“I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.”
(Frida Kahlo)
Há um quadro de Frida Kahlo (1907-1954) que acho particularmente perturbador. A perturbação só aumenta quando sabemos da história de vida da pintora mexicana, que, se foi repleta de experiências intensas e ocorrências pitorescas, também não teve escassez de amargores e feridas. Frida teve a coluna seriamente lesionada, na juventude, num acidente de ônibus. Não ficou paraplégica por um triz. Anos depois, teve que ver aquele que seria seu primogênito no formol: feto abortado de uma mãe que nunca se tornaria. Mais tarde na vida, um de seus pés, gangrenado, precisou ser amputado. Naquela obra perturbadora de que eu falava, Frida pinta seu corpo cravejado por pregos, enquanto seu rosto, com uma expressão extremamente grave, é banhado por lágrimas torrenciais. As célebres sobrancelhas contínuas desenham quase uma gaivota sobre seus olhos. No local onde deveria estar a coluna vertebral, ela pinta, fazendo uma metáfora visual extremamente poética (e extremamente dolorida), uma dessas colunas de concreto greco-romanas concebidas para sustentar altos edifícios - mas ela está arruinada, roída pelo tempo ou por algum terremoto. A tristeza por sentir que seu alicerce está em ruínas, que sua própria coluna não mais a sustenta de pé, extravasa de seu mundo interior, incontenível como uma tempestade, e carrega o canvas com angústia. "Mas pra que preciso de vocês, pernas, se tenho asas que me permitem voar?" - tenta ela consolar-se. Mas antes de morrer, pede que seu corpo seja cremado e escreve: “I hope the leaving is joyful; and I hope never to return.” Ao modo budista, ela possui apenas a esperança e o desejo de que não exista renascimento e que este corpo tão dolorido possa encontrar seu descanso eterno nas tranquilas pradarias do nada.
Frida, porém, não é uma mulher do queixume, da histeria, da lamentação estéril. Sua vida transposta para o cinema também aparece repleta de excitação, ousadia, experimentação, exuberância e beleza. Não há nada de Maria do Bairro naquela mexicana cheia de vitalidade e espírito, que sabia enxugar uma tequila, cantar e dançar nos cabarés e chegou a experimentar aventuras sexuais das mais variadas, das lésbicas às extra-maritais, das inter-raciais às entre-gerações, chegando a ter inclusive o Trotsky em sua cama. Se há algo de heróico neste destino, talvez esteja principalmente no fato de que esta é uma mulher que não se deixou desanimar pelos golpes brutais que a vida lhe impôs sem que ela os merecesse. Eis o mundo, algo que fere inocentemente, que mata sem culpa, que machuca sem querer, e não há como viver uma vida plena sem o reconhecimento destas múltiplas (e sublimáveis) imperfeições dele. O mundo pode até nos rasgar a carne e nos levar uma perna, mas a dor que sentimos não nos condena ao silêncio, nem necessariamente implica na morte do humor: podemos expressar a dor, ou mesmo rir dela, e, com isso, tornar sublime ou deleitável o que talvez, se nos calássemos, não passaria de uma triste aquiescência diante da bruteza de uma Natureza indiferente. A arte de Frida, me parece, é ao mesmo tempo um protesto e uma celebração da condição humana: um protesto diante da dor imerecida, do sofrimento dos inocentes, das injustas feridas infligidas por forças brutas; mas também uma celebração da "pulsão de primavera" que faz com que nasçam flores na terra onde depositamos nossos cadáveres.
Crianças futuras vão brincar entre as flores dos jardins sob os quais nossos ossos vão estar a descansar.
Há uma cena que acho particularmente emblemática no filme de Julie Taymor e que, me parece, passa a essência de Frida Kahlo: Diego Rivera, tempos depois de conhecer sua futura esposa, quando estão prestes a fazer amor pela primeira vez, é alertado por Frida: "tenho uma cicatriz". Pode-se notar na expressão de Salma Hayek a apreensão, a temerosa ansiedade, enquanto ela vai sendo despida e aguarda o olhar de Diego e a resposta afetiva que o acompanhará. Diante de uma cicatriz, as mais variadas respostas emocionais podem emergir, a maioria delas, imagino, desprazeirosas: uma certa "repulsa" diante do espetáculo da carne macerada, ou uma certa angústia frente à uma prova viva da fragilidade dos corpos e das marcas que os choques e acidentes podem deixar permanentemente nela, ou um calafrio ou arrepio de temor típico de quem imagina "ah! se acontecesse comigo..." Diego Rivera, porém, beija a cicatriz de Frida Kahlo e lhe diz que ela, Frida, é perfeita. Não é à toa que estes dois destinos se entrelaçaram tão intimamente, apesar dos percalços, do divórcio, das tretas, dos estranhamentos: não é qualquer dia que encontramos alguém que nos beije as cicatrizes e que saiba amar-nos como somos, com todas as imperfeições incluídas.
A arte de Frida nos convida a amar o imperfeito, compadecer dos sofrimentos imerecidos, ajudar os camaradas em apuros, marchar nas ruas ao lado dos oprimidos e celebrar, aqui-e-agora, os poderes criativos destes mortais que somos enquanto não nos tornamos ainda os mortos que seremos.
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a Frida é maravilhosa! sua dor se traduziu em arte, da mais original... sonho um dia conhecer a casa que ela morou e virou museu ( :
ResponderExcluirHey Vanessa! Pôxa, tb adoraria dar um pulo nessa goma-museu que vc citou... é lá na Cidade do México mesmo? Me parece que a Frida é uma dessas artistas que tem uma vida tão interessante quanto à obra, e que quanto mais descobrimos sobre a biografia dela mais entendemos e nos envolvemos com os quadros. Bem, valeu pela visita e pelo comment e volte sempre!
ResponderExcluirVou voltar mais vezes, podexá ( :
ResponderExcluirÉ na Cidade do México mesmo, é a Casa Azul... depois que ela morreu a casa onde morou virou museu, deve ser demais!! Tá lançando no Brasil a biografia dela em que foi baseado o filme, quero ler :D
"Crianças futuras vão brincar entre as flores dos jardins sob os quais nossos ossos vão estar a descansar."
ResponderExcluirVerso tão bonito produz um até um desejinho de morte, travestido de vida...
Gi.