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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

<<< My Summer of Love (de Pawel Pawlikowski, U.K., 2004 >>>


Edith Piaf, a diva da música francesa que viveu "such a wonderful & tragic life", é idolatrada por Tamsin, personagem da Emily Blunt nesta produção inglesa da BBC Films, My Summer of Love. A turbulenta e sofrida vida amorosa de Piaf, tantas vezes esmiuçada em biografias e filmes, acabou tornando-se algo de mítico, em que fatos comprováveis se misturam a lendas e invencionices, até que não saibamos mais separar o joio da mentira do trigo da verdade.

Tamsin conta para sua amiga Mona, por exemplo, que Piaf teve três maridos e cada um deles morreu "misteriosamente"; e que um deles era um campeão de boxe que foi assassinado por Edith com um garfo (!!!), mas ela nem teria ido parar na prisão pois "na França os CRIMES DE PAIXÃO são perdoáveis". Ao menos é esta a história picante e sangrenta que nos conta Tamsin, já nos fazendo suspeitar que sofre de uma certa mitomania: não somente uma compulsão a mentir, falsear, interpretar, mas uma atração pela mitificação do cotidiano, pela utilização de ficções deslumbrantes que excitem e seduzam... A verdade? Ora, ela é um mero estraga-prazeres que não nos deve impedir de, através do faz-de-conta, construir algo de mais interessante.


"Meu Verão de Amor": é bem verdade que este título não promete muita coisa, de tanto que soa como algo água-com-açúcar, Sessão da Tarde, romancezinho adocicado para moçoilas ingênuas ou pré-adolescentes românticas... Mas quem for a este filme de Pawel Pawlikowski esperando encontrar algo do naipe de Meu Primeiro Amor, aquele lá com o Macaulay Calkin, vai cair bonito do cavalo. O "climão" aqui é muito mais aquele de uma canção de Edith Piaf, uma peça de Ibsen ou um drama de Lars Von Trier. Pois por detrás deste título um tanto kitsch, encontra-se um filme altamente subversivo, onde a rebelião, a insubmissão e as rupturas com valores tradicionais são presenças constantes.

My Summer Of Love, filme ímpio e picante, um dos mais ousados e iconoclásticos filmes da última década (faturou um BAFTA de Melhor Filme Britânico em 2005), desde o princípio e desde o seu título é Ironia Encarnada, jogo de máscaras, simulação, sedução e mistério... Mas que presta tributo, na rebeldia contra a falsidade e o ilusionismo que narra, a um valor moral que costuma ser tão pisoteado pelos sistemas políticos e pelas religiões: a autenticidade.

Conheça Mona (Nathalie Press). Mona é uma adolescente que nunca conheceu o pai e cuja mãe acabou de morrer de câncer. Além do estado de luto pela mãe falecida, seu inferninho doméstico é complementado por uma aporrinhação extra: seu irmão mais velho, que já havia ido para a cadeia por roubos e pancadarias, um cara "esquentadinho" e de índole agressiva, resolveu se "regenerar" e entregar-se aos braços de Jesus Cristo. Constantes reuniões de crentes chatonildos e delirantes encontram-se na casa de Mona, que passa por eles resmungando, como Zaratustra no mercado, que DEUS ESTÁ MORTO.

Mona não engole a "metamorfose" do irmão. Consegue enxergar através das máscaras como se o irmão fosse de vidro, e percebe muito bem que este pretenso born-again Christian prossegue sendo, no fundo, por detrás da pose de abençoado, o mesmo homem truculento e autoritário.

A revolta de Mona contra seu irmão mais velho me parece motivada essencialmente pela indignação que ela sente diante da inautenticidade, da simulação, do fingimento, do faz-de-conta que reconhece no "teatrinho" religioso que o irmão interpreta, no "papel" que ele assume de Criminoso Regenerado Que Caiu de Joelhos Diante de Deus. "YOU'RE A FUCKING FAKE!" - eis o impropério que Mona lhe lança na cara feito um cuspe. A fé do irmão lhe aparece como um truque barato de um falsário sem talento. Quando o irmão, todo "metido" a messias, tem a presunção de se tornar o líder religioso que guiará à comunidade rumo ao Sumo Bem, ele aparece aos olhos de Mona como uma farsa a ser desmascarada, um embuste a ser denunciado, uma impostura a ser derrubada. 

É por isso que, me parece, uma grande virtude (ou "valor moral") é discutida e problematizada através desta narrativa envolvente de My Summer of Love: a AUTENTICIDADE. Me refiro àquela virtude que André Comte-Sponville chama de "boa-fé", mas que é conhecida também por honestidade, sinceridade, veracidade. Mona é uma espécie de encarnação da autenticidade. Autêntico é aquele que não mente, não se esconde detrás de máscaras e poses, não interpreta um papel diante do outro, mas quer ter sempre reconhecida sua verdadeira face. Autêntico é também aquele que não aceita ser engambelado, que não se deixa enganar com facilidade, que se revolta quando descobre que lhe mentiram, que prefere reconhecer uma verdade dolorida a crer numa mentira confortável.


Mona conhece, durante o verão, uma bela e misteriosa forasteira, Tamsin. Esta sedutora, cativante e excêntrica beldade morena, interpretada deslumbrantemente pela Emily Blunt, declara-se nietzschiana, atéia, materialista, hedonista, boêmia. Idolatra Edith Piaf e a beleza de seu destino trágico. Bebe vinho com o ardor de quem presta um tributo pagão ao deus Baco ou Dioniso. Toca o violoncelo com um grau de devoção ao instrumento que só alguém apaixonado pela Música consegue manifestar. É também, como ela mesma confessa, uma "fantasista", uma artista, uma Maya a estender ilusões e matrixes sobre os olhos dos mortais...

Estas duas, Mona e Tamsin, irão envolver-se num tórrido love affair lésbico de verão. Um romance  EFÊMERO POR PRINCÍPIO, na cabeça de Tamsin, mas... que no coração de Mona não consegue ser sentido apenas "ludicamente"... Um amor de verão é um amor próprio de quem não deseja laços que prendam, mas somente prazeres passageiros cuja delícia é pra ser sorvida, mas depois segue-se em frente, cada um em seu caminho. Um amor concebido como uma temporada de férias longe das mesquinharias do cotidiano, mas com a certeza de que este, o Cotidiano, voltará a reclamar seus direitos e impor sua presença amesquinhante. Mas é possível pré-determinar a validade de um amor? Pode-se prever, fazer um X no calendário, anotar na agenda, programando o dia em que cessará de existir? Se tantos amores que começaram lúdicos terminaram por ficar trágicos, talvez seja por esta essencial imprevisibilidade destes laços e vínculos em nossas vidas-correnteza, que fluem e fluem sempre...

O amor de verão, como o filme o descreve, tem de seus doçuras e belezas, de seus encantos primaveris e deleites sensórios extremos: Mona e Tamsin nadam no rio, transam ao relento deitadas entre violetas, rolam na grama úmida de orvalho; Mona e Tamsin dançam em transe, em completa entrega à música, e dormem na quadra de tênis em meio às taças de vinho esvaziadas; Mona e Tamsin beijam-se e tocam-se e lambem-se funda e molhadamente em cenas calientes que fariam enrubescer uma freirinha.

O "problema" é que Mona, que não tem pai nem mãe, que só tem um irmão violento mascarando-se detrás de uma fé patética, não vai conseguir levar este amor "na esportiva", na leveza, como se fosse coisa desimportante: Mona encontrou alguém em quem crê e confia, alguém a quem diz tudo, sem disfarces nem máscaras. Alguém no ombro de quem ela pode chorar. Alguém que a pode respaldar na fraqueza, fortalecer na revolta, contagiar na alegria e sustentar na tristeza. Alguém com quem fugir, pra longe, pra onde for, ainda que seja pro Egito ou pra Sibéria!

O que começou como brincadeira erótica, lúdicas peraltagens de amigas íntimas, vai tornando-se dramático a ponto de uma declaração de amor tão EXTREMA quanto esta surgir: "Se você me deixar, te mato!", diz Mona a Tamsin, "e na sequência me suicido." Ela fala a sério. E então o filme ganha contornos de tragédia shakespeareana e estas duas moças alçam-se, como personagens, a um status quase de Desdêmonas e Ofélias, de Julietas e Isoldas... 


Mona e Tamsin, nos deleitosos delírios de seu amor proibido, juntam-se também para se vingarem e darem o troco contra os homens filhos-da-puta com quem convivem. Poucos filmes na última década retrataram a "masculinidade" com tintas tão negativas, tão carregadamente dark. Os homens, nesta obra de Pawlikowski, só fingem que prestam, mas no fundo são uns fingidos, uns brutos, incapazes de verdadeiros compromissos afetivos, de fidelidade e intimidade profunda. São patriarcas de um reino decadente. Gostariam de continuar reinando como leões sobre leoas submissas e mais aparentadas com ovelhas, mas são a toda hora tripudiados, ridicularizados e debochados por mulheres muito mais inteligentes e espertas do que eles. My Summer of Love é talvez uma das mais belas celebrações da Insubmissão Feminina já a aparecer numa tela de cinema. 

Se há uma heroína nesta película, é ela, a insubmissão feminina, em especial aquela de Mona, que ergue-se numa ousadia comovente contra autoridades masculinas mofadas, obsoletas, "peitando" o irmão que se finge de santo e estourando as janelas do carro do pai de Tamsim, que é um marido adúltero. Mona e Tamsim são mulheres que não podem respeitar os homens ao seu redor pois estes são, em sua maioria, uns cretinos, em especial em suas vidas sexuais: são uns "falocêntricos", que só pensam com a cabeça de baixo e tem titica (e fé-em-Deus, é claro!) no lugar do cérebro. Este vínculo que entre elas se estabelece não só as une uma com a outra, mas une ambas contra um Inimigo Comum, o Macho-Man porco-machista-estuprante. O que faz do filme quase um MANIFESTO. Poético, pouco panfletário, mais insidioso do que ostensivo, mas ainda assim... um MANIFESTO feminista.


O problema é que os porcos-machistas-estuprantes-abusadores às vezes acontecem de ser os líderes religiosos da comunidade. De modo que ser feminista ou humanista sem confrontar estas autoridades "messiânicas" é impossível.

Os fiéis que, chefiados pelo irmão de Mona, estão levantando a cruz sobre o monte anunciam uma era terrível para o amor livre tal qual Mona e Tamsin estavam apreciando. A cruz levanta-se especialmente para ameaçar as "bruxas" e "feiticeiras", estas adolescentinhas nietzschianas insubmissas, sexualmente libertadas, de afetividade transbordante, para que voltem a ser obedientes, apáticas, submissas.

Toda uma cultura da penitência, da culpa, do pecado, da submissão, da obediência, toda uma representação da mulher ideal como "santa", "virgem", "impoluta", "submissa", "modesta", a mais dócil das ovelhinhas, está querendo impor-se - e isto num período histórico pós-Nietzsche, pós-Wilhelm Reich, pós-Woodstock, pós-anticoncepcional e pós-camisinha! Isto é o que não se pode aceitar: e estas mulheres se rebelam. E é uma rebelião bela, especialmente aquela de Mona, esta heroína tão sofrida e tão autêntica: uma rebelião daquelas que pretende re-estabelecer a autenticidade, pôr a verdade de volta no trono, devolver ao corpo os seus direitos e aos prazeres terrenos sua inocência, após tantos mercadores de ilusão e falsos messias terem tentado fazer a Lorota e o Faz-de-Conta triunfarem. A fé, aqui, aparece como algo que esconde, como véus de Maya, as inconfessáveis pilantragens de homens cuja opressão contra a mulher protege-se detrás de dogmas religiosos grotescos. E o amor transforma-se num ato de rebelião que pretende protestar contra o império da mentira e da repressão e reinstaurar como valor supremo aquilo que as religiões tanto pisoteiam: uma existência autêntica.


DOWNLOAD DO FILME EM TORRENT (via Pirate Bay- 700 MB)

2 comentários:

  1. Quero ver esse também!
    Gi

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  2. >>Mas quem for a este filme de Pawel Pawlikowski esperando >>encontrar algo do naipe de Meu Primeiro Amor, aquele lá com o >>Macaulay Calkin, vai cair bonito do cavalo

    Isso ja fui suficiente para me fazer ver o filme.

    Valeus

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