Liberdade de expressão, dizia George Orwell, é o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir. Voltaire demonstrou compreender isto muito bem quando disse, fidelíssimo ao espírito do Iluminismo: "Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo." Para ser algo além de uma piada ou uma fachada, a liberdade de expressão precisa valer tanto para nossos adversários quanto para nossos aliados, tanto para aquilo que nos fere os ouvidos quanto para aquilo que os acaricia... Pode a democracia existir sem ela, que possibilita a coexistência da diferença em sociedades complexas, irredutíveis a um pensamento único e que não mais se deixam governar pela força do dogma?
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Decerto que foi preciso uma imensa revolução de costumes, herdeira da pélvis de Elvis, do movimento hippie, do "é proibido proibir!" do Maio/68, de Whilhelm Reich e de Marcuse, dentre outras coisas, que tornou possível a enxurrada de "revistas adultas" que toma as bancas-de-jornais da década de 70 pra frente. O problema espinhento, que os movimentos feministas não deixariam de sublinhar, me parece ser o seguinte: se por um lado a "Revolução Sexual ocidental" gerou uma massiva libertação da sexualidade em relação a carolices e repressões quadradas, em contraste radical com o ferrenho ascetismo do mundo islâmico (que encerra até hoje suas mulheres detrás de pesadas burcas...), o Ocidente americanizado caiu no vício da comercialização barata do corpo feminino, coisificado, marquetificado, posto no moedor de carne... O próprio Flynt, em um momento de mea culpa, publicou uma clássica capa de Hustler, em Junho de 1978, em que dizia: "We will no longer hang women up like pieces of meat". Mas seu escrúpulo durou pouco, e o deleite pelos milhões com que a publicação recheava sua conta bancária prevaleceu...
O filme de Milos Forman é um ótimo retrato de uma vida punk: confrontadora, sacrílega, provocativa. Pois a vida de Flynt, como Forman a narra com seu talento habitual, foi altamente podreira: o pornógrafo passou tempo na cadeia, foi baleado por um desafeto, ficou tetraplégico, virou morfinômano, gastou milhões em fianças, enviuvou de uma suicida, entre outras desgraças. A presença de Courtney Love, encarnando visceralmente a esposa junkie e auto-destrutiva de Flynt, poucos anos após o suicídio de Kurt Cobain, só frisa ainda mais o caráter contra-cultural e escancaradamente transgressor desse casal para quem toda polêmica sempre foi pouca. Eles foram como Bonnie & Clyde da imprensa marrom.
Mas a obra de Forman, mais que uma mera cine-bio instigante de um personagem maldito, ao estilo do excelente Os Contos Proibidos do Marquês de Sade (de Philip Kaufamn), alça-se mais alto do que a mera descrição de um destino individual. É a crônica do intenso debate público que a figura de Flynt gerou em torno de questões como desrepressão da sexualidade, liberdade de imprensa e afronta a instituições religiosas estabelecidas.
É óbvio que é uma questão moral espinhosa decidir se, no caso da Hustler, a censura seria justificável. Uma democracia deve permitir que um magnata da imprensa, acusado por seus detratores de publicar revistas de um tremendo mau-gosto, fique milionário? Será que deve-se permitir que Larry Flynt utilize a Primeira Emenda como escudo para defender-se por estar faturando alto ao vender fotos de bucetas arrombadas e notícias falsas que cobrem de lama as autoridades religiosas adoradas pelas massas? A Hustler poderia sair impune ao criar uma matéria falsa onde diz-se que o pastor Jerry Falwell cometeu incesto com sua mãezinha depois de ficar bebaço de Campari?
O filme se vai, mas deixa impresso na memória do espectador o arco obsceno e herético que fez nos ares do zeitgeist este figuraça, Larry fuckin' Flynt. As perguntas que ele pôs à sociedade de seu tempo continuam tão dignas de serem postas hoje quanto eram então.
É óbvio que é uma questão moral espinhosa decidir se, no caso da Hustler, a censura seria justificável. Uma democracia deve permitir que um magnata da imprensa, acusado por seus detratores de publicar revistas de um tremendo mau-gosto, fique milionário? Será que deve-se permitir que Larry Flynt utilize a Primeira Emenda como escudo para defender-se por estar faturando alto ao vender fotos de bucetas arrombadas e notícias falsas que cobrem de lama as autoridades religiosas adoradas pelas massas? A Hustler poderia sair impune ao criar uma matéria falsa onde diz-se que o pastor Jerry Falwell cometeu incesto com sua mãezinha depois de ficar bebaço de Campari?
O filme se vai, mas deixa impresso na memória do espectador o arco obsceno e herético que fez nos ares do zeitgeist este figuraça, Larry fuckin' Flynt. As perguntas que ele pôs à sociedade de seu tempo continuam tão dignas de serem postas hoje quanto eram então.
Não é o meu preferiod , mas Milos Forman acertou em cheio...
ResponderExcluirAbraço
A matéria com o Falwell não é "falsa", é uma paródia, como fazem aqueles sites/jornais como "diário de Barrelas" ou Onion (ou o caceta-e-planeta, ainda que nesse caso não tenha nenhuma fachada de realismo). O primeiro publicou por exemplo uma entrevista onde o Netinho dizia que precisavam flexibilizar a lei "Maria da Penha" e o segundo publicou algo sobre a Sarah Palin ter praticado uns quinze abortos.
ExcluirNo caso do Netinho tiveram que tirar do ar a matéria, a assessoria idiota também nem entendia a diferença entre paródia e jornalismo e disseram que era uma vergonha para o jornalismo que publicassem uma matéria com declarações que ele não deu e etc. Que contestassem por difamação até que dava para entender, mas chamar de "jornalismo" e de "fraude" é burrice.