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domingo, 3 de abril de 2011

<<< Europa (Lars Von Trier, 1991) >>>








 
DEUS VOMITA OS MORNOS?


 "Assim, porque és morno, e não és quente nem frio,
vomitar-te-ei da minha boca."
BÍBLIA "SAGRADA", Apocalipse 3:17


“Só os padres julgam da veracidade de uma idéia
a partir da quantidade de sangue que ela fez derramar.”
SIMONE WEIL. Opressão e Liberdade.




O narrador Max Von Sydow, com voz soturna e grave (que se assemelha àquela que John Hurt emprestará à Dogville), fala no tom de um hipnotista que conduz um paciente a um estado de torpor. É como se o espectador do filme, antes de embarcar neste "Trem Fantasma" vertiginoso que Lars Von Trier concebeu, tivesse que ser posto num transe hipnótico adequado para vivenciar este pesadelo kafkiano que explora as entranhas da Alemanha de 1945, ainda atolada no sangue e na culpa da imensa carnificina mundial.

Obra que encerra a "Trilogia Europa" (complementada por The Element of Crime [1984] e Epidemic [1987]), este Europa é um dos filmes mais “estilosos” e "classudos" de Lars Von Trier. Nele, o cineasta dinamarquês dá um “show” de virtuosismo cinematográfico, remetendo aos mais clássicos noirs e aos filmes de espionagem mais sombrios de Hitchcock (não é à toa que a trilha sonora cita a clássica composição de Bernard Hermann para Vertigo – Um Corpo Que Cai).

Kessler é um forasteiro americano que vai para a Alemanha a fim de trabalhar na Zentropa, empresa de transporte ferroviário, numa época escabrosa em que o país é só escombros. Nas estações de trem, multidões de esfomeados, inclusive crianças maltrapilhas, mendigam. “Você escolheu um curioso momento para fazer turismo por estas terras desoladas, Herr Kessler”, lhe diz a Srta. Hartmmann, membra da família que fundou a Zentropa, e com quem o americano emigrado irá se envolver sexualmente numa trama altamente noir.

Kessler, mostrando seus laivos de idealismo, comenta que suas razões para estar ali nada tem de turísticas: “I had to come here”, comenta, como se estivesse cumprindo um dever moral e não somente aproveitando uma possibilidade profissional. “I believe that taking a job as a civilian here is a small contribution to making the world a better place”.

A princípio não se compreende direito o que este excêntrico homenzinho vê de tão “nobre”, eticamente falando, em seu novo emprego. Seria um meio de mostrar que o ódio contra os alemães não deve prosseguir contaminando os corações? Que a Alemanha, apesar de seus crimes inomináveis durante a guerra, merece o perdão da América (e do mundo)? E será que Kessler, agindo desse modo, vai conseguir mesmo fazer deste mundo um "lugar melhor"?


“It's time someone showed this country a little kindness”, diz Kessler, certo de poder ser o Senhor Ternurinha que vai espalhar misericórdia e gentileza made in USA pelas sombrias ruínas alemãs...

Não é que as intenções de Kessler sejam más – decerto não são. E os próprios alemães o reconhecem: seu empregador, Hartmman, faz dele um juízo positivo: “Kessler é um jovem sensato, que sabe que para cicatrizar as feridas da guerra nós precisamos dar as mãos”. Mas este é um filme de Lars Von Trier, artista que parece ter um prazer perverso em escancarar o quanto os mais nobres intentos acabam degringolando em inesperadas catástrofes...

O "bom moço" Kessler, tal qual a boa moça Grace (de Dogville e Manderlay), vai aprender de modo cruel quão distantes ficam a intenção planejada da efetiva transformação da realidade dada. Um tema recorrente retorna: Von Trier adora mostrar o esmigalhamento dos planos idealistas de personagens “metidos a bonzinhos” que acabam, em última análise, realizando os piores horrores. 

É que “fazer o bem” e “construir um mundo melhor” nunca é tão simples quanto os idealistas, em seus sonhos acordados, fantasiam. E este americano chega à Alemanha certamente iludido quanto às suas possibilidades concretas de “espalhar a ternura” através de um país onde os Aliados estão enforcando os alemães e dependurando-os nos postes com placas de “Lobisomem” coladas aos cadáveres pendentes...


O cessar-fogo ocorreu há pouco, mas a 2ª Grande Guerra ainda não acabou. Os americanos, na Alemanha, estão explodindo guindastes, apossando-se de patentes de empresas químicas e destruindo armamentos, tudo em prol do impedimento da ressurreição militar alemã. Já os alemãos que contribuíram com os aliados durante o conflito estão sendo assassinados pelos nazistas. É um tempo de sabotagem, de desconfiança, de tumulto... Tanto que o coronel americano oferece a Kessler um revólver, dizendo que “não se pode fazer um mísero movimento neste país sem uma arma”. Nosso nobre idealista recusa. 

Este homem, que estava na Alemanha na esperança de dar um "bom exemplo" de "reintegração" pacífica entre os povos, que se recusava a continuar sendo bélico e queria trabalhar pela cicatrização das feridas de guerra, irá descobrir, para infelicidade de suas ilusões de estar “do lado do Bem”, que a empresa onde está trampando transportava judeus para os campos de concentração. O trem das Boas Intenções se extravia e cai no pântano da vergonha. 

Estar trabalhando para a Zentropa, o que ele julgava que pudesse ser uma posição frutífera, passa a ser uma viscosa gosma de podridão e asfixia. E ele só descobre este “detalhe” depois que já se casou com a Srta. Hartmman, filha do magnata dos transportes que fez de seus trens imensos vagões-da-morte para aqueles seres humanos que os nazis viam como nada mais que “gado humano” a ser abatido nas mil Auschwitzes do III Reich....

Lars Von Trier

Por mais “puro” que a gente se pretenda, uma coisa é a gente achar que possui “princípios éticos” excelentes, outra é colocá-los à prova em meio à uma realidade brutal cheia de relações sociais corrompidas. O americano "metido a bonzinho" logo irá se enfezar, enlouquecer, ter um ataque psicótico e notar em delirante desesperado quão inúteis eram suas nobres intenções. Von Trier constrói uma eloquente narrativa mostrando algo que ele frisa com frequência: um sujeito que quer ser "bondoso" mas é “arrastado por forças maiores” a cometer o mal.

Ah! a "fragilidade da bondade"! (lamentemos aproveitando a expressão de Martha Nussbaum...)

Por estas e outras, Europa merece lugar de destaque na extensa filmografia que lida com a “culpa” da Alemanha de Hitler, alguns  filmes tratando especificamente dos julgamentos a que líderes e funcionários nazi foram submetidos (caso do clássico Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer, ou do recente O Leitor, de Stephen Daldry), outros à procura de “histórias edificantes” em meio à grotesca barbárie (caso de A Lista de Schindler, de Spielberg, e O Pianista, de Roman Polanksi), até os inumeráveis que lidam diretamente com o Holocausto e suas múltiplas facetas (Noite e Névoa [Resnais, 1955], The Sorrow and the Pity [Ophuls, 1959], O Diário de Anne Frank [Stevens, 1959], A Escolha de Sofia [Apkula, 1982], Europa Europa [Holland, 1990], A Vida é Bela [Benigni, 1997], Amen [Costa-Gravas, 2002], Os Falsários [Ruzowitzky, 2007], Shoah [Lanzmann, 1985], Arquitetura da Destruição [Cohen, 1989]).

Importante frisar ainda que o debate religioso, que se dá na cena do jantar entre os poderosos capitalistas alemães, também é de pleno interesse e ecoa profundamente nos episódios do filme. Kessler, que declara não ser um homem religioso, “provoca” o padre dizendo que, no campo de batalha, cada um dos exércitos imagina que Deus está do Seu lado (tal procedimento já foi muito bem ironizado no clássico folk de Bob Dylan “With God On Your Side”). O padre retruca que, apesar de “Deus estar do lado de todos”, “quando alguém luta com fervor por uma causa, Ele [Deus] perdoa mais fácil quem desobedece Suas leis”.

Argumento absurdo e lunático, e pra lá de perigoso, que transforma do fanatismo num fator propiciador da clemência divina e que convida o crente a cometer os piores horrores, já que a “ardência de sua fé” fará com que tudo seja mais facilmente perdoado pelos “tribunais lá de cima”. Simone Weil, cáustica, bem percebeu a absurdidade desta idéia: “Só os padres julgam da veracidade de uma idéia a partir da quantidade de sangue que ela fez derramar...”

O mesmo padre, voltando a deslindar o fio de sua teologia sanguinária, garante que os únicos que Deus não perdoa são os “mornos”, os “indiferentes”, os “descrentes”, aqueles que “não tomam partido”. Poucos personagens de Trier são tão assustadores e monstruosos quanto este pregador. Michael Haneke, com seu A Fita Branca, filme que parece influenciado pelo “climão” sombrio e pebê escuraço de Europa, também conseguirá vastos efeitos acabrunhantes com um personagem muito semelhante --- o pastor torturador-de-crianças daquela aldeia quase dogvillica... 

É quase uma cena de filme de terror quando este padreco-capeta, citando a Bíblia, diz: “porque és morno, nem quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca”. Sempre que leio este versículo apocalíptico, imagino um Deus mais cruel que qualquer Lúcifer, exigindo devoção fanática e sacrifício numa horrorosa orgia de prepotência... Lars Von Trier, enfant terrible e notório anti-Cristo, mais uma vez realiza aqui um notório "vade retro, cristianismo!" 

Minha impressão é que Von Trier receita altas doses de ceticismo, desconfiança e cáustica ironia que nos esfriem os ímpetos cegos, unilaterais e dogmáticos e nos livrem de sermos xiitas e esquentadinhos. Muitas vezes, parece ensinar Trier, aqueles que com mais ardor imaginam estar do lado do Bem são justamente os que mais sangue alheio acabam por derramar.


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