"Há muitas maravilhas, mas nenhuma
é tão maravilhosa quanto o homem.
Ele atravessa, ousado, o mar grisalho,
impulsionado pelo vento sul
tempestuoso, indiferente às vagas
enormes na iminência de abismá-lo;
e exaure a terra eterna, infatigável,
deusa suprema, abrindo-a com o arado
em sua ida e volta, ano após ano,
auxiliado pela espécie eqüina.
Ele captura a grei das aves lépidas
e as gerações dos animais selvagens:
e prende a fauna dos profundos mares
nas redes envolventes que produz,
homem de engenho e arte inesgotáveis.
Com suas armadilhas ele prende
a besta agreste nos caminhos íngremes;
e doma o potro de abundante crina,
pondo-lhe na cerviz o mesmo jugo
que amansa o fero touro das montanhas.
Soube aprender sozinho a usar a fala
e o pensamento mais veloz que o vento
e as leis que disciplinam as cidades,
e a proteger-se das nevascas gélicas,
duras de suportar a céu aberto,
e das adversas chuvas fustigantes;
ocorrem-lhe recursos para tudo
e nada o surpreende sem amparo;
somente contra a morte clamará
em vão por socorro, embora saiba
fugir até de males intratáveis."
SÓFOCLES (496-406 a.C.) - Antígona.
Tradução do grego: Mário da Gama Kury
in: A Trilogia Tebana - Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona
(Editora Jorge Zahar, RJ, 1989)
A admiração e o espanto frente ao engenho humano para a sobrevivência em habitats dos mais hostis, diante de predadores de força física e ferocidade largamente superiores, não é nada recente - como testemunha este lindo trecho da Antígona de Sófocles, uma das mais célebres das tragédias gregas. The Human Planet, seriado da BBC recheado com imagens deslumbrantes e estórias prodigiosas sobre a vida humana neste planeta Água, compartilha deste assombro pelos feitos do animal homo sapiens. Registrada por lentes de altíssima definição, a sobrevivência humana em desertos e geleiras, montanhas e selvas, é retratada de forma cativante, de modo a expor tanto a "plasticidade" adaptativa de nossa espécie quanto as forças descomunais e impiedosas de uma Natureza que nos supera, às vezes nos esmaga, sempre nos fascina. O vozeirão do narrador John Hurt (Dogville) e a trilha sonora grandiosa ajudam a fisgar o espectador e fazer suas mandíbulas despencarem ao chão. Cenas um tanto chocantes de homens obrigados a se alimentar de tarântulas e morcegos, por exemplo, ou enfrentando penúrias extremas em cus-do-mundo onde a civilização é precária, podem incomodar os estômagos mais sensíveis. Mas aí está outra das qualidades da série: re-inserir o homem no mundo natural, ao invés de referendar lorotas criacionistas, mas não se esquecendo de sublinhar o quanto o descompasso no desenvolvimento técnico-científico entre diversas culturas, sem falar nas cegueiras da ganância e do descaso que imperam nos países mais ricos (muitos tornados ricos através do saque imperialista, é claro!), condenaram vastas regiões e populações do globo a uma vida animalesca, semi-bestial, reduzida ao que a Hannah Arendt chama de labor: a dura lida pela mera sobrevivência física, subtraída a existência de tudo o mais que torna bela a condição humana. Recomendado!
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