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quarta-feira, 13 de abril de 2011

<<< Um Ano Mais (Another Year, de Mike Leigh, U.K., 2010) >>>


São raras e preciosas as obras-de-arte que tem sabedoria a nos transmitir. Isto se compartilha bem pouco na Era da Mercadoria! Ao contato com estas escassas e esparsas obras sábias, nos sentimos revigorados e com novo ânimo, dotados de um novo saber que nos ajuda a melhor viver. É o que os franceses chamam de savoir-vivre, um tipo de ciência fecundo e primaveril, que contrasta com os saberes meramente livrescos e eruditos (que não impedem ninguém de viver no "inverno da alma" como o Fausto de Goethe).

O cinema do mestre Mike Leigh, que sedimenta-se cada vez mais como um dos artistas britânicos mais sábios de nossos tempos, transborda de sensibilidade, lucidez e empatia. Com sua atitude pé-no-chão, anti-espetaculosa, sóbria e realista, a arte de Leigh descreve as relações humanas com um olhar dos mais verazes. Fiéis ao verdadeiro são todos os seus procedimentos artísticos. Seus melhores filmes --- meus prediletos são Segredos e Mentiras (1996), que faturou a Palma de Ouro em Cannes, Naked (1993) e All Or Nothing (2003) --- revelam um cineasta capaz de envolver-se intensamente com seu elenco de atores a fim de despertar neles as mais autênticas vivências e emoções, revelações e catarses. Do outro lado do Atlântico, Robert Altman e Paul Thomas Anderson são outros que realizaram proezas, à maneira de Leigh, com um cinema "de ator" que não deixa de ser autenticamente autoral.


Mike Leigh: revolucionando o melodrama a golpes de sabedoria

O centro focal de Another Year é um simpático casal de velhinhos (Jim Broadbent e Ruth Sheen) que nos faz testemunhar todos os encantos de um amor tranquilo. O filme é uma singela homenagem de Leigh àquelas virtudes que possibilitam que os humanos se amem, ou ao menos que se ajudem, se respaldem, se unam contra os rasgos brutais da agressão e os terríveis calafrios da solidão. Através da narração aparentemente despretensiosa de "apenas mais um ano" na vida destes ternos pombinhos da Terceira-Idade, Leigh faz um fértil "ensaio" sobre a comunicação, o companheirismo, a fraternidade.

Seria desleal reduzir o filme a máximas, ou espremê-lo até arrancar uma "moral da história", mas o "espírito" de Another Year me parece impregnado desta percepção quase banal (mas tão raramente posta em prática): gentileza gera gentileza. Há algo de very british no modo como estes personagens se tratam, mas não se trata só de polidez e recato: o que o filme mostra é a ternura vivida como um fio condutor da vida. É em virtude dela que este casal prossegue tão doce e tão zen em seu trato cotidiano, apesar de viverem num meio social onde não são incomuns a depressão, a cisão familiar, o alcoolismo, o niilismo, a crônica carência afetiva etc.

Estes serenos velhinhos nada têm das ilusões românticas típicas de jovens sonhadores e inexperientes, que deliram platônicamente sobre amores redentores, incondicionais, mais fortes que a morte. A sabedoria de ambos parece talhada a golpes de desilusão (e é ótimo para o amor real, parece sugerir o já velhinho Leigh, que as ilusões que o obstaculizam caiam por terra.) Nenhum dos dois parece demandar do outro algo que este não pode ser: conhecem-se bem demais para exigir do outro o impossível e desencadear, com isso, um séquito de frustrações, mágoas e represálias. Eles estão em paz na aceitação mútua e jovial daquilo que realmente são. Neste casal, os arroubos desordenados da paixão são quase nulos, mas eles vivem muito bem sem isso, no entanto, numa espécie de torrente contínua de comunicação franca, chamegos suaves e auxílio mútuo. É o amor quando encontra seu ponto de repouso, seu porto, seu ninho.

A autenticidade e a solidez deste laço permite a este casal viver uma vida aberta ao mundo e à uma sociabilidade mais pautada pela ética que pelo hedonismo. Não há nem sinal, neles, do "solipsismo a dois" que faz com que muitos pares acabem por banir toda a exterioridade de seu vínculo exclusivista. Em Another Year, a terna simbiose do casal protagonista não impede que eles estejam sempre muito disponíveis para dar uma forcinha aos amigos e parentes necessitados (desde um familiar que acabou de enviuvar e necessita de apoio na hora do luto até a divorciada deprê em crise de meia-idade, que morreria de cirrose depois de tanta bebedeira se não fosse o acolhimento dos camaradas). O casal feliz (sim, eles existem!) que Leigh retrata é comovente e exemplar no modo gentil e compreensivo com que lidam com todos os perrengues da vida; ambos são excelentes ouvintes, cheios de bom-humor e leveza, que tudo fazem para libertar de seus fardos os semelhantes que sofrem. Belo e inspirador.

Lesley Manville: excelente atriz inglesa capaz de visceral entrega a  personagens desafiadores

O cinema de Leigh, que sempre volta seu olhar para a gente comum, procura não só revelar o que há de extraordinário por detrás da aparência ordinária do common folk, como também convida o espectador a transcender diferenças através da percepção de uma notável irmandade do afeto. Quase tudo aquilo que os personagens de Leigh sentem na tela nós espectadores sentimos como potencialmente nosso: "nada do que é humano me é estranho", nos convida a sentir a arte deste grande cineasta. E o que ele expressa com mais força ainda é o poder da compreensão, do diálogo e da gentileza na construção de relações humanas que sejam menos agressivas, competitivas e conflitivas do que estamos acostumados a aceitar em nossa era selvagemente capitalista e individualista.

Há raros cineastas que tenham realizado uma obra que nos ensina tanto sobre como nos relacionarmos de modo mais sábio e, portanto, mais feliz (pois vínculos muito vivos unem a sabedoria à felicidade: a primeira não é justamente o saber que possibilita a segunda?). Depois de assistir uns 7 ou 8 filmes dele (alguns deles várias vezes), considero que há poucos artistas que tenham realizado mais que Mike Leigh em prol do que Lennon chamava, em seu utópico devaneio ateísta e humanista ao piano da imaginação, de "Brotherhood of Man".


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