(PROLEGÔMENO: Ontem, 27/08/2011, très fumée, sensibilidade amplificada pelo THC, fui conferir este filme indizivelmente belo. E que ecoa... ecoa em nós por muito tempo depois dos créditos finais. Saindo do cinema em estado de graça, dando muita razão à Cannes por tê-lo laureado com a Palma de Ouro, bati com a cara nesta bagaça tão desagradável chamada São Paulo. Dois tweets, quando cheguei em casa:
Lembrei-me do Joseph Campbell, em uma das entrevistas d'O Poder do Mito, quando ele diz que a experiência sublime vivenciável num templo de meditação é completamente destroçada quando você vai encarar uma grande metrópole capitalista. A Árvore da Vida é menos um filme que um templo de meditação. E transpor para palavras esta vivência é algo que sinto, de início, condenado a um certo fracasso. Ainda assim, há que se tentar, mesmo o impossível. Eis, pois, alguns rascunhos preliminares sobre um filme que transcende em muito as míseras palavras que possamos rabiscar sobre ele.)
Sair d"A Árvore da Vida" e ir ao encontro de São Paulo é como sair de um êxtase místico e dar com a cara no poste. Cidadezinha corta-barato!
"Sampa: 456 anos de crescimento caótico!" Lido numa grafitagem da avenida Rebouças. Paulicéia desvairada! Cidade-acorde-dissonante.
Lembrei-me do Joseph Campbell, em uma das entrevistas d'O Poder do Mito, quando ele diz que a experiência sublime vivenciável num templo de meditação é completamente destroçada quando você vai encarar uma grande metrópole capitalista. A Árvore da Vida é menos um filme que um templo de meditação. E transpor para palavras esta vivência é algo que sinto, de início, condenado a um certo fracasso. Ainda assim, há que se tentar, mesmo o impossível. Eis, pois, alguns rascunhos preliminares sobre um filme que transcende em muito as míseras palavras que possamos rabiscar sobre ele.)
Malick construiu boa parte de seu filme com retalhos de orações. Mãe e filho, cada um a seu jeito, conversam com o "Altíssimo". Mas o que se escancara nestes discursos são desejos e angústias humanos, sem que haja jamais nenhuma intervenção divina. O Feuerbach, filósofo alemão lido e criticado por Marx, escreveu em A Essência do Cristianismo aquele que considero um dos melhores livros sobre religião já escritos. Ali, a prece é considerada como uma confissão humana de desejos íntimos, um meio de acesso à verdade das ânsias humanas mais recônditas. Ao sentirem-se em estado de radical dependência e temor em relação a poderes superiores, que podem esmagar-nos impiedosamente, as pessoas inclinam-se à fé e pedem clemência aos céus. Fazendo-o, revelam mais sobre a condição humana do que sobre os atributos divinos. Feuerbach: uma oração é um discurso que deve ser interpretado com a chave da antropologia, e não da teologia.
"Please, God, kill him. Make him die." Assim o filho faz sua prece, pedindo ao Pai do Céu para ver-se livre de seu pai na terra. É o Complexo de Édipo, este item já tão massacrado e criticado da psicanálise freudiana, recebendo um outro tratamento. Malick não é simplista: ele põe em cena, de fato, uma criança que, chegando à puberdade, passa a experimentar culposos desejos em relação à sua mãe (lembrem-se daquela cena em que entra de fininho no quarto da mãe para acariciar camisolas e roupas íntimas, para depois, num transe, ir lançar às águas de um riacho o objeto que lhe despertou desejos tão feios...). O pai, militar durão que aposta numa educação autoritária e não tem muito jeito para ternurices e agrados físicos, soa como um ditador do lar que impede a casa de ser um ninho da alegria, da espontaneidade criativa e da partilha de amor (tão odiada é esta figura de autoridade que, a certo momento, o filho, vendo o pai deitado debaixo do carro, pensa em esmagá-lo debaixo do peso; até olha para os lados checando se haveriam testemunhas; acaba por desistir e por pedir em oração que seu desejo assassino se realize).
Malick soube fazer uma espécie de "drama doméstico" ímpar: ao invés de fazê-lo se desenrolar no microcosmo familiar, como em Mike Leigh ou John Cassavetes, ou de ambientá-lo na moldura de uma situação social mais ampla, feito Spike Lee, nos dá a sensação de que estamos observando relações humanas cujo palco é nada menos que o Universo. Jamais Malick tinha feito filme tão ambicioso e grandioso, onde tudo é amplificado e magnificado até atingir, por assim dizer, uma "dimensão cósmica". E me parece até que A Árvore da Vida, apesar de ser um filme aparentemente a-político, possui uma janela aberta para a Utopia.
Através da idealização da figura feminina, tornada eficaz pela linda interpretação e presença da belíssima Jessica Chastain, Malick sugere (sem pregação e com tranquilidade) que é preciso "femininizar" nossa cultura, pôr mais yang no nosso yin, mais sensorialidade em nosso racionalismo, mais emoção na nossa razão instrumental, mais doçura em nossa testosterona e mais amor em nossas guerras cotidianas. Os senhores da guerra, os que ordenam bombardeios, os que lutam nos campos de batalha, são sempre homens. A figura paterna dominadora, que manda que os filhos se calem perante à força do chefe e que pune o mínimo rascunho de rebeldia, tem que cair. Um certo heroísmo serve de aura à rebeldia do filho que taca pedras nos vidros dos vizinhos, perambula pela cidade sem freios e confronta a autoridade paterna que a mãe é demasiado dócil para peitar. Mas esta não é uma rebeldia semelhante àquela de Martin Sheen em Badlands - Terra de Ninguém, primeiro filme de Malick, onde os protagonistas saem por aí, em transe psicótico, matando gente à esmo. Aqui a rebeldia é mais sábia: é a expressão de uma vida cuja essência é uma vontade de expansão e de expressão, um conatus (Spinoza) ou uma vontade de Poder (Nietzsche) que não pode ser barrada e obstacularizada sem que surja conflito, cisão, porrada.
O personagem de Sean Penn, entristecido em meio ao mundo artificial criado pelos humanos, melancólico mesmo diante dos mais imponentes arranha-céus, lamenta ver uma humanidade dominada pela ganância e que perdeu o contato com a Natureza que a circunda. E a palavra religião, é sempre bom lembrar, vem do latim religare: serve como religação do Homem com aquilo que o transcende. Por isso, num certo sentido, o filme de Malick trabalha tentando sanar aquela "crisis of perception" [crise da percepção] de que nos fala Ponto de Mutação (Capra). Tão preocupados estamos em acumular capital que nos esquecemos de contemplar o cosmos. Tão viciados estamos em acreditar nas lorotas das religiões organizadas que não nos entregamos mais à experiência imediata de conexão com o Universo. Tão corrompidos por uma cultura de competitividade e dominação que nem suspeitamos que a fragilidade admitida pode ser fonte de laços de amizade e que cooperar é bem mais inteligente do que saltarmos uns sobre as carótidas dos outros.
A Árvore da Vida está mais pra ayahuasca que pra hóstia; mais para Gaia que para Javé; mais para hinduísta que para cristão. É um manifesto poético-religioso dos mais lindos que o cinema já cometeu, algo digno de Tarkovsky, Dreyer ou Von Trier fase-Ondas do Destino. É um filme cujo desejo supremo parece ser espalhar encantamento sobre tudo aquilo que nós, esta trupe de cegos e loucos que vagam vendados pelo planeta, negligenciamos. Tal como um girassol tem tropismo pelo Sol, devemos nós ter um tropismo pelo cosmo: de consciências boquiabertas diante da imensidão de tudo, devemos quedar silentes, certos de que a palavra Deus é uma completa miséria quando se trata de descrever verbalmente as verdades complexíssimas e múltiplas da Matéria.
"está mais para ayahuasca que para hóstia."
ResponderExcluirHahahaha. Muito bom! Não vi o filme ainda, mas pelo que tenho lido parece que é isso mesmo.
Boa análise desse filme belíssimo, que por mais que tentemos explicar, deve ser sentido.
ResponderExcluirQuem quiser ver Deus numa sala de cinema, não pode perder.