Gustave Klimt (1862-1918) |
A maior polêmica sobre a Árvore da Vida, me parece, é esta: seria ela um legítimo fruto da terra, para usar a expressão de André Gide, ou sua semente teria sido plantada por um jardineiro celeste? Nós, animais e plantas, temos uma raiz puramente terrestre, ou estamos de algum modo enraizados no divino? Somos fruto de um acaso ou de um plano? Um acidente da matéria, tão insignificante quanto um buraco negro, ou criações de uma divindade inteligente, de um "divino relojoeiro"? E as folhas que caem ao outono... fazem-no sob a pressão da "pulsão de primavera" (como dizia o jovem Nietzsche, ébrio das beberagens de Dionísio...), ou seria pois o inverno há de ter, afinal de contas, a última palavra?...
O filme de Terence Malick possui uma qualidade rara não só no cinema, mas nas artes em geral: a capacidade de refletir sobre as mais extremas das questões humanas, os maiores dilemas da nossa condição terráquea, sem jamais cair no dogmatismo, no fanatismo ou na convicção excessiva. É um filme que mantêm sempre uma imensa janela aberta para o Mistério. Uma brisa sopra, suave e constante, pelas frestas desta obra tão doce e tão sábia.
Mesmo nos momentos em que flerta com um certo esoterismo new age ou uma certa retórica de livro de auto-ajuda, a obra não soa jamais como misticismo barato. Mesmo quando abusa de efeitos especiais e chapa nossos olhos com imagens deslumbrantes, não cai jamais naquele espetacularismo exorbitante que, ao menos para o meu paladar, estragou o Fonte da Vida de Darren Aronofsky. Mesmo quando o filme entra em "clima de missa", outra coisa que usualmente me dá um certo asco, Mallick prossegue dando-nos amplo material para reflexão e deslumbramento. Eis um filme muito inteligente e sensível que se debruça sobre os mais abissais dos mistérios ditos "religiosos". Desde o Dúvida, de John Patrick Shanley, que o cinema não se aventurava com tamanha ventura por estes picos e abismos da metafísica.
Este poema visual de Malick interessa-se essencialmente, me parece, pela sacralização do cotidiano. Este filme não nos fala de um Deus transcendente e distante, que viveria como que remoto e separado da "Criação". O divino, que as principais doutrinas e mitologias monoteístas costumam "exilar" da Terra, varrendo-o para uma "outra dimensão", a partir da qual Ele teria criado algo exterior a si, é aqui radicalmente re-interpretado numa outra chave: uma chave imanentista, panteísta, cosmológica, que se assemelha mais à visão-de-mundo de Spinoza do que aquelas do cristianismo, do judaísmo ou do islamismo. O "misticismo" de Mallick assemelha-se àquele do poeta William Blake, que nos convidava a enxergar o Universo num grão de areia:
To see a world in a grain of sand,
And a heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand,
And eternity in an hour.
(William Blake)
As fronteiras entre Criador e criaturas são derrubadas a golpes de poesia pela ousada câmera de Mallick até que estas "duas" entidades supostamente diferentes se misturem numa única sopa cósmica, cuja imensidão e infinita variedade o espectador esperto há de experenciar com deleite e estarrecimento. Nunca foi mais transparente para mim este insight hinduísta-budista-zen: o Uno é múltiplo! Ou: a multiplicidade, somada, forma Um. São coisas que não cabem na palavra. Que, quando tentamos descrever verbalmente, escorregamos na banana. São indizíveis, inefáveis, intraduzíveis, in-significáveis.
A fórmula do panteísmo spinozista, Deus = Natureza, parece cair como uma luva para a visão-de-mundo que anima A Árvore da Vida. Mas, não à toa, Spinoza em sua época foi excomungado pela Igreja, tratado como um herege, estigmatizado como persona non grata pelas autoridades eclesiásticas, já que seu panteísmo tanto se assemelhava a um ateísmo... Malick, apesar de sua serenidade, de sua sabedoria tranquila, de seu método de proceder mais por alusões e sugestões do que ditados e ditames, ainda assim corre o risco de ser considerado pelos de mente estreita um "herege", um deturpador do cristianismo...
A maior parte das doutrinas religiosas trabalha através de cisões imaginárias entre "dimensões da realidade": fantasia-se sobre um certo Paraíso, imaginado como um lugar purgado de todas as impurezas que maculam nossa existência terrestre, e um certo Inferno, onde todo o mal e todo o sofrimento estariam concentrados e onde os ímpios e infiéis seriam, no além-Túmulo, tostados como frangos-assados. O sonho (vão) do homem monoteísta é poder superar a ambiguidade e a ambivalência intrínsecas à vida - a coexistência, no mesmo plano, do amor e do ódio, da delícia e do sofrimento, da luz e do fogo, do Sol e das trevas. O sonho do homem que crê em um Deus transcendente é um dia ser "resgatado" desta "dimensão sub-lunar" onde se encontra, "alçado" a outro plano, aquele de uma beatitude perfeita, de uma felicidade sem mácula, de uma vida sem sofrimento...
Terence Mallick não referenda este sonho: ele talvez seja absolutamente vão. Ao invés desta ânsia por um Deus que nos é alheio e distante, ele nos convida a outra coisa: a amarmos tudo, todas as folhas e todos os raios de luz, todas as nuvens (mesmo as nubladas) e todos os corpos celestes (mesmo aqueles que, chocando-se contra planetas, provocam a extinção de espécies). Um clima de amor fati nietzschiano, temperado com uma certa sabedoria spinozista, parece-me emanar desta obra. Malick não escamoteia o conflito, o egoísmo, a morte, o sofrimento: crianças e jovens morrem, pais passam por terríveis lutos, Deus jamais responde nenhuma prece. Tudo isto é verdade. Mas também a brisa e o mar são reais, e as estrelas que brilham em aparente indiferença por nossos destinos, sem se incomodarem com nossas virtudes ou crimes. A imensidão parece contentar-se em existir. Ela, imensidão, nem precisa fantasiar-se com os adornos do sentido. É possível existir, não ter sentido e, ainda por cima, ser belo. E melhor: é possível amar aquilo cujo sentido se desconhece, ou que talvez nem o possua. Pois talvez o amor seja justamente aquilo que produz sentido; sem ele, há só fatos brutos, jogos de força, choques entre átomos, matéria boiando pelo espaço, energias relacionando-se umas com as outras sem nenhum télos. Talvez a bondade, no Universo, seja coisa pra ser inventada, e não algo que já existe pronto. O amor, há de se fazê-lo, nós mesmos, pois ninguém o fará por nós. Não há Reino fora este onde já estamos. Não há Eternidade alguma a não ser a do presente. Eterno presente em eterno fluxo. E é aqui-e-agora que nós, efêmeros mas "contemporâneos do eterno" (para usar a genial expressão de mestre Comte-Sponville), devemos inventar o amor. Caso contrário, não há sentido.
A Árvore da Vida é menos um filme sobre fé, e mais um filme sobre o amor. Aqueles que têm fé muitas vezes se matam, ou embarcam em Cruzadas homicidas, ou mandam para as fogueiras da Inquisição seus desafetos, ou lançam-se suicidamente contra prédios ou explodem-se em carros-bomba. Já aqueles que amam, muitas vezes, não tem fé alguma além da fé no amor mesmo. Não é Deus que é amor (Ele, o sempre silente, o que manda moscas pousarem sobre as feridas que queríamos curadas, Ele que não impede que crianças morram e que tiranos genocidem e que terremotos devastem e que Holocaustos de extermínio e de miséria ocorram; Ele que, para falar bem claro, NÃO EXISTE). Não: é o amor quem se torna deus, mas somente enquanto nós, frutos da terra, o nutrirmos. O cosmos inteiro pode ser objeto para este amor salvífico: e não um cosmos distante, "abstrato", mas este que nos toca a face quando venta, este que nos molha os cabelos quando chove, este que está debaixo de nossos pés quando pisamos na grama e acima de nossas cabeças enquanto boiam as nuvens e sobre nós chove a torrencial tempestade de fótons pelo Sol irradiada...
Ao cosmos, em sua completude, trata-se de dizer-sim, com jovial afirmação, com lucidez e honestidade; "fatalismo"? Talvez, mas não é o fatalismo dos resignados aos sofrimentos, o fatalismo dos cristãos que fazem cara feia enquanto carregam cruzes, o fatalismo destes kamizakes ou homens-bomba que fazem-se de "armas fatais" justificando-se com a lorota de que são arautos da "Justiça Divina"... Se há "fatalismo" em Malick, ele tem predicados muito próprios: é um fatalismo, ouso dizer, repleto de felicidade. Um fatalismo que é uma espécie de "aceitação plena da necessidade" que muito se assemelha a uma amplíssima aquiescência. O fatalismo de quem diz Sim ao destino, mesmo aquele que o esmaga.
A Árvore da Vida é uma obra-prima que diz o Sim mais amplo que pode ser dito.
Ao cosmos, em sua completude, trata-se de dizer-sim, com jovial afirmação, com lucidez e honestidade; "fatalismo"? Talvez, mas não é o fatalismo dos resignados aos sofrimentos, o fatalismo dos cristãos que fazem cara feia enquanto carregam cruzes, o fatalismo destes kamizakes ou homens-bomba que fazem-se de "armas fatais" justificando-se com a lorota de que são arautos da "Justiça Divina"... Se há "fatalismo" em Malick, ele tem predicados muito próprios: é um fatalismo, ouso dizer, repleto de felicidade. Um fatalismo que é uma espécie de "aceitação plena da necessidade" que muito se assemelha a uma amplíssima aquiescência. O fatalismo de quem diz Sim ao destino, mesmo aquele que o esmaga.
A Árvore da Vida é uma obra-prima que diz o Sim mais amplo que pode ser dito.
uhh! quero ver!!! :D
ResponderExcluirBelo texto, meu chapa. Vi o trailer desse filme, e confesso que botei pouca fé. Mas agora fiquei com vontade de ver.
ResponderExcluirValeu, caro Fabrício! Massa te ver "passeando" por aqui. O trailer realmente não faz jus a este filmaço, que aliás, pensando bem, é meio "in-trailer-izável"! (hehe) Como resumir em 2 minutinhos estas 2 horas de meditação?!? Bom, mem preciso dizer que recomendo muitíssimo uma conferida atenta neste complexo poema visual do Malick, né? Quando conferir, escreva dizendo o que achou - ou sentiu, já que é uma obra mais sensorial que racional... Abração e volte sempre!
ResponderExcluir