“I want more life, fucker!”
Los Angeles, 2019. Num planeta que parece afundado em trevas eternas, com ruas iluminadas só por letreiros de néon, mega telões publicitários e faróis de automóveis voadores, perambula o solitário exterminador de replicantes Deckard (Harrison Ford). A terceira rocha após o Sol, agora não mais o único planeta habitável da Via Láctea, está superpovoada e imunda, repleta de mercados caóticos onde japas, egípcios, árabes e cyberpunks se misturam na salada de frutas do pós-Globalização Total. Com o desenvolvimento técnico e científico, os progressos da genética eugênica e o domínio enfim conquistado do espaço exterior, a humanidade terráquea se locomove em foguetinhos, mora em arranha-céus imensos, numa cena urbana totalmente verticalizada, e já partiu inclusive em uma empreitada de imperialismo inter-estelar, tendo instalado colônias em outros planetas (mais de 25 anos depois, o Avatar de James Cameron exploraria temática semelhante na invasão imperialista do planeta Pandora dos Navi, mas com resultados artísticos pífios quando comparados com o clássico de Ridley Scott). Apesar de tudo isso, a humanidade ultra-tecnológica não venceu nem a ganância, nem a destruição ambiental, nem a guerra civil, nem a mortalidade.
Uma raça de seres artificiais – os replicantes – foi criada à imagem e semelhança do homem (coitados!) pela Tyrell Corporation, mega-corporação capitalista que vende seus homens-máquina para trabalhar como escravos na “gringa”. Nos outdoors de uma Terra que se assemelha a um formigueiro e que fede à anarquia e decadência, anunciam-se as benesses das colônias espaciais, onde os terráqueos são convidados a passar férias longe do inferninho terráqueo. Deckart é novamente recrutado por seu chefe. Sua missão: encontrar e exterminar quatro replicantes rebeldes, todos da melhor estirpe (Nexus 6), dotados de inteligência artificial, emoções humanas e prazo de validade perto de expirar, que fugiram de sua prisão em algum lugar do cosmos e desembarcaram na Terra com intenções ocultas.
Este seria somente mais um filme babaca a ser exibido no Super Cine se tratasse somente de uma guerrinha entre as máquinas que o homem criou e o policial do Bem que irá, como usualmente, salvar o mundo após derramar muito suor e largar muitos cartuchos de bala pelo caminho. Mas o que interessa em Blade Runner não é tanto a perseguição do caçador aos replicantes – não estamos frente a um filme de ação espetaculoso onde tudo é pretexto pra correria, rajadas de metralhadora e o implacável heroísmo de um americano musculoso. Talvez por isso haja quem xingue o filme por ser muito paradão, cerebral, "filosófico". Vejo nisso muito mais uma virtude do que uma falha. O que interessa de fato é a meditação profunda que o filme nos convida a fazer a respeito dos rumos humanos na era da eugenia, da clonagem, da manipulação de genomas, da mercantilização do DNA, da inteligência artificial e da exploração econômica do espaço exterior. Isso e muito mais faz do filme algo equiparável a 2001 - Uma Odisséia no Espaço (Stanley Kubrick), Solaris (Tarkovsky), Metropolis (Fritz Lang) e Matrix (irmãos Wachowski) como um classicão do sci-fi cult de estratosféricas ambições filosófico-sociológico-científicas.
Blade Runner narra uma espécie de Levante Proletário Futurista, uma Rebelião de Escravos da era espacial-cibernética que vai, aos poucos mas irremediavelmente, tornando-se a nossa era. Os replicantes são os servos/escravos/proletários desta sociedade e sufocam sob o jugo da opressão. São utilizados como bestas de carga, instrumentos do capital, de modo que o trato humano em relação a estas criações biológicas fere um dos preceitos básicos da moral kantiana: “jamais utilizar um ser racional como mero meio para um fim”.
São tempos, não muito diferentes ou distantes dos nossos, onde existem “engenheiros genéticos” que mais parecem “cientistas malucos da era do DNA”, brincando de deus e gerando capetices. São centenas de J. F. Sebastians inventando em laboratório os mais estranhos e aberrantes seres vivos, a seu bel-prazer, todos eles destinados a servir. O filme não cita em nenhum momento, aliás, que haja uma Legislação ou um Código de Ética regendo a engenharia genética, que aparece como que transformada em “negócio privado”, imune ao direito, em que vale-tudo caso os lucros a auferir sejam altos.
O cenário distópico e sombrio imaginado por Philip K. Dick e construído em película por Ridley Scott me parece, por isso, quase uma cautionary tale. Esta “lenda” pós-mô nos mostra um futuro inglório, a ser cuidadosamente evitado, onde a tecnocracia das grandes corporações, mancomunada com uma engenharia genética caída em anarquia, deu merda da grande. "I've seen the future: it's violence" (Leonard Cohen).
Entre os replicantes rebelados e os humanos a hostilidade é tamanha que chega a caracterizar guerra civil. O que fica óbvio é que os replicantes, especialmente o líder do bando, encarnado por Rutger Hauer, estão furiosos. Não são nada “humanistas”: tão mais é pra misantrópicos. Como esquecer da cena, agoniante, dolorosa, quase grotesca, em que a criatura e o Criador (Tyrell) encontram-se e o filho-replicante assassina seu criador furando-lhe os olhos com as próprias mãos? Mata o Criador por tê-los fabricado para serem escravos, sem enxergar neles qualquer “dignidade” além daquela de instrumentos, destinados a uma vida de servidão, temor e esforço, vivida sob o jugo de uma força esmagadora. Mata o Criador por tê-los feito com prazo de validade tão limitado, mas principalmente por não ter compreendido que não se trata, para quem vive a experiência existencial replicante de dentro, de um mero prazo de validade, mas de uma morte tão angustiante, trágica, dolorosa e incompreensível quanto qualquer morte humana.
“All these moments will be lost in time like tears in the rain”. O lamento do replicante poderia muito bem ser o belo queixume de um poeta humano que se queixa, melancólico, da transitoriedade da vida e de tudo dentro dela. Neste momento, a tristeza e a gravidade com que se tinge todo o ser do replicante representa como que uma “epifania” que faz com que Deckard enfim enxergue a profunda unidade entre eles. Não há como considerar como um robô ou um computador-animado uma criatura que chora diante da perspectiva do próprio túmulo, e que olha para suas experiências vividas com o desconsolo de quem suspeita que a morte será como uma tempestade que as dispersará inteiramente, como lágrimas debaixo da chuva.
Blade Runner (Director's Cut): Download
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