico que é, M.A.S.H. é também uma crítica cultural onde Altman descreve o entretenimento e a leviandade como mecanismos de fuga da realidade (Ernest Becker explica...). M.A.S.H. não está somente oferecendo piadas bestas – como disse Altman: “after all, you gotta pay for your laughs”.

(Eduardo Carli de Moraes)

:: Garapa ::


A UTOPIA DE UM PÃO

- José Padilha, diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174, explora mais uma vergonha nacional (a fome no Nordeste) em seu novo documentário Garapa -

Dizem as estatísticas da ONU que são 930 milhões de pessoas, no mundo, que passam fome. No Brasil, segundo o IBGE, nada menos que 11 milhões de famílias padecem de “condições de insegurança alimentar grave”. Mas um número no papel, por mais estratosférico que seja, é capaz de trazer alguma lágrima aos nossos olhos? Nos tirar o sono à noite? Povoar de pesadelos nosso descanso? Nos empolgar a algum tipo de engajamento ou revolta? É sequer imaginável, concretamente, o tamanho espetacularmente faraônico dessa tragédia cotidiana?

“José Padilha é um cineasta in – inquieto e inconformado com a realidade que o cerca, a ansiedade à flor da pele. Está sempre a mil por hora, como se estivesse o tempo todo dirigidno um filme sem começo nem fim, com um roteiro imaginário na cabeça, em busca de um final feliz que nunca chega. Tem sede e fome de justiça, não se conforma em ver nada errado”, escreve Ricardo Kotscho (na revista Brasileiros, #23). Agora o brilhante diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174 retorna em seu terceiro filme, Garapa, apostando mais uma vez na imensa potencialidade do cinema como um instrumento de conscientização social. A impressão que fica é a de que ele confia no cinema como um modo de construir uma empatia, uma identificação e uma comoção do espectador com as realidades sociais que nenhum livro, relatório ou estatística é capaz de transmitir. E, ao sentir o impacto indelével que é chocar-se com Garapa, quem haveria de negar esse poder extremo que às vezes consegue conquistar a imagem cinematográfica?

Mais de 70 anos desde a escrita de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (de 1938), 45 anos depois do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (de 1964), e 20 anos desde Ilha das Flores, de Jorge Furtado (de 1989), para ficar em poucos exemplos, temos que admitir: as existências no sertão continuam áridas, as barrigas roncam sem parada e as bocas humanas vão engolindo a comida que até os porcos rejeitariam. É verdade que já estamos ouvindo faz décadas sobre a péssima distribuição de renda e de terra que faz do Brasil um dos países mais injustos sobre a face da Terra. Mas não há nada de supérfluo em mais uma obra que venha nos rememorar de uma chaga que ainda não parou de sangrar e que estamos longe de ter conseguido remediar. A situação é urgentíssima, e sempre foi urgentérrima, mas é urgente faz tanto tempo que até nos esquecemos que há um sinal vermelho piscando e que os alarmes, há dúzias e dúzias de anos, estão enlouquecidamente soando. Garapa é um lembrete que vem em boa hora, para retirar as vendas que indústria do entretenimento e do consumo nos mete nos olhos para que não vejamos o quanto a situação é crítica e deprimente.

Garapa foi filmado antes de Tropa de Elite, em pleno verão de 2005, na cidadezinha de Quixadá (a 200km de Fortaleza). Mas só foi montado e finalizado com a ajuda do capital gerado pelo blockbuster que mostrou o Capitão Nascimento e seus asseclas do BOPE em confronto sangrento contra os traficantes do Rio.

Padilha diz que, dos três filmes que fez, este é o mais “universal”. Sinal de que não pretendeu fazer apenas um filme de brasileiro, e para brasileiros, mas um testemunho e um protesto que devem ser ouvidos em qualquer canto do planeta Terra, onde – para nos rendermos à pobreza comunicativa de uma estatística – cerca de 1 bilhão de seres humanos, uma pessoa em cada sete, passa fome.

A escolha do preto e branco talvez se explique por aí: por um lado, o “fato” retratado nada tem de “colorido” - é uma realidade sombria, acizentada e tétrica, em que o Sol sempre flamejante não faz com que os destinos sejam menos negros. Por outro, o preto e branco também auxilia a deixar o retrato com vocação para a universalidade, já que um filme à cores traria muito marcada os tons específicos da paisagem e do solo no sertão nordestino brasileiro, enquanto que o p&b torna aquele cenário semelhante a qualquer pocilga terceiro-mundista, seja no Oriente Médio, na Ásia, na África ou na América Latina.

Além disso, a monotonia da cor ecoa a monotonia da miséria, já que à vida destes esfomeados, reduzida ao mais primário, se vê presa num chão-a-chão sem futuro, um presente sem horizontes e um passado que vai-se esquecendo rápido pois não há nele nada digno de ser rememorado. Um tempo em que a única e terrível obsessão e é manter um organismo vivo – e com quê custo!

Aqui somos apresentados a crianças que vão viver e vão morrer, a maioria delas, sem jamais conhecer o gosto do chocolate, sem jamais saber como é essa tal de Coca-Cola e que dificilmente conseguirão realizar essa façanha: se tornar “gente grande”. Porque por ali virar adulto é mais difícil que tudo: quase todo mundo morre tentando.

São crianças com os dentes podres, que são arrancados à força, e que berram sem fim pelas madrugadas por um remédio que não há e por um dentista que não se pode pagar. Mas que importa ficar banguela, se não há carne nem pão que fosse preciso morder? Ah, amiguinhos, no Ceará ter dentes sadios é quase um luxo desnecessário, já que a principal fonte de nutrição da molecada é a “garapa”, ou melhor, água com açúcar!

São crianças piolhentas, imundas, que andam sem roupa não porque o clima convide a uma alegre brincadeira de nudismo, mas sim porque não possuem um mísero trapo com que cobrir seus corpinhos calcinados de sol. Têm a pele lotada de “perebas”, que o médico diz que é alergia, mas que não desaparecem (pelo cotnrário: só se multiplicam!) pelo contato cotidiano com as moscas, muriçocas e outros insetos que infestam casas que jamais conhecerão o inseticida. Ah, mas não é lindo de ver os primatas vivendo em comunismo com os artrópodes e as bactérias?

Esses pobres “filhos da miséria” são “arranjados” por seus pais como se fossem uma epidemia - devido à falta de métodos contraceptivos e ausência de consciência clara da necessidade de controle de natalidade. Uma das mães, que antes dos 30 anos de idade já possui 11 filhos, sem ter condições econômicas de alimentar sequer UM, usa uma linguagem sintomática: filho, para ela, é algo que a gente “pega” - como se pega uma doença ou um resfriado. Por mais que ela queira controlar a disseminação de uma prole que vem ao mundo chorando, para viver de estômago roncando, e morrer cedíssimo e definhando, ela não tem os meios para barrar essa enxurrada de novos seres que saem de seu ventre e que vêm se adicionar ao imenso e desolador cenário da miséria.

E, se a situação das crianças é de quebrar o coração, o que dizer dos adultos? São pessoas um tanto enlouquecidas por excesso de privação e humilhação. Quantas milhares de Estamiras não deverão estar espalhadas por este sertão, balbuciando discursos de raiva e humilhação à beira dos barracos e lixões?! São lares marcados pelo desemprego sem horizontes, pelo alcoolismo crônico e incurável, pela troca de ofensas entre os cônjugues, por cenas de estupro marital que não são denunciadas, por uma triste resignação a uma vida que talvez nem seja digna desse nome... Apesar de tudo, são seres que frequentemente se aferram à fé e crêem que “Deus dá”. Mas que Deus é esse, sempre silente nas nuvens, que não mexe um dedinho de sua mão onipotente para amortecer a fome de 1 bilhão de seus “filhos”? E o que ocorreria, se os despossuídos desse mundo deixassem de orar nas igrejas por uma ajuda que não chega jamais e se pusessem a agir em prol de uma transformação concreta desse mundo que parece abandonado por seu Criador?

E, enquanto marido e mulher trocam grosserias e sopapos, num português de analfabetos, em meio a crianças que murcham vivas de subnutrição, enquanto o papai vai vender o leite para ter sua dose diária de cachaça, o espectador no cinema talvez se sinta envergonhado de sua pipoca e seu refrigerante, que aprecia no conforto de um multiplex em que pagou 20 reais de ingresso e mais 20 de guloseimas. Numa sessão de cinema de Garapa, há casais ou grupos de amigos que gastam mais em duas horas do que uma família de 12 pessoas gasta em um mês. Mas não é isso o mais grave – a alfinetada final o filme reserva para o créditos, que nos contam, para nosso escândalo, o número de pessoas que morreram de fome durante a projeção do filme. Garapa é também um filme que acredita que há coisas muitos mais urgentes a fazer do que assistir filmes.


ESMOLA NÃO!



Um documentarista não é um agente humanitário. Está ali, com sua câmera, para registrar o real como o encontra, sem alterá-lo ou maquiá-lo antes de captá-lo. Todo o sentido do filme se perderia se uma equipe de produção tratasse de “arrumar o cenário” dentro destas casas e “dar dicas” às famílias sobre como deveriam se comportar assim que se apertasse o “REC”. José Padilha é magnífico e exemplar neste sentido, demonstrando plena compreensão de qual é a atitude de um documentarista de gênio – e coloca-se, desde já, entre os mais brilhantes nomes do documentário nacional dos últimos anos ao lado de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles.

Vendo aquelas crianças passando fome frente à câmera alguns de nós talvez faça a pergunta, pondo em cheque à ética daquele que segura o instrumento que apenas observa, passivamente, um espetáculo terrível que ele poderia concretamente remediar: “por que o pessoal do filme não paga um almoço pr'essa gente? não dá umas esmolas? não liga pras assistentes sociais? não ajuda a parar a sangria com band-aid e torniquete?”

É que este filme não está aqui para nos dar edificantes lições de moral sobre a necessidade de caridade, de generosidade, através do pífio e inútil exemplo da esmola. O que esses seres humanos precisam não é de esmola, isso é certo, e todos aqueles que estão ansiosos para se libertarem do ônus da culpa social através desse meio não recebem deste filme nem fiapo ou rastro de permissão. Pelo contrário: Garapa traz, no fundo, um implícito cansaço com os paliativos, e nos deixa com a sensação de que algo muito mais radical, uma modificação de uma magnitude muito maior, é necessária para amelhorar este triste quadro. Para Padilha, a atitude de “mostrar o real”, sem maquiagens, não se opõe à atitude paralela de “modificar o real”, sem covardias e medidinhas paliativas, que só aplacam por minutos a dor, deixando intacta a doença.

Um documentarista também não é um dramatizador, e Garapa, apesar de poder ser visto como um filme profundamente dramático e perturbador (tanto que muitos espectadores saem do cinema dizendo-se tão chocados quanto quando viram Dogville pela primeira vez!), não parece ter essa intenção: de dramatizar. Em momento algum utiliza-se trilha sonora musical para sentimentalizar, nem se procura utilizar artifícios cinematográficos para fazer as lágrimas virem aos olhos dos observadores de todas aquelas tristezas. A situação é tão triste, tão triste, que os olhos ficam secos. Tão secos quanto aquele sertão que lágrima alguma torna menos árido.

Toda a renda de Garapa vai ser revertida em benefício de famílias carentes do Ceará. A única coisa que me entristece numa atitude tão louvável, e tão digna de ser imitada, é que um filme destes provavelmente não fará nem 10% do sucesso que fez Tropa de Elite - apesar de ser um filme tão “violento” quanto, e talvez ainda mais desolador. O filme anterior de Padilha foi certamente um dos grandes filmes nacionais da década (em termos de público, de debate social gerado, de cópias pirateadas e vendidas no mercado negro e de repercussão no exterior, rendendo até mesmo um Urso de Ouro em Berlim). Mas trazia uma violência crua, um tanto estilizada, podendo ser enxergado como um tarantinesco do terceiro-mundo que oscilava entre a crítica social e a espetacularização da violência.

Garapa nada tem de cinema espetaculoso e não traz um grão de hollywoodianismo em suas veias. Acho isso absolutamente magistral: trata-se um filme brasileiro que possui uma estética que é absolutamente limpa de qualquer contaminação da estética para-as-massas do cinemão americano, ao mesmo que carrega uma grande vocação para a universalidade. É, sem dúvida, um dos filmes mais importantes, brilhantes e chocantes que fez o cinema brasileiro nesta década e nos contamina com uma sensação de indignação e urgência que são imprescindíveis na tentativa de transformar um quadro tão deprimente. E agora, esqueçamos o cinema e os textos sobre cinema, e mãos à obra!